segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Fraction - Moon Blood (1971)

 

Segunda metade dos anos 1960. O mundo estava agitado, intenso e, diria, em alguns momentos, tenso. A Guerra do Vietnã era um engodo democrático da polícia do mundo! O mundo protestava contra a polícia do mundo! A contracultura florescia e protestava e, por intermédio de várias manifestações artísticas deixavam os seus registros, a sua revolta perante o status quo ultraconservador.

A música, claro, deixou a sua marca, sobretudo a cena psicodélica de Los Angeles, com uma profusão de grandes bandas que deixaram clássicos para todo o sempre com a sua atemporalidade e nessa toada podemos destacar The Doors, Janis Joplin e tantos outros que ajudaram a construir a cena rock, não apenas local, mas de todos os Estados Unidos e que, claro, foi exportado para o mundo inteiro, servindo de inspiração para o surgimento de tantas outras bandas.

Mas é claro que a cena também teve o seu lado obscuro e esquecido, de bandas que caíram no ostracismo ou aquelas que simplesmente nasceram fadadas à morte. Digo à morte comercial, até porque precisamos, de uma vez por todas, diferenciar ou dissecar as faces do sucesso e do fracasso, o que é oriundo de oportunidade ou da falta da mesma ou da falta de talento.

A cena obscura norte americana de hard rock e psicodélico é definitivamente grandiosa em termos quantitativos e qualitativos e que, sem sombra de dúvida, viveu ou sobreviveu em paralelo ao glamour e reconhecimento de público e crítica das grandes bandas que, com algum merecimento, sim, ostentou o status de pioneiras em diversos segmentos do rock n’ roll.

Eu poderia citar inúmeras bandas americanas de hard psych obscuras, afinal sou um apreciador do estilo e da cena obscura estadunidense e a cada dia parece renascer com cada descoberta por mim feita. Para a minha alegria o rock n’ roll é um universo vasto, inexplorado e logo selvagem. Um mundo intocável que de posse precisa ser lapidado, registrado por textos, vídeos por seres abnegados para que ela, de alguma forma, se perpetue.

Como diante disso torna-se inviável elencar cada banda, vou citar uma rara, mas especial e não é especial tão somente por ser rara, mas pela sua sonoridade arrojada para a época. Falo da banda FRACTION e do seu único trabalho, lançado em 1971, chamado “Moon Blood”.

E já que comecei esse texto a falar da cena psicodélica que reinou absoluta em Los Angeles, cidade onde o Fraction foi concebido, e em todos os Estados Unidos, o ano de 1971 foi o início do pós-hippie. Hendrix, Joplin, Morrison, representantes da cena já estavam mortos, Manson, com a sua carnificina, praticamente enterrou o movimento “flower power” e algumas bandas, oriundas da cena tiveram que rever sua sonoridade, trazendo algo mais pesado e o grande representante desse momento foi o Iron Butterfly, por exemplo. Podemos exaltar tantas outras como Blue Cheer, Blue Oyster Cult...

O Fraction trouxe esse momento da música, sendo um representante fiel, com uma sonoridade densa envoltas em uma atmosfera mística e nebulosa, quase que oculta e sombria, pautado em letras cristãs meio que apocalípticas que me remete a italiana Il Rovescio della Medaglia em seus primórdios. São letras abstratas, algo pouco palpável para um entendimento “padrão” e visível incitando o ouvinte a pensar, refletir e a construir inúmeras interpretações, dependendo da experiência de vida de cada um.

Mas o som do Fraction ainda carrega alguns “resquícios” de um passado não muito distante da lisergia sessentista, com guitarras ácidas, com sons mesmerizantes e que induz a ouvir, a ouvir e a ouvir compulsivamente. Um verdadeiro espécime da transição das décadas.

Uma sonoridade dramática, comovente, por vezes grave, urgente e reconfortante, agradável e contemplativa, mas que descamba, para o frenesi do peso, da loucura que dilacera a alma com peso e até agressividade.

A banda era formada por trabalhadores normais! Sim! Operários, representantes comuns da classe trabalhadora e músicos diurnos. Eram músicos pela manhã ou durante a madrugada, pois durante o dia, dedicavam-se nos seus trabalhos formais. A banda era formada por Jim Beach nos vocais, Don Swanson na guitarra principal, Curt Swanson na bateria, Victor Hemme no baixo e Robert Meinel na guitarra rítmica.

