Anos 1980, Brasil. A cena “Brock”
começava a despontar. Bandas como Paralamas do Sucesso, Titãs e músicos como
Lobão e Lulu Santos, ambos ex- Vimana, despontava com suas músicas ao estilo
new wave e pós punk se tornando uma febre da música no Brasil e deve-se muito a
rádios como a Fluminense, sediada no Rio de Janeiro, mais precisamente na minha
cidade, Niterói, que, de forma abnegada, divulgava seus trabalhos inaugurais
que ganhava repercussão, tendo o carinho e interesse de alguns críticos
musicais, programas de TV como do apresentador Raul Gil, por exemplo.
O mercado, ávido por
“novidades” absorvia, sugava ao máximo essas bandas que, com a notoriedade
faziam shows e mais shows tendo, como palco emblemático, o Circo Voador, também
no Rio de Janeiro. Mas o mercado segmenta, é perverso, colocando a música em
último lugar, afinal o rock brasileiro não se resumia a essa cena, apenas.
Muitas bandas que seguiam
propostas menos ortodoxas à época, ou seja, aquelas que não executavam a tão
falada new wave e pós punk, seguiam vilipendiadas, esquecidas, marginalizadas,
perecendo sem quaisquer apoios, vivendo apenas da sua criatividade e persistência,
um amor à sua música.
O que dizer do rock
progressivo dos anos 1970 no Brasil? O que dizer do hard rock, do psicodélico?
Não gozaram de credibilidade, caíram no mais escuro ostracismo, vivendo, como
disse, da sua verdade e criatividade. O rock Brasil dos anos 1980 atingiu o êxito
de um pseudo pioneirismo, de uma falácia ufanista, esquecendo de um período que
desbravou o rock na sua gênese, inclusive. E nada ganhou, não teve sequer um
reconhecimento até hoje!
O discurso pode parecer de
vitimismo, mas é histórico. Estruturas de gravação aquém do esperado,
obscuridade era a tônica. Mas convenhamos a influência de uma indústria
fonográfica perversa e manipuladora poderia envenenar essas bandas e a ausência
de apoio, por pior e mais inusitado que seja, foi bom, sob o aspecto criativo,
mas comercialmente foi alarmante.
E eu não posso deixar de
citar, já que mencionei a minha cidade, de Niterói, de uma banda oriunda dessa
cidade que duvido que muitos apreciadores de rock n’ roll dessa cidade, que
tanto colaborou e ainda colabora para o estilo, conheçam. Falo do ALMA DA
TERRA.
Em breve vou tecer comentários mais detalhados do seu único álbum, homônimo, lançado em 1982, mas a banda certamente esteve deslocada do seu tempo, pois, predominantemente seu trabalho é calcado no hard rock setentista, com pitadas psicodélicas e de um belo blues rock. Como que uma banda, em pleno ano de 1982, ápice da new wave no mundo inteiro, inclusive, claro, no Brasil, vingasse? Culpa da banda? Culpa da cena? Culpa da indústria fonográfica? Tudo isso?
Cabe aqui uma contextualização do cenário do rock àquela época, mas não é de meu desejo falar disso, mas dedicar tempo e linhas a essa seminal e rara banda brasileira e niteroiense. Até porque, até aqui, expus, de forma pessoal, as minhas opiniões acerca da new wave brasileira e do comportamento da indústria fonográfica, haja vista que se fez sucesso é porque tinha um mercado que consumiu essa música.
Mas voltando ao Alma da Terra
a banda, quando foi formada, também gozou de alguma repercussão, pasmem, quando
a “Maldita FM”, como também era conhecida a Rádio Fluminense, sediada em
Niterói, no Rio de Janeiro chegou a divulgar seu álbum. O ponto positivo da
rádio, inteiramente independente, era que tocava, sem maiores preconceitos, muitos
álbuns e demos que eram entregues à rádio e assim o foi com outras bandas que
não executavam a new wave, como o seminal Bacamarte, por exemplo, que, ao
lançar seu debut, “Depois do Fim”, de 1983, que foi gravado em 1977, ganhou
repercussão graças a rádio.
Contudo por mais que tenha
sido independente, a Rádio Fluminense FM, acabou, instintivamente, segmentando
seu som de acordo com os anseios de consumo do seu público dando destaque às
bandas dessa new wave que culminou, com a participação de algumas delas em um
novo festival, cuja primeira edição aconteceu em 1985, chamado “Rock in Rio”, dando
alguma projeção, primeiramente às bandas participantes e as demais que beberam
do momento.
