Mais uma vez a Itália se revela majestosa e prolífica quando se fala em
rock progressivo. Sua história é irretocável, baseado no primor e na galhardia
de suas bandas que escreveram e ainda escrevem, pois grande parte delas ainda
está a pleno vigor de suas forças e criatividades, histórias espetaculares e
que ainda faz deste país um dos grandes representantes da cena que a cada dia
se faz presente e forte com as clássicas bandas e as novas safras que
certamente perpetuarão o rock progressivo da velha Itália.
E a minha dica de hoje é conhecida de todos os apreciadores da boa
música progressiva e que com sua sonoridade atemporal e arrojada honrou o
clássico e que serve de referência para os tempos contemporâneos. Falo do THE
TRIP e seu álbum mais conhecido, o seu melhor trabalho para muitos: “Caronte”,
de 1971.
The Trip com “Caronte” flerta com os primórdios do rock progressivo na
Itália e ao mesmo tempo se faz perceber a sua sonoridade na nova safra de
bandas progressivas na Itália, sobretudo aquelas que primam pelo peso e
qualidade na melodia e harmonia. Sim, é possível aliar peso, agressividade e
melodia e harmonia com sensibilidade.
Assim é o The Trip com o seu espetacular “Caronte”. E como não posso
deixar de falar de um pouco de história para acrescentar ao tempero sonoro,
vamos a ela. The Trip foi uma das primeiras bandas italianas de rock
progressivo, embora tenha se formado na Inglaterra. Na verdade, se tratavam de
músicos ingleses que foram tentar a sorte na Itália em uma época em que beat
italiano estava em franca ascendência.
Isso era meados da década de 1960. Era a psicodelia, era o beat pop que
estava em voga na Itália e lá foram eles em busca do sucesso. O The Trip viajou
para a Itália e logo serviu de banda de apoio para um cantor de beat-pop
chamado Ricky Maiocchi.
Nessa época o guitarrista era um rapaz novo e desconhecido, um tal de
Ritchie Blackmore. Blackmore, em 1966, foi para a Itália tentar ganhar a vida
como músico, dada também a efervescência daquele país, juntamente com o
Maiocchi, que era vocalista de uma banda chamada The Chameleons e lá ficou por
poucos meses, entre setembro e dezembro.
O pouco tempo que ficou se deu por conta das incertezas com o seu
futuro, pois o show que fazia com o The Trip não estava rendendo dinheiro, o
público parecia não apreciar o som da banda, voltado para o psicodélico mais
experimental, e os proprietários das casas de shows pagavam muito mal, gerando
o retorno precoce do futuro fundador do Deep Purple à Inglaterra.
Mas em 1969, quando Joe Vescovi foi recrutado, logo assumiu a liderança
da banda e começou a trabalhar com a influência de bandas como Vanilla Fudgie,
ou seja, um psicodélico, com um progressivo de vanguarda com pitadas de hard
rock. Em 1970 gravou seu primeiro álbum, “The Trip” e aqui você pode ler a resenha que fiz sobre este belo álbum, com essa proposta, uma
abordagem psicodélica, um acid rock, com um progressivo ainda pouco executado,
embrionário.
"The Trip", de 1970
Mas em 1971, veio “Caronte”. Um misto de hard rock elétrico e vigoroso
com um progressivo com levadas clássicas com influências de Emerson, Lake &
Palmer, como muitas bandas italianas que surgiam no início da década de 70, mas
com aquela pegada ao estilo Vanilla Fudge, graças ao grande Vescovi.
Foi uma guinada espetacular na história do The Trip. “Caronte” foi
inspiração do personagem “Charon, o barqueiro do inferno”, de Dante Alighieri,
da “Divina Compédia” e constrói uma espécie de metáfora ao conformismo, a uma
sociedade conformista, baseada em estruturas frívolas e destrutivas na consumo,
na autodestruição, entre outros. Inclusive há faixas mencionando músicos como
Janis Joplin e Jimi Hendrix, que, ao olhar da banda, retrata esse conceito de “Caronte”.
Charon, o barqueiro do inferno
A banda, quando produziu ‘Caronte”, tinha a seguinte formação: Joe
Vescovi nos teclados, órgão, mellotron,
hammond, William Gray na guitarra,
vocal, Arvid "Wegg" Andersen no baixo e vocal e Pino Sinnone na
bateria.