Eles se conheceram nos anos 1960, por intermédio de vários outros conhecidos que tinham em Los Angeles. Tiveram, como muitos músicos estado em outras bandas antes e formaram no final daquela década o Fraction. Eles precisavam de algo novo, de algo que não estivesse associado à “finada” psicodelia sessentista e por querer trazer algo novo tinham, apesar das dificuldades de conciliar o trabalho regular, praticar e praticar.

O Fraction tinha um pequeno estúdio em um complexo industrial em North Hollywood e começavam a praticar às vezes, às 4h30 da madrugada! As sessões de gravação do álbum foram gravadas de forma semelhante e em tempo real. Foram apenas três horas em um “take”, nem overdubbing ou quaisquer efeitos sonoros adicionais adicionados. Foi aquela famosa gravação “old school”. É incrível o resultado e o impacto à música, ao rock à época e para a posteridade, haja vista que o estilo é tido como o precursor do stoner rock tão em voga atualmente em uma cena já saturada, inclusive.

A gravação de “Moon Blood” aconteceu no Whitney's Studio em Glendale, na Califórnia, no início de 1971. Com um orçamento baixo, restrito foram lançadas apenas com 200 cópias! 200 pessoas privilegiadas que tiveram a primeira prensagem dessa pepita sonora! Foi lançado por um pequeno selo de música cristã chamado “Angelus”.

As letras, mencionadas como abstratas e complexas, são do vocalista Jim Beach que cita, como inspiração para a sua música bandas de proto punk como Love e o The Doors como sua favorita na cena vasta de Los Angeles. Inclusive tinha uma lenda que reinava naquelas bandas à época de que “Moon Blood” era o álbum que o The Doors gostaria de ter gravado. Bem se isso é verdade eu não sei mas nota-se influência da banda de Morrison & Cia no trabalho do Fraction. Diria mais: embora a questão cronológica dá conta de que o The Doors surgira antes do Fraction, não deixam de ser músicos contemporâneos, com o segundo, ouso dizer, mais arrojado flertando com um hard rock ainda embrionário. Além do Love Beach sempre se inspirou em Bob Dylan, sobretudo pela forma como escrevia as letras das músicas e em bandas de hard psych como The Yardbirds.

Letras de "Moon Blood"

Mas não podemos deixar de enaltecer o trabalho do guitarrista Don Swanson! O homem foi o responsável ou um dos responsáveis, apesar da obscuridade de sua banda, diante do glamour da cena de LA, de implementar uma modelo para o que é agora comumente conhecido como “Stoner Rock” ou “Acid Punk” com solos avassaladores com muito “wah-wah” com amplificadores elevados ao limite!

A guitarra de Swanson sempre foi a força motriz por traz da criatividade inquieta e pouco convencional de Beach na concepção das letras das músicas, definitivamente uma dupla dinâmica e poderosa que, de forma arrojada, criou um conceito, um som novo, mas sem padrões e com um leque incrível, cheio de versatilidade.

As contribuições dos outros caras não devem ser subestimadas. O baterista Curt Swanson mantém as coisas em constante ebulição, tudo ferve na sua bateria pesada e marcada, fazendo a engrenagem sonora do Fraction levitar, tendo também no baixista Victor Hemme o parceiro ideal. A “cozinha” fervilha!

Embora eu não seja um entusiasta de comparações e os riscos que se incorre quando, de forma patológica, se compara o tempo todo, bem como o seu único rebento, “Moon Blood”, traz à tona bandas como The Stooges e MC5, mas não tão agudos, diria, com um pouco da lisergia perdida nos anos 1960. As bandas marginais que, sem nenhum tipo de apoio e sem nenhuma perspectiva digna de vida que influencia diretamente na sonoridade da banda.

O Fraction tem como base sonora o rock cristão (Christian Rock), mas com um viés sombrio, perigoso e perturbador, fazendo da banda obscura e esquecida nos porões empoeirados e sujos do rock n’ roll! Naquela época parecia se ter certa demanda cristã narrada de uma forma, diria, pouco ortodoxa, seja no cinema, com os clássicos bíblicos, no teatro e na música não foi diferente, produzindo, de alguma forma, bandas como o Fraction.

E para não fugir do assunto “cristão” o nome do álbum, claro, é baseado em uma passagem bíblica de Joel (2:31) que diz:

“"O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e terrível dia do Senhor."

Então sem mais delongas vamos ao que interessa: ao álbum, faixa por faixa! Este é inaugurado por “Sanc-Divided” que traz guitarras bem despojadas, potentes, cheia de recursos definindo um clima intenso, forte, mas sombrio e intimista, ao mesmo tempo. A música cresce, ganha corpo e depois vem um turbilhão de fuzz impiedoso, mas reduz o ritmo. Uma música cheia de alternâncias rítmicas.

