Nessa minha fantástica
caminhada de desbravar as grandes bandas que trafegam nas sombras das
obscuridades, me peguei em algumas boas e salutares discussões acerca das
condições que a sua sonoridade se relaciona, digamos assim, com o público. Uma
delas é: um projeto musical pode ser considerado uma banda?
Pode parecer uma pergunta um tanto quanto
desproporcional e boba, sem contexto algum, mas quando me vi refletindo sobre,
quando essa questão me veio por um bom amigo leitor, me coloquei a pensar. Será
que um projeto que, em tese, tem início, desenvolvimento e fim, pode ser
considerada como uma banda constituída, haja vista que, quando se tem uma
banda, presume-se que os seus músicos queiram a sua longevidade.
Projetos vem e vão, bandas
também vem e vão, fãs idem, cenas também, mas a música, quando é relevante para
os seus ouvidos e alma, sem dúvida alguma prevalecerá, passará pelos tempos e
modismos, incólume, viva e jovial. Independente de como ela, a música, é
concebida, ela é música e precisa ser apreciada, “degustada” como tal.
E essa banda, ou melhor, projeto
é digno de reverências, dada a sua originalidade e também a sua sonoridade que
nos remete aos prolíficos anos 1970, mas sem soar datado ou algo pasteurizado
com a intenção de atingir a determinados nichos ou cenas de cunho saudosistas.
Falo da banda ou projeto brasileiro, oriundo do Ceará, chamado CAIXÃO.
E que orgulho, ufanismos à
parte, dizer que se trata de um trabalho brasileiro, de material original e de
contundência sendo feito em um país que privilegia as músicas frívolas, sem
sentido e oca em sua concepção, mas essas tocam nas rádios, nas emissoras de
massa, em tudo quanto é lugar, chega a ser leviano fazer essas pífias
comparações. A Caixão já começa a ser underground e pouco “ortodoxo” com o seu
nome.
E foi com o seu nome que,
quando o conheci, lá pelos anos caóticos da crise sanitária da COVID-19, que
realmente me chamou a atenção (risos)! São as maravilhas do mundo do
underground e também os meus apreços e predileções musicais. E diante de tanto
lixo musical que nos chega sem sequer pedirmos, torna-se urgente filtrar, para
não cair na asneira de ouvir porcarias.
O projeto começou, em 2018,
com o baterista Ítalo Rodrigo, conhecido pela banda seminal de crossover Damn
Youth e também no Echoes of Death. Ítalo trouxe à tona a Caixão com o intuito
de ser um projeto, porque, além de ser a sua concepção, ele pincela os músicos
que o acompanha na sua empreitada sonora. Ítalo é a Caixão, pelo menos por
enquanto, porque tudo indica que o projeto poderá vir a ganhar contornos de
banda. Pode parecer estranho essa condição, afinal, a Caixão é uma banda
constituída, independentemente de sua essência.
Lançou, em abril de 2019, um
single, de nome “Pássaro Holograma” e um EP, com 5 músicas, também no mesmo mês
e ano, de nome “Caixão”. Em setembro do mesmo ano gravou um “Split”, ou seja,
um álbum com outra banda, chamado “Candelabro”, com a banda Abismo. O ano de
2019 foi bem agitado para a Caixão! Porém somente em outubro de 2020, em pleno
auge da pandemia do COVID-19, lançou seu primeiro álbum chamado “Da Porta ao
Sumiço”, cujo selo é a Abraxas, conhecida por ter em seu cast bandas de stoner,
doom e occult rock da atualidade. E o cenário do caos sanitário também trouxe
um formato um tanto quanto atípico na concepção do álbum sob o aspecto da
gravação e sem sombra de dúvida na composição das letras. E será esse álbum
alvo do texto de hoje.
“Da Porta ao Sumiço” foi
concebido pela seguinte formação: além de Ítalo Rodrigo, na guitarra, o “dono”
do projeto, trouxe Mirelle Sampaio, também na guitarra, Renato Alves, no baixo,
Jardel Reis na bateria, com a participação no vocal e na letra de Ângelo Sousa,
na música “Vulto”. A arte da capa contou com Fernanda JFL.
O processo de criação do álbum
se deu de uma forma bem usual, apesar dos tempos temerosos da pandemia, tendo
as ideias vindo em momentos totalmente inusitados, tendo como ponto central as
músicas surgirem a partir de um riff. O trabalho foi todo feito em casa,
afinal, o caos pandêmico exigiu um distanciamento social, o que certamente deve
ter impactado o talentoso Ítalo a conceber as faixas que compunham esse álbum.
Usaram para fazer a captação, sendo gravado em caixinhas de guitarra, que
inclusive o baixo também foi gravado na caixa de guitarra. A mixagem e
masterização ficou por conta de Guilherme Mendonça, amigo de Ítalo.
“Da Porta ao Sumiço” é um
álbum que remete às sonoridades setentistas, que vai do hard rock ao psych.
Passa pelo progressivo também, nuances mais discretas dessa vertente, mas
também com um pé em sonoridades mais contemporâneas, como o stoner rock, por
exemplo. O som da Caixão não é, com isso, datado, talvez homenagens às bandas
de occult rock dos anos 1970 relegadas ao ostracismo, mas que soa com muito
frescor, pois evoca o contemporâneo e a capacidade de se mostrar muito
diversificada e difícil de se rotular.