O álbum começa com “Caronte (Pt. 1)” um espetáculo de hard poderoso com
uma linha de teclados frenéticos, solos viscerais de guitarra, riffs na mesma
escala, uma sonora pedrada. “Two Brothers” tem mais a cara de um progressivo
clássico, com passagens rítmicas, teclados em destaque, uma viagem progressiva
em grande estilo, um espetáculo instrumental e um vocal de grande alcance faz
dessa faixa um clássico.
“Little Janie” remete a um The Trip mais psicodélico, uma abordagem mais
comercial e acessível que leva a banda aos tempos sessentistas, uma faixa
viajante e linda.
"Little Janie", live in Torino 2018
"L'Ultima ora e Ode a Jimi Hendrix” é uma das faixas mais poderosas do
álbum. Nesta música o The Trip esbanja em sensibilidade, harmonia, lirismo, uma
faixa criativa e que engloba toda a versatilidade da banda: psicodelismo,
progressivo, hard rock, tudo se observa nesta música excelente.
"L'Ultima ora e Ode a Jimi Hendrix", live 2011
“Caronte (Pt. 2)” é o desfecho que segue a linha da faixa inaugural,
muito peso e tecladeira avassaladora e passional. Assim é “Caronte”, um álbum
que abriu as portas do heavy prog na Itália, que foi pioneiro no progressivo
pouco voltado para o sinfônico e mais para a agressividade do hard rock e a
sensibilidade do rock progressivo.
Disco atemporal e necessário
para entendermos o que se faz de novo no rock progressivo atualmente na Itália
e no mundo, sobretudo com o que conhecemos hoje como metal progressivo tão em
evidência nos dias de hoje. A linda capa do álbum é uma representação da
ilustração original de Gustave Doré, concebida para somar beleza à fantástica
Divina Comédia de Dante Alighieri.
Em 2021 a banda lanço “Caronte
50 Years Later”, em comemoração aos 50 anos de lançamento do espetacular e
original “Caronte”, mas isso é uma outra história...
A banda:
William Gray: guitarra
elétrica e acústica e vocais
Joe Vescovi: órgão Hammond,
piano, órgão sacro, mellotron, arranjos e vocais
Meus amigos, hoje eu estou em um clima mais hard, mais fiquem calmos,
estou em um clima mais hard e progressivo também e desde já falarei de uma
banda seminal, poderosa e se não foi pioneira do hard progressivo, foi àquela
banda que aperfeiçoou o subgênero, sem sombra de dúvida. Falo do grande GURU GURU e de seu freak, louco e poderosíssimo álbum “Hinten" e sua capa no mínimo inusitada, de 1971.
Guru Guru sem dúvida foi uma banda inovadora e apesar de ter bebido da
fonte do krautrock, um filho da cena, foi além do kraut e inseriu mais peso ao
seu som, aliado ao rock progressivo com muita jam section. O miolo do Guru Guru viria
com a reunião de dois amigos, o baterista Mani Neumeier e o baixista Uli Trepte
que se conheceram em 1963 e se juntaram a uma banda de jazz que se chamava Irene
Schweizer Trio, da pianista suíça Irene Schweizer.
Irene Schweizer Trio com o álbum "Jazz Meets India" (1967)
Em 1968 quando
Irene seguiu seu próprio caminho e o Trepte mudou para o baixo o “Guru Guru
Groove” foi formado calcado nas experimentações e improvisações jazzísticas que
aprenderam no passado com a banda da pianista suíça Irene Schweizer mais o
vigor e o peso do rock n’ roll e algumas pirotecnias oriundo da energia do
baterista Mani e o talento de Tepte.
Com o conceito formatado e algumas
mudanças na formação eles se juntaram ao ex-guitarrista do Agitation Free, Ax
Genrich e definiram que essa era a formação ideal para um tipo de apresentação
ao vivo pautado na energia no palco e que Genrich correspondia plenamente e o
nome da banda foi encurtado para Guru Guru.
Guru Guru
Seu primeiro
contrato com uma gravadora já, claro, com o intuito de registrar o seu primeiro
trabalho foi com a gravadora "Ohr" que à época era conhecida por recrutar bandas
e músicos com uma sonoridade de vanguarda, entrando aí a cena krautrock.
E foi assim que
surgiu o debut do Guru Guru chamado
“UFO”, de 1970. O nome do álbum é uma clara alusão a sonoridade incomum da
banda que trazia uma sonoridade selvagem, forte, eloquente, calcada na guitarra
com efeitos eletrônicos arrojados, como pedais de wah wah, tendo a psicodelia como ponto forte e um hard rock intenso
para a época, além da inventividade de Neumeier e do baixista Trepte, além de Ax Genrich, adicionado a banda para tocar guitarra.