"Sanc-Divided"

“Come Out of Her” traz o destaque vocal de Beach bem rosnante, perigoso e indulgente com um extrema competência e alcance. E que logo é incrementado com um solo linfo de wah-wah que leva o ouvinte a uma onda psicodélica até o fim da música!

"Come Out of Her"

Na sequência tem "Eye Of The Hurricane” que é, sem sombras de dúvidas, o ápice do álbum, mágica do seu início ao fim, com os seus nove minutos de duração. Traz uma jam pós-apocalíptica com um excelente trabalho de guitarra com complexidade, mas orgânica e de muita, mas muita intensidade.

"Eye Of The Hurricane"

“Sons Come to Birth” é a balada do álbum que tem toda a dinâmica perfeitamente definida. Os tons psicodélicos aparecem em cada riff de guitarra, mesclado a uma pegada mais ácida, lisérgica. O baixo conduz a um groove que prepara a música para algumas boas e inspiradas improvisações.

"Sons Come to Birth"

E fecha com “This Bird (Sky High) traz uma seção de poesia meio que falada ao estilo, adivinhem, Jim Morrison, do The Doors, mas que culmina com uma explosão de rock n’ roll de altos decibéis, envoltos em riffs de guitarra e solos de guitarra com força total, com vocais lamentosos e roucos.

"This Bird (Sky High)"

Com o lançamento do álbum “Moon Blood”, em 1971, o sucesso e o reconhecimento pelo excelente trabalho não foram devidos, decretando o fim do Fraction. A banda se separou logo em seguida, voltando os músicos as suas rotinas de trabalhadores comuns e formais.

Mas depois de vários bootlegs ao longo dos anos, em 1999, “Moon Blood” ganhou uma reedição no formato CD pela primeira vez e apresentou três faixas bônus inéditas: “Prisms”, “Dawning Light” e “Intercessor’s Blues” ganhando uma reverberação da força já atestada nos primórdios da história do lançamento do álbum há quase quarenta anos atrás.

Em 2010 ganha mais uma reedição, pelo selo “Mexican Summer”, mas dessa vez no formato LP e também em CD, sendo que o primeiro teve, em sua linha de montagem, na sua produção, feito à mão, um a um, dando, ainda mais, importância para esse momento de resgate de uma banda vilipendiada e esquecida pela indústria fonográfica.


Essa reedição traz de volta à luz o Fraction que, certamente, no seu surgimento no fim dos anos 1960 e início dos anos 1970 sequer vingou quando da concepção de “Monn Blood”. Não tenha dúvida que, com essas reedições e com o advento da tecnologia da informação, com sites e redes sociais, encurtando a comunicação, sem dúvida colocou a música da banda de Los Angeles um pouco mais em evidência, o que não acontecera em sua época e ao longo de mais de quarenta anos, fazendo desses álbuns um centro de verdadeira disputa entre colecionadores que estariam dispostos a pagar a bagatela de até US$ 2.000,00 por um exemplar.

Um exemplo de uma banda que, apesar de ostracismo, do esquecimento, e do tempo implacável, mostrou-se resistente e relevante pelo seu pioneirismo diante do tamanho de uma sonoridade que insiste em não envelhecer, mostrando-se cristalina, poderosa e vital aos que amam, de forma incondicional, o rock n’ roll. Infelizmente, o guitarrista Don Swanson faleceu em maio de 2013.


A banda:

Vic Hemme no baixo

Bob Meinel na guitarra base

Don Swanson na guitarra principal

Curt Swanson na bateria

Jim Beach nos vocais          

 

Faixas:

1 - Sanc-Divided

2 - Come Out Of Her

3 - Eye Of The Hurricane

4 - Sons Come To Birth

5 - This Bird (Sky High)


Fraction - "Moon Blood" (1971)



















 

















quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Carpe Diem - En Regardant Passer Le Temps (1976)

 

Tem certos momentos na vida que nos abraçamos a certas zonas de conforto e lá residimos de forma tão passional que esquecemos que a vida pode nos oferecer tantas coisas boas, consistentes para o nosso crescimento, para o nosso desenvolvimento pessoal. Não! Não meus queridos amigos leitores não se assustem com essas filosofias baratas! Há uma razão de dizer isso. E qual é?

Indo para a realidade do rock n’ roll e contextualizando a questão da temível e sedutora zona de conforto aliado a nossa tão amada música é ouvir, se dedicar àquelas bandas do eixo Inglaterra e Estados Unidos ou, quando falamos especificamente do rock progressivo, flertamos sempre com a Alemanha e a Itália ou ainda ouvir os medalhões sempre!