É, sem dúvida, um registro
contemporâneo, com referências do passado. É tão diversificado e complexo o som
da Caixão neste trabalho que eles conseguem ser solares e introspectivos em uma
única música, repetindo-se, em outras faixas. É inegável que, ao ouvir “Da
Porta ao Sumiço”, não se consiga cativar pelas melodias envolventes e cheia de
personalidade, sem contar com os riffs poderosos de guitarra que traz a versão
pesada às músicas, propiciando os diversos andamentos distintos nelas, causando
ao ouvinte um arrebatamento sonoro.
Como o próprio nome sugere,
bem como a sua sonoridade, a Caixão dignifica, por intermédio de seu debut, uma
roupagem, como disse, diversificada e calcada nos anos 1970, com viés
atualizado trazendo o peso do stoner rock, tudo isso envolto em uma textura bem
interessante de occult rock que beira, inclusive, a uma trilha sonora de um
filme de terror. Me trouxe à tona até bandas como a italiana Goblin, por
exemplo, que sempre explorou o cinema fazendo trilhas para o icônico cineasta
Dario Argento.
“Corrente” segue agora com uma
veia mais hard rock com riffs mais pesados de guitarra que, em determinados
momentos, fica mais cadenciado, mas nunca leve ou introspectiva. É pesada! A
“cozinha” é eficiente. Bateria pesada e marcada, baixo galopante, teclados
enérgicos, mas ainda assim, sombrios.
“Die in the Flame they
Created” traz à memória algo de Blue Oyster Cult mais dançante, aquela fase
mais comercial da banda dos anos 1980, mas que não negligencia de forma alguma
sua pegada occult rock. O stoner se faz presente, o peso e os riffs de guitarra
entregam essa vertente na faixa. “And Now Look At the Size of the Damage” segue
basicamente a mesma proposta da faixa anterior, dando um caráter mais pop e
comercial ao occult rock que permeia na música.
“Mariposa” traz de volta o
peso do stoner rock, capitaneado pelos riffs pegajosos e pesados de guitarra. A
seção rítmica segue o conceito da música, se mostrando engenhosa e igualmente
pesada. A bateria bate forte sem piedade alguma, mas ainda assim, temos algumas
mudanças rítmicas. Bela música!
Segue com “Vulto” e a proposta
pesada ainda paira sob esse momento do álbum e o hard continua pleno, os riffs de
guitarra continuam em destaque, a bateria é pesada, porém cheia de viradas
emocionantes. Percebo uma pegada mais heavy metal nesta faixa. A energia e a
fluidez nessa música são deveras perceptíveis.
“Poeira na Luz do Sol” chega
mais sombria, mais introspectiva, com uma pegada pesada, porém arrastada,
cadenciada, um stoner mesclada a um discreto doom metal. O baixo ganha destaque
nessa faixa. É vívido, tocado alto, de forma galopante. A bateria basicamente
segue marcada e os riffs de guitarra torna a faixa mais pesada. “Passeio no
Céu” traz, mais uma vez, uma textura mais sombria, como na faixa anterior, algo
mais introspectiva e soturno. Junto a isso uma pegada mais lisérgica envolve
toda a proposta da faixa. A fala ao final da música é um trecho do filme
“Compasso de Espera”, de 1973, dirigido por Antunes Filho.
E fecha com “Goodbye Sanity” que
se mostra com uma roupagem mais comercial, mais pop e bem dançante. Um conceito
em voga entre as bandas atuais de occult rock que mescla o comercial com o
occult rock que não é nada original, mas que atualmente é bem difundido nas
músicas das bandas que compõe a cena hoje.
“Da Porta ao Sumiço” pode ser considerado um
álbum conceitual, afinal, as músicas, antes de qualquer coisa, se conectam,
sonoramente falando. E o significado do nome do álbum também “amarra” esse
conceito, pois o sumiço pode ser tanto para dentro quanto para fora, a partir
da porta. Significa sumir de si ou dos outros. As faixas trazem esse ambiente
de dúvidas, de fraquezas, de medos.
A banda lançou, em março de 2024, o single “Luz Estranha em Quixadá” e recentemente, em julho do mesmo ano outro single de nome “Bloodstains”. Esta última serviu como prenúncio para o lançamento do seu segundo álbum chamado “Entre o Velho Tempo Futuro”, previsto para ganhar luz em setembro. Remessas, no formato vinil, serão disponibilizados a partir de outubro.
O que nos resta, enquanto apreciadores do bom e velho occult rock, é aguardar ansiosamente por este tão aguardando novo álbum para ter de volta a Caixão despontando nos palcos e destilando suas músicas carregadas em hard rock, stoner, psicodelia e progressivo. E que o projeto se torne uma banda oficial e longeva. Se a música for o peso determinante não tenha dúvida de que isso logo acontecerá.
A banda:
Ítalo Rodrigo na guitarra
Mirelle Sampaio na guitarra
Renato Alvez no baixo
Jardel Reis na bateria
Com
Ângelo Sousa no vocal e letra
de “Vulto”
Faixas:
1 – Hora de Ir
2 – Corrente
3 – Die in the Flame they
Created
4 - ...And now look at the
Size of the Damage
5 – Mariposa
6 – Vulto
7 – Poeira na Luz de Sol
8 – Passeio no Céu
9 – Goodbye Sanity (Bônus)