O álbum “Alma da Terra” foi
gravado e mixado no Estúdio da Sono-Viso do Brasil, no Rio de Janeiro entre os
meses de dezembro de 1981 e janeiro de 1982, lançado em 1982 pelo selo Vento de
Raio Produção Artística Ltda, com a produção de Toninho Barbosa e da própria
banda, tendo também a banda no comando da direção musical e arranjos, mostrando
que os jovens músicos à época já mostravam talento e competência e isso pode
ser confirmado no álbum, na sua sonoridade.
A prensagem do LP ficou à cargo de Ivan Lisnik, da Polygram e a arte da capa ficou sob responsabilidade de Raul Varady, tendo ainda Sônia Regina no projeto gráfico e fotos da banda que figuraram no encarte do álbum. A banda trazia na sua formação Fábio Mattos Agra (vocal, guitarra, violão), Paulo Fernandes Martins (vocal, baixo) e Antônio Augusto Ventura (bateria). Das dez faixas compostas para esse único trabalho do Alma da Terra trazia a predominância da composição o vocalista e guitarrista Agra e o baterista Ventura, com Paulo Fernandes tendo uma tímida apresentação no processo de criação deste álbum.
O álbum transita entre o hard
rock, a psicodelia, bebendo da fonte dos anos 1970, mas trazendo uma roupagem
mais básica, diria até “moderna”. Pode parecer um tanto quanto contraditório,
mas sim, é um rock n’ roll básico, porém vigoroso, cujo instrumental é direto e
bem executado, ao mesmo tempo, mostrando uma incrível versatilidade e mesmo que
esteja descolado do seu tempo, a banda conseguiu produzir um álbum que, de
alguma forma, poderia atingir um público mais jovem e que não se aproximasse do
hard rock setentista ou da sofisticação do rock progressivo.
E já que falei do
instrumental, não podemos negligenciar os riffs de guitarra de Agra, com solos
marcantes, acompanhado pela bela “cozinha”, com alguns momentos acústicos que
nos remete, inclusive, ao folk rock. As letras são todas em português e bem
elaboradoras trazendo temas sociais e comportamentais da época, mas que podem
ser conduzidas a uma atemporalidade assombrosa. Outro ponto determinante pelo
Alma da Terra ter figurado pouco nas FMs brasileiras pode ter sido exatamente o
teor de suas letras, trazendo à tona temas poucos confortáveis para uma
sociedade conservadora e podre.
O álbum é inaugurado pela
faixa “Solto no Ar” que traz a “cozinha” como destaque, baixo pulsante e
bateria pesada e marcada, com riffs que, pasmem, lembra um pouco o pós punk e a
new wave. Mas o contexto é pesado e tem no hard rock como sustentáculo. Na
metade da faixa corrobora isso, pois é pesada, chegando a ser agressiva,
capitaneada também pela pegada áspera e dura da bateria. Os solos de guitarra
de Agra surgem, logo em seguida, irrompendo no típico “hardão”.
Segue com “Vivença” que começa como um trovão, com destaque para um duelo arrepiante de baixo, cheio de peso e groove, e a guitarra com riffs pegajosos e pesados. A bateria segue marcada, mas discreta. Mas ela, ao longo de sua execução, vai ficando mais pesada, mais arrastada. O hard rock é o rei nesta faixa. Solos de guitarra trazem mais sofisticação e complexidade à música.
“Prá John” inicia meio
intimista, soturna, a guitarra com dedilhados vagos e estranhos. Irrompem em
uma pegada mais discreta, mais leve, uma balada melódica e dramática. A letra
melancólica corrobora a condição, mas a bateria, pesada e agressiva, dá um tom
mais pesado, fazendo com que a música tenha algumas mudanças de tempo e assim
alterna entre momentos súbitos de peso e de uma linda e sombria balada.
“Tente mais uma Vez” é mais animada, dançante e solar. Remete ao rockabilly dos anos 1950 e algo como The Rolling Stones nos seus primórdios. Os riffs de guitarra se afastam do peso do hard rock setentista e estimula a qualquer um afastar o sofá e dançar e dançar e dançar sem parar. Baixo e bateria trazem a textura rítmica dos anos 1950, mas os solos de guitarra de Agra revelam um lado pesadão e a bateria segue a proposta com uma batida mais aguda e pesada também.
“Natural” começa meio
contemplativa e pastoral, mas por pouco tempo porque o peso da seção rítmica
apavora com um baixo pesado, tocado com raiva, bateria igualmente pesada, mas o
vocal nos remete ao rock psicodélico, algo como uma tropicália eletrificada, um
psych rock ácido e lisérgico. Música cheia de momentos e que pode cativar a
todos os gostos!