Não faço críticas a essas posturas e decisões! Claro que não há como resistir aos sons progressivos que vem da Alemanha, da Itália, do rock n’ roll que estronda nos Estados Unidos e Inglaterra, mas quando eu criei esse blog, esse humilde blog foi, basicamente, para fomentar o meu ávido interesse pelas bandas obscuras, pouco conhecidas, que não tiveram êxito comercial e, além das audições, aliar também a história que são extremamente ricas.

E assim, três anos depois de criado o blog, eu vejo que está surtindo efeito e percebo que o universo do rock é vasto e ilimitado e tem muito, muito a se explorar, a se garimpar. O rock, com suas bandas obscuras, sempre, diria isso, esteve rondando os meus pensamentos e fones de ouvido, e agora com a materialização do blog, explode em profusão de bandas.

E diante disso e fugindo um pouco, pelo menos um pouquinho, da Itália e Alemanha progressiva, do hard rock e psicodélico britânico e norte americano e vamos desembarcar na França. A França que tem sim um belo arsenal de bandas de rock n’ roll, sobretudo de bandas progressivas produzidas na década de 1970 e algumas até com certa credibilidade e popularidade como Ange, por exemplo.

Mas me foi apresentado, há algum tempo atrás, a primeira banda francesa de rock progressivo por alguns amigos tão amantes do estilo quanto eu em uma dessas reuniões despretensiosas regadas a música e muita cerveja: Essa banda se chama Pulsar. Quando ouvi, lembro-me de ter dito, com ênfase: Nossa, que bom que existe prog rock de qualidade em outros lugares do mundo! Foi arrebatador e digo que toda a sua discografia, não muito extensa, é maravilhosa e recomendo o álbum “Halloween” que escrevi uma resenha que pode ser lida aqui.

Porém não é do Pulsar que quero falar, mas sim de outra banda que descobri em meus garimpos pelas redes sociais, falo agora do CARPE DIEM. Pois é meus amigos leitores, o nome já induz a coisa boa! Carpe Diem, em latim, significa “Aproveite o dia”! E vos digo que há muito a se aproveitar com o Carpe Diem.

Carpe Diem

Não me recordo ao certo como a descobri, ou melhor, em que situação a descobri. Talvez tenha sido nas minhas garimpagens pela grande rede, ou recomendações, o fato, o mais importante é que quando a ouvi o mundo, por um instante, parou em referência ao som do Carpe Diem, a vida e o seu cotidiano para reverenciar esse som tão especial produzido por essa banda.

Mas antes de ir para as apresentações do álbum que será destrinchado, vamos contar uma breve história dos primórdios do Carpe Diem na França. A banda foi formada na Riviera, mas precisamente na bela cidade de Nice, no ano de 1969, pelo tecladista e vocalista Christian Truchi com os seus amigos de infância Claude Méchard e Roger Farhi. A banda era conhecida como "Deis Corpus".

Após alguns shows na região de Nice, a formação da banda foi recomposta em 1970 com novos músicos como Gilbert Abbenanti, na guitarra, Alain Berge no baixo. A banda, nesse período, passa a se chamar “Carpe Diem”.

Como Carpe Diem em uma nova concepção e formação a banda passa a tocar em vários clubes, como Golf Drouot e gibus, por exemplo, muito conhecidos à época, entre vários outros, construindo uma cena francesa de rock progressivo e, nesses shows, passou a apresentar suas próprias composições, tendo em Truchi o seu principal letrista.

O ano era 1974! A banda dedica-se a criação de suas próprias músicas e, com isso, novas mudanças acontecem com a entrada de dois novos músicos à banda: Alain Faraut, na bateria e Marius David, no saxofone e flauta.

Ao lado de bandas como Ange, Pulsar, Mona Lisa, Shylok entre outras foram notáveis na construção da cena progressiva francesa, sendo, entre elas, a menos conhecida, mas não menos importante no que tange a referência no estilo praticado naquele país. O Carpe Diem absorveu um pouco do prog rock que era praticado na Itália e Inglaterra, por exemplo, praticando um belíssimo e arrojado progressivo sinfônico com atmosferas jazzísticas e de space rock.

Apesar de não trazer grandes inovações na história desse segmento musical o Carpe Diem trouxe algo muito interessante que é a junção desses estilos que ajudaram a construir o rock progressivo, fazendo com maestria, com extrema competência, conectando todas essas peças musicais sem soar algo perdido, algo solto. Uma conexão incrível, com consistência, com substância e melhor: com robustez, com força, intensidade, mas, ao mesmo tempo contemplativo, viajante e por vezes soturno.