"UFO" (1970)
As apresentações ao vivo eram intensas e indulgentes, beirando a agressividade, a potência e a energia
de seus integrantes e tido como uma aberração até mesmo entre os colegas
de outras bandas, aguçavam as manifestações políticas e filosóficas, botando, ainda mais, lenha na fogueira. Os músicos faziam parte da União Socialista Alemã
de Estudantes e fizeram muitos shows nas universidades, divulgando bem “UFO”.
E diante desses
vários shows em universidades, em faculdades e também em eventos estudantis, o
álbum do Guru Guru, o “UFO”, alçou voos, com o perdão da analogia, ganhando
alguma credibilidade e visibilidade. Esse reconhecimento se deu com um convite
que a banda recebeu para tocar no 3º Pop & Blues Festival de Gruga-Halle,
realizado em Essen, na Alemanha, entre os dias 22 e 25 de outubro de 1970. O
Guru Guru tocaria no último dia do festival, 25 de outubro.
Festival de Essen, Alemanha (1970)
Certamente esse foi
o primeiro e mais representativo show do jovem Guru Guru e que traria muita
publicidade para os meninos da banda que tocaria nada menos com bandas do naipe
de Taste, Fotheringay, East Of Eden e Tyrannosaurus Rex no palco principal, no
mesmo dia, mas não no mesmo palco, mas tocaria, em um palco pequeno lateral,
com as bandas alemãs como Frumpy, Embryo. Já era muito!
E essa apresentação
teve um registro e que foi lançada apenas em 2003, pela abnegada gravadora
Garden of Delights, com o título de “Guru Guru – Live at Essen 1970”, cuja resenha pode ser lida aqui.
A banda voltaria para o estúdio para gravar "Hinten", em 1971. A banda neste álbum esteve certamente em seu auge criativo, um total
desprendimento do mainstream que só restringe o músico e as bandas, dando asas
a criatividade, sendo despretensioso em sua sonoridade.
O álbum é o suprassumo do peso, da distorção, da
viagem progressiva, uma referência do estilo, mas que, por outro lado, não
atingiu a credibilidade que merecia. É referência, mesmo desconhecido, pelo
fato de poucos abnegados e apreciadores do prog obscuro conhecerem este e a
toda a discografia do Guru Guru e divulgarem a obra, a obra vive por causa
dessas pessoas, o fã torna a obra uma referência.
“Hinten” teve como engenheiro de som o ícone do kraut Conrad Plank além de ser produzido pela própria banda, mostrando já, mesmo que no início de sua
carreira, a diretriz musical que determinara para a sua história. A banda em
“Hinten” era formado por: Ax Genrich na guitarra e vocal, Uli Trepte no baixo e
vocal e Mani Neumeier na bateria e vocal.
Guru Guru em 1971
Conny Plank
Um power trio que fez desse álbum um petardo instrumental. Ele começa com
a faixa “Electric Junk” uma porrada ao estilo Hendrix de ser, com levadas de
jazz fusion e pitadas de space rock, um som apocalíptico de respeito.
"Electric Junk"
Segue com mais um petardo com “The Meaning Of Meaning” com destaque para
a bateria de Mani e os riffs e solos de guitarra de Ax Genrich. É desolador,
uma pancada sonora digna de abalar qualquer estrutura certinha e enfadonha da
música pop.
"The Meaning of Meaning"
Continua com a excelente e divertida “Bo Diddley” com uma pegada
mais hard do que progressiva, arrebentando tudo que vê pela frente. E fecha com
“Space Ship” com uma tendência mais para o hard e space rock, mas sem a adição
de sintetizador ou teclado, a sonoridade sideral é extraída da guitarra de Ax,
um verdadeiro primor, um talento, uma criatividade exacerbada que mostra uma
banda livre para criar, a liberdade criativa do Guru Guru fez da banda, uma das
mais conhecidas da Alemanha em sua geração.
"Bo Diddley
“Hinten” é um clássico do
hard prog, uma pérola que serviu de influência para bandas como Rush que é tão
clássica quanto o Guru Guru e as mais atuais como Earthless por exemplo. Que
bom ouvir e ver um pouco do Guru Guru nascer e viver em outras bandas. Bandas
como Guru Guru e discos como “Hinten” dignificam e perpetuam o rock
progressivo.