“Cante Comigo” começa com a
mesma proposta da faixa anterior, uma balada, com lindos dedilhados de guitarra
em solos mais diretos, porém interessantes. E assim se mantém, linear durante
grande parte da faixa, com a bateria em uma pegada mais leve, baixo
acompanhando o ritmo. Mas o destaque ficaria guardado para o solo de guitarra
de tirar o fôlego que fecha a música. Excelente!
“Cabeça Feita” traz de volta
aquela pegada de rock dos anos 1960, lembrando The Rolling Stones, é dançante e
animada. Uma faixa solar que tem um viés comercial e radiofônico bem evidente.
Sem dúvida foi composta com a intenção de ser a música para divulgar o álbum.
Os solos são igualmente animados que faz qualquer um dançar.
Segue com “Anjos de Cristal”
que volta com o peso e a agressividade do hard rock! Riffs pegajosos de
guitarra, baixo pulsante e bateria marcada, mas com uma batida pesada. A
“cozinha” ganha destaque nessa faixa. Vocal cheio de melodias, melancólico,
sombrio, ancorados por um instrumental invejável. Eu costumo dizer que, músicas
como essa, são de banda, porque todos participam e tem um protagonismo
importante. Mas não podemos negligenciar, claro, o solo de guitarra. Uma das
melhores faixas do álbum, sem dúvida!
A faixa título, “Alma da Terra”, vem com uma pegada bluesy, um blues rock volumoso, com uma pegada de rock psych, lisérgico, ácido que me remete a bandas da transição dos anos 1960 para o 1970, como Cream, Steppenwolf e o peso do Blue Cheer. O blues com o rock, com o hard rock. A bateria agressiva, o baixo com aquele groove, riffs de guitarra que pedem solos excelentes.
E fecha com a música “Não
Morra de Susto” que entrega, logo de cara, um riff duro, áspero, sujo, de
guitarra que irrompe em uma faixa veloz, pesada e agressiva que me fez lembrar
de um belo heavy metal. A bateria, mais uma vez, ganha em destaque, pela batida
pesada e agressiva. Baixo pulsante e guitarra com solos diretos, curtos e
grossos. O heavy rock é a tônica dessa faixa. Intensa e arrastada, em alguns
momentos, mostra o lado mais pesado do Alma da Terra nesse álbum.
Reza a lenda que o Alma da
Terra já teria novas músicas compostas já para um segundo álbum e que, por
algum motivo obscuro, o projeto do segundo trabalho não teria vingado. Mas a
realidade nós sabemos o motivo pelo qual esse segundo álbum não teria sido
lançado. O fato é que a banda produzia uma música totalmente marginal e que não
seguia os interesses da demanda de mercado animada com a new wave oitentista.
Se de fato esse material novo
existe claro que aos apreciadores do velho hard rock estariam ávidos por ouvir
esse material. Mas infelizmente pouco se sabe também do paradeiro dos músicos e
se eles ainda estão na ativa, trabalhando com música. Esse fator também seria
determinante, além, claro, do interesse de alguma gravadora para registrar
oficialmente esse novo e perdido trabalho. É preciso, também, saber onde
estariam essas fitas para trazer à tona um novo trabalho do Alma da Terra.
Uma pérola perdida e que teria um potencial enorme para se ter uma longevidade na história do rock brasileiro. Um representante, mesmo que obscuro, fiel de uma cidade que sempre respirou o que sempre teve de melhor no período marginal do rock brasileiro, sobretudo dos anos 1970 e que até os dias de hoje, luta contra as “novidades” e modismos dos dias atuais. Alma da Terra, com seu álbum de 1982, mostra, com arrojo e personalidade, um tempo que foi vilipendiado com o que havia de verdadeiramente melhor da nossa música. Você pode fazer o download de "Alma da Terra" aqui. Ou se você quiser ouví-lo pelo YouTube clique aqui.
A banda:
Fabio Mattos Agra na guitarra,
violão e vocal
Paulo Fernando Martins no baixo
e vocal
Antônio Augusto Ventura na
bateria
Faixas:
1 - Solto no Ar
2 - Vivença
3 - Pra John
4 - Tente Mais Uma Vez
5 - Natural
6 - Cante Comigo
7 - Cabeça Feita
8 - Anjos de Cristal
9 - Alma da Terra
10 - Não Morra de Susto
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