Definitivamente a música do Carpe Diem é diversificada, versátil e que, sim, pode atingir a todos os ouvidos e corações que aprecia todos os estilos, dentro do universo do rock, que vai do prog ao jazz fusion, ao space rock.

E são essas percepções que são sentidas, pelo menos para mim, no seu debut, o excelente “En Regardant Passer le Temps”, de 1976. Depois de muito tempo na ativa a banda lançaria seu primeiro trabalho oficialmente pelo pequeno selo “Arcane (WEA)”. 

Essa é a realidade de muitas bandas que não tem o apoio da indústria fonográfica e que, infelizmente não é “favorecida” pela geografia, porque simplesmente não está no eixo Inglaterra/Estados Unidos e ainda toca rock progressivo sem amarras com a música pasteurizada.

Embora se perceba em “En Regardant Passer le Temps” a presença de sons de bandas clássicas antigas como Camel, como Pink Floyd, Hawkwind e os progressivos sinfônicos das bandas italianas, percebe-se também, como disse, a junção dessas vertentes em uma massa densa, poderosa e de muita personalidade. É muito intricado, é muito complexo e construída de uma forma muito emocional, algo orgânico, vivo, pleno. É complexo, mas não é mecanizado e indulgente, isso nunca! 

As partes mais suaves desse trabalho do Carpe Diem seguem a veia mais sinfônica, tendo os teclados, o melloton, as guitarras acústicas e as flautas como protagonistas, mas também o teclado, os sintetizadores entregam a atmosfera mais voltada para a música espacial, o space rock, com a bateria e a guitarra dando o tom mais intenso, energético caracterizado pelo jazz fusion, pelo jazz rock.

A banda abusa dos instrumentos de sopro: saxofone, flauta, são os principais e isso faz com que a veia jazzística e sinfônica da banda sobressaia. Chego a conclusão de que o Carpe Diem não pode ser categorizada a um estilo, difícil ser rotulada, o que talvez em uma primeira audição venha a agradar aos que gostam dos diversos estilos que flertam, direta ou indiretamente, com o rock progressivo.

O Carpe Diem, na época do lançamento do excelente “En Regardant Passer le Temps”, era formada por Christian Truchi (teclado e vocal), Gilbert Abbenanti (guitarra), Alain Berge (baixo), Alain Faraut (bateria) e Marius David (flauta, sax soprano e percussão).

O álbum é inaugurado com a “Voyage du Non-Retour” que começa com um tiro curto, com quase e apenas quatro minutos de duração, mas que revela a beleza e diversidade sonora do Carpe Diem, com uma levada jazz rock de excelente qualidade, que vai ganhando expansão revelando um progressivo sinfônico.

"Voyage du Non-Retour"

Mas é na faixa “Réincarnation” que a banda mostra, em profusão, a essência de sua proposta sonora. Flautas viajantes, progressivo sinfônico e um rock espacial faz dessa música uma epopeia progressiva e jazzística.

"Réincarnation"

“Jeux du Siecle” lembra mais um som clássico de que propriamente de jazz fusion e sinfônico, muita rica em harmonia e com predominância do saxofone. 

"Jeux du Siecle"

E fecha o álbum a música “Publiphobie” é outra bela faixa que tem aquele híbrido, marca registrada da banda, entre sinfônico e jazz rock e cujo sax lembra e muito Van Der Graaf Generator, uma música bem animada e enérgica.

"Publiphobie"

Carpe Diem, com seu primeiro álbum, nos revela uma banda muito competente, diversificada sonoramente falando, de melodia e instrumental rico, com uma execução sólida e composições interessantes que se encaixam perfeitamente ao som produzido. 

Se você aprecia um rock progressivo sinfônico com uma riqueza instrumental intricada e complexa, mas com uma versatilidade conduzida por jazz rock, space rock e afins, encontrará em “En Regardant Passer le Temps” o destino certo para grandes audições.

E falando em grandes trabalhos e audições o Carpe Diem, no mesmo ano, em 1976, lançaria o seu segundo trabalho de estúdio chamado “Cueille Le Jour”, pelo selo "Crypto/RCA", que, para muitos, é um álbum mais bem acabado da banda em relação ao seu debut. 

Talvez seja verdade, mas o fato é que o primeiro traz a novidade de uma banda que ousou em unir os estilos mais proeminentes que construíra a estrutura, responsáveis pelo pavimento do rock progressivo, o fazendo com energia, contemplação, intimismo e um pleno desenvolvimento musical.

"Cueille Le Jour" (1976)

Em 1977 a banda tem, mais uma vez, novas mudanças na sua formação, com a entrada de Georges Ferrero, no baixo e Gérald Macia, na guitarra e violino e em 1978 se reúnem para a gravação do seu terceiro álbum de estúdio, mas a ausência de apoio e de distribuição, de um trabalho mais intensivo de divulgação da banda, o Carpe Diem se separou em 1979, mesmo com cerca de 400 shows realizados!

“En Regardant Passer le Temps” teve alguns relançamentos em 1977, por outro selo francês, “Crypto”, outro canadense, “Sterling”, também em 1977 e em 1994, foi relançado pelo selo “Musea”, pela primeira vez no formato CD e pelo selo “Belle Antique” em 2007. Com esses relançamentos felizmente há uma luz ao rock obscuro, sobretudo para o grande Carpe Diem que merecia um pouco mais de visibilidade, sobretudo pela banda e pela obra que tem.

Porém a persistência e o amor pela música desses caras fizeram com que, quase quarenta anos depois, a banda retornasse aos palcos, graças a iniciativa do tecladista e vocalista Christian Truchi em 2015, lançando, no mesmo ano, o seu terceiro álbum chamado “Circonvolutions”.

"Circonvolutions" (2015)

Carpe Diem atualmente

E a torcida fica para que o Carpe Diem venha a lançar mais e mais álbuns para que se perpetue na história do rock progressivo mundial como uma grande banda que é. Altamente recomendado!


Agradeço pelo grande tecladista, vocalista e compositor Christian Truchi que, quando mandei o texto sobre o "En Regardant Passer Le Temps" para a página do Carpe Diem no Facebook, me respondeu carinhosamente desejando um lindo futuro a página "Luz ao Rock Obscuro", fazendo também algumas correções históricas e me mandando detalhes fantásticos dos primórdios da banda que, claro, inseri em meu humilde texto, para incrementá-lo.

Ouso dizer que nenhum texto ou resenha sobre a banda produzida no Brasil e quiçá no mundo tenha tamanhas e relevantes informações sobre o Carpe Diem! 

Obrigado Mousieur Truchi pelo carinho, por ter lido e enviado detalhes da biografia do grande Carpe Diem. E obrigado, sobretudo, por criar essa grande banda progressiva para nosso deleite sonoro, para deleite da nossa alma. Merci!


A banda:

Gilbert Abbenanti na guitarra

Christian Trucchi nos teclados e vocais

Claude-Marius David na flauta, saxophone e percussão

Alain Bergé no baixo

Alain Faraut na bateria e percussão


Faixas:

1 - Voyage du non-retour

2 - Reincarnation

3 - Jeux du siècle

4 - Publiophobie


Carpe Diem - "En Regardant Passer Le Temps" (1976)






 





 





 




 














 


quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Ruphus - Ranshart (1974)

 

Tenho uma queda evidente e escancarada pelas bandas nórdicas! E falo de forma gritante, sou um réu confesso nesse sentido! Tem-se uma profusão de bandas e estilos totalmente arrojados, não tenha dúvida de que há vertentes do rock n’ roll para todos os gostos.

E especialmente falando da Noruega nós temos uma quantidade imensa de bandas que facilmente cai no gosto de muitos a começar, como exemplos, Aunt Mary, Titanic, Lucifer Was, uma das minhas preferidas, mas não podemos negligenciar a história de outra banda que, embora não seja tão obscura, merece figurar entre as grandes bandas pouco conhecidas, cuja sonoridade não é tão popular. Falo do RUPHUS.

Do frio dos Nórdicos vem o som quente e intenso de uma das bandas tidas como pioneira do hard rock, mas que, ao longo de sua trajetória discográfica, foi revendo, remodelando os seus conceitos sonoros e seguindo a sua história ao longo dos anos 1970.

O Ruphus foi fundado em 1970 na cidade de Oslo a partir de um grupo de amigos e é, como disse, tido como um dos precursores do heavy prog na Noruega, surgindo como uma das principais bandas de uma cena, naquela época, não tão grande, mas significativa e que praticamente desprezada pela indústria fonográfica. Mas a formação que se juntou em 1972 é que de fato se solidificou quando Kjell Larsen e Asle Nilsen se conheceram.

Ruphus

Mas mesmo com a pouca visibilidade seguiu forte, bem como as bandas contemporâneas sendo privilegiada por um abnegado público e também por poucos empresários perseverantes que, com toda a dificuldade possível e imaginável, promovia alguns festivais de pequena estrutura em algumas cidades norueguesas, dando a oportunidade a bandas como o Ruphus a seguirem com seus objetivos de levar, ao número máximo de pessoas possíveis, a sua música e arte.

A Noruega definitivamente não estava na rota do rock na década de 1970. Bandas como a Ruphus foram desbravadoras naquele país e simplesmente por este fator, já tem o seu nome na história do rock norueguês.

Mas finalmente, após a sua efetiva formação, em 1972, o Ruphus gravaria, pelo selo “Polydor”, uma gravadora de nome, o seu primeiro álbum chamado “New Born Day”, em 1973, considerado por muitos e, confesso que por mim também, como um dos mais bem-sucedidos da banda em sua pequena, porém importante discografia.


“New Born Day” contou com uma dupla de vocais femininos e masculinos e fazia uma interessante e avassaladora fusão de hard rock, classic rock e rock progressivo. Combinação essa que acarretou em uma harmonização sofistica, agressiva e intensa, muito intensa. Essa ambientação hard, heavy e prog trouxe ao álbum muita versatilidade e complexidade sonora.

Mas o destaque fica mesmo para a vocalista Gudny Aspaas com seu grande alcance e talento, um misto de hard rock com tendências heavy de vanguarda que rendeu alguma visibilidade para a banda, porém não obteve sucesso comercial.

Mas, subvertendo o óbvio, não irei falar, em requintes de detalhes, de “New Born Day”, mas do seu sucessor. De um álbum que foi um divisor de águas na história da banda, da curta carreira discográfica do Ruphus. Falarei de “Ranshart”, de 1974.

E essa guinada se deu, claro, na estrutura sonora da banda. E foi, penso, radical! O que era antes um som calcado no hard rock setentista, com viés progressivo e de classic rock, em “Ranshart” o Ruphus se revelou uma banda exclusivamente de rock progressivo com temperos sinfônicos lembrando a cena prog britânica, por exemplo.

E além de ter um grande apreço por este trabalho do Ruphus, a ponto de resenha-lo, terei a árdua missão de defende-lo. Por que defender? Simples! A banda, depois de seu bem-sucedido debut e com a mudança evidente em “Ranshart”, gerou certa rejeição entre os fãs mais puristas e viúvos de “New Born Day” e também dos especialistas que, entre outros comentários, lê-se que no segundo álbum a banda perdeu a identidade, perdeu a força etc.

Mas como perdeu a identidade se o Ruphus, já no primeiro trabalho, já denotava predileção pelo prog rock? É notória tais nuances na sua música em “New Born Day”, mesclado, claro, com o hard rock! Como também é notório, admitamos, a drástica mudança.

Se observa, mesmo com a mudança, uma qualidade na sua sonoridade, algo novo e com substância, consistência. E essa nova configuração em seu som se materializa na sua nova formação que também sofreu um forte impacto.

E com esse impacto, logo de cara, atingiu os dois cantores que atuaram em “New Born Day”, saindo Gudny Aspaas e Rune Sundby, bem como o guitarrista Hans Petter Danielsen também estariam fora do projeto do segundo álbum. O Ruphus de sete membros no primeiro álbum passaria a ter cinco músicos, com  Rune Østdahl como a nova vocalista em “Ranshart”. 

Vale também falar da arte gráfica de “Ranshart”, da concepção muito bem feita e arrojada, não apenas do segundo álbum, mas também do primeiro trabalho, “New Born Day”. As ideias partiram do baixista e flautista Asle Nilsen, onde a capa do debut do Ruphus, com aquela sombria paisagem de inverno e quando, na versão do LP, abre a capa tem a mesma paisagem nas cores das flores do verão, por isso que o nome é “New Born Day”, já o segundo álbum, o alvo de nossa resenha, o “Ranshart” é inspirado por um conto de fadas de um livro que Nilsen leu de Frans Werfel chamado “Song of Bernadette”.


Então a formação em “Ranshart” tinha: Rune Østdahl nos vocais, Kjell Larsen na guitarra, Håkon Graf nos teclados, Asle Nilsen no baixo e flauta e Thor Bendiksen na bateria. E outro ponto positivo deste álbum do Ruphus é a arte gráfica, da capa: exuberante e que fora concebida por Kathinka Rasch Halvorsen.

O álbum é inaugurado com a faixa “Love Is My Light” que começa com piano, Mellotron, órgão Hammond e os vocais muito diferentes de Rune. Definitivamente o destaque para o teclado dando o ritmo e tom da música com uma levada mais sinfônica seria a tônica de todo o álbum da banda.

"Love is My Light"

"Easy Lovers" oferece um lindo violão das linhas de baixo vigorosas de Larsen e Nilsen, sintetizadores majestosos flutuando no fundo, o genuíno rock progressivo no seu mais lindo ápice.

"Easy Lovers"

Tem sequência com a grandiosa “Fallen Wonders” com guitarras saborosas, com lindos solos que nos faz flutuar, sair do ponto comum e viajar a um doce desconhecido, sem contar com tons de baixo que acompanham fielmente a bateria bem cadenciada e, claro, os teclados em vertentes sinfônicas lembrando bandas como o Yes, por exemplo.

"Fallen Wonders"

“Pictures Of A Day” mostra uma atmosfera mais viajante, mais psicodélica, com sons eletrônicos e a presença marcante da flauta e sintetizadores mostra a forte realidade sinfônica deste álbum. Uma bela música instrumental.

"Pictures of a Day"

Finaliza o álbum com “Back Side” uma linda e poderosa balada sinfônica com destaque para os vocais e belo instrumental, intricado e complexo, fechando com chave de ouro. Um ritmo suingante com corridas alucinantes de hammond, violinos, uma faixa definitivamente dinâmica.

"Back Side"

Para divulgação de “Ranshart” o Ruphus fez uma turnê com uma razoável quantidade de shows e foi convidado para tocar no festival mais importante da Noruega, o “Ragnarock Festival”, em 1974. Teve três edições, o festival, acontecendo em 1973, 1974 e 1975. O Ruphus, além de ter participado da segunda edição, tocou também em 1975.

Ruphus se apresentando no Festival Ragnarock (1974)

A sua discografia, depois de 1976 modifica muito, tendo a banda flertando com a música negra, inclusive. Foram convidados para tocar em um festival na Alemanha chamado “Brain Festival”, promovido pela emblemática gravadora que sempre apoiou o rock alemão underground, principalmente pela nova cena sinfônica alemã, e se apresentar ao lado de bandas como Guru Guru, Novalis, Jane, Release Music Orchestra, Gate e Message, tendo até certo sucesso na Alemanha e em seu país natal apenas, o que ocasionou em seu fim, em 1981.

Porém a maioria dos membros do Ruphus ou pelo menos aqueles que se destacaram na banda ao longo de sua discografia, ainda são músicos ativos. Håkon Graf vive em Los Angeles e é muito ativo como músico de estúdio. Kjell Larsen também é muito ativo e tem muitos projetos em andamento. Thor Bendiksen tocou por um longo tempo, mas infelizmente ficou com zumbido no ouvido e teve que parar de tocar. Gudny Aspaas, vocalista da banda em “New Born day”, ainda está cantando e Jan Simonser também está tocando, exceto o baixista e flautista Asle Nielsen que construiu uma carreira como engenheiro de som e chefe de áudio profissional na “Bright Norway”.

Todos os álbuns do Ruphus foram relançados, em 2017, pelo selo “Karisma Records” e essa aproximação se deu devido a uma apresentação da banda em um festival de progressivo em Haugesund, na Noruega, nessas voltas da banda, em 2017 e lá estavam alguns representantes do selo. Eles conversaram com a banda que tinham o interesse de relança-los e a banda não hesitou, autorizando. Foi um processo de reativação da história da banda para as novas gerações e foi um sucesso, com vendas significativas.

“Ranshart” traz um rock progressivo sinfônico dos anos 1970 do jeito que deveria soar. Para aqueles que valorizam os dois lados da moeda dos dois primeiros álbuns do Ruphus entenderão que são momentos distintos de inquietude criativa, mostrando que nunca se renderam às linearidades da carreira e dos clichês dos rótulos, da temível e silenciosa zona de conforto. E vai valorizar sem sombra de dúvida o segundo e grande álbum do Ruphus.

Por mais que a crítica norueguesa não tenha recebido bem, à época, “Ranshart”, para contrariedade do Ruphus, foi sem sombra de dúvida um ponto de virada para a banda, que mesmo com a rotatividade de músicos que, sem sombra de dúvidas influenciou na sua sonoridade ao longo de sua discografia, mostrou também que o Ruphus, mesmo sem o sucesso comercial, tornou-se grande por não se escravizar por uma determinada sonoridade, abrindo asas para a música e tudo o que ela pode proporcionar. Uma grande banda norueguesa e, claro, altamente recomendado.


A banda:

Asle Nilsen no baixo e flauta

Thor Bendiksen na bateria

Kjell Larsen na guitarra

Håkon Graf nos teclados

Rune Østdahl no vocal

 

Faixas:

1 - Love Is My Light

2 - Easy Lovers, Heavy Moaners

3 - Fallen Wonders

4 - Pictures of a Day

5 - Back Side 


"Ranshart" (1974)