quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Kaamos - Deeds and Talks (1977)

 

Este reles e humilde blog tem me revelado, juntamente com os meus garimpos, o que hoje tem sido óbvio, muito óbvio: de que o rock n’ roll é universal, diversificado e ainda selvagem, intocável em alguns rincões do planeta.

É pensar em demasia limitado achar que países como Inglaterra, Estados Unidos, Itália e Alemanha, por exemplo, sejam o centro desta música de que tanto amamos e em nenhum outro lugar existir nada que possa ser devidamente valorizado pela sua qualidade sonora.

São tantas bandas esquecidas, raras, com seus álbuns por alguns subjugados pelo simples fato de não se adequarem à importantes mercados consumidores da música ou a “formatos” sonoros “fora de moda”.

“Fora de moda”, descolados do tempo é outro tema difícil dentro do “show business”. Essa eterna questão de o tempo “julgar” a música e de que precisamos nos adequar às novas tendências de música é outra conversa perigosa construída pelo marketing perverso da indústria fonográfica. Por que aquela música que você se identifica não pode estar presente em seus dias?

E a banda de hoje se desloca de um tempo em que o rock progressivo não estava mais em alta, mas, ainda assim, valorizando as suas verdades sonoras, decidiu, a duras penas, seguir e gravar um álbum no fim da década de 1970 na fria Finlândia. Vejam o cenário totalmente adverso: gravar um álbum de prog rock no final dos anos 1970, na Finlândia.

Era o punk em voga, música rápida e simples, de poucos acordes, era a época da disco music, da música das pistas de dança, animadinhas. Não tinha mais espaço para as músicas trabalhadas, conceituais e tudo que o valha. Mas convenhamos, o prog rock sempre foi marginalizado com exceção de alguns figurões que conseguiram se transformar em “bandas de arena” elevando um pouco o nome da cena.

Mas voltando a Finlândia, a banda KAAMOS foi formada em Turku, sudoeste da Finlândia, pelo guitarrista Peter Strelmann e o tecladista e organista Ilkka Poijärvi. O nome “kaamos”, de origem finlandesa, significa “a noite polar quando o sol nunca nasce”, algo extremamente comum naquele país escandinavo.

Os membros originais consistiam na formação de quatro músicos: além do guitarrista Strelmann e o tecladista Poijärvi, trazia Eero Valkonen, na bateria, Eero Muntarkarma no baixo e o vocalista americano Jimmy Lewman. O organista Ilkka Pojärvi logo abandonaria a banda, bem como Lewman que sairia no ano seguinte à formação da banda, em 1974.

Este último foi substituído pelo guitarrista Ilpo Murtojarvi e pelo cantor/baterista Johnny Gustafsson. O verão de 1975 vê a saída de Strelmann, que se juntou ao Exército, e foi substituído pelo tecladista Kyosti Laihi.

O tecladista Kyösti Laihi, que era membro do “Pepe & Paradise” e também da banda Hellmann's Youth Society, quando chegou no Kaamos defendeu ardorosamente que a banda deveria tocar rock progressivo ao estilo Camel, Yes e Genesis, afinal, no início da década de 1970, quando o Kaamos foi formado, era o auge do estilo e também trazia a experiência por ser um músico que havia tocado em várias bandas locais.

Mas a banda sofreu muito com as intensas e constantes mudanças em seu line up, era um entra e sai direto de músicos e isso quase desintegrou o Kaamos, principalmente após a saída de um de seus membros fundadores, o guitarrista Peter Strelmann. Então Laihi, que parece ter assumido o comando da banda, recrutou Ilpo Murtojärvi, que foi guitarrista e compositor por um tempo da banda “Karma”. Pediu a ele que escrevesse uma música para a banda. 

No final eles se estabeleceram em um quarteto, como no início, formado por Kösti Laihi, nos teclados, Ilpo Murtojärvi, na guitarra e Jonny Gustafsson na bateria e vocal e Jakke Leivo, no baixo, ambos ex-integrantes de uma banda de orientação “pop” chamado “The Islanders.Ing”.

Neste momento do Kaamos já não tinha nenhum membro da formação original, o que era um desafio e tanto manter as arestas sonoras da banda, sem uma referência de sua história. Então decidiram cair na estrada para se apresentar, divulgar a sua música.

De Turku, a cidade natal do Kaamos, até a capital, Helsinque, tocaram em clubes, apresentaram suas músicas autorais que adicionavam blues, funk e folk à música clássica, era o prog rock e a sua capacidade de se híbrido, como o rock na sua gênese.

Em 1975 o Kaamos gravou uma fita demo e negociou com várias gravadoras para gravar um álbum oficialmente, mas era meados dos anos 1970, o rock progressivo não estava na crista da onda, afinal o punk e a new wave, entre outras músicas de cunho mais radiofônico e comercial eram as pepitas de ouro da indústria fonográfica, então as portas se fechavam. Mas a luz no fim do túnel se fez e veio da sua terra natal, Turku.

A M&T Productions, gravadora fundada em 1975 pelos irmãos Matti e Teppo Ruohonen, descobriram o Kaamos que era da mesma região. Uniram o útil e o agradável, já que a jovem gravadora estava precisando de novas bandas ao seu cast e o Kaamos estava precisando de gravadora, a banda então assinou contrato em 1976 gravando o seu primeiro e único trabalho, no início de 1977, chamado “Deeds and Talks”.

"Deeds and Talks (1977)

“Deeds and Talks” é um álbum majoritariamente de rock progressivo, com forte viés sinfônico, baseado em várias texturas de teclados e guitarras líricas, solos bem trabalhados de guitarra, até em demasia, o que, pelo menos para este que vos fala, é muito prazeroso, o que o torna um álbum especial, incluindo ainda lindas passagens de sintetizadores de movimentos interessantes, bem agitados, em uma mescla bem interessante entre o progressivo britânico com nuances do típico folk rock escandinavo, outro fator extremamente interessante para mim.

É percebido no debut do Kaamos uma guitarra bluesy, mas suaves, que nos traz à lembrança de bandas como Camel, com melodias enérgicas que me lembra Wigmam tardio, diria. Embora “Deeds and Talks” não seja um álbum inovador, ele merece uma audição pelo fato de entregar exatamente essa miscelânea de vertentes sonoras que construíram o hibridismo progressivo no fim dos anos 1960 e que se constatou em seu apogeu entre 1971 e 1974, mais ou menos.

O álbum é inaugurado com a faixa “Strife” que é centrada em guitarras de blues, com solos diretos, porém bem trabalhados, límpidos e bem executados, com teclados que traz uma textura graciosa e com uma bela performance de flauta. Essa performance meio blues e o vocal do baterista, embora não seja um primor, me fez lembrar os primeiros tempos do Bad Company meio “nórdico”! Loucura, não?

"Strife", live at Wimma, Turku, 2010

“Are You Turning” segue cheia de senso melódico que tece notas de teclados bem nostálgica, algo viajante e contemplativo, diria. A guitarra é potente, enérgica, solar, com solos diretos, mas empolgantes. Os vocais, dessa vez, são bem agradáveis, bem melodiosos, algo típico dos países escandinavos, sabe? Não saberia dizer sob o aspecto técnico e/ou comportamental, mas é algo que me parece óbvio.

"Are You Turning", live at Wimma, Turku, 2010

A próxima faixa, “Delightful” é especial pois tem uma participação efetiva e competente, sob o aspecto instrumental, de todos os músicos, com destaque para uma bateria delicada, bem executada, no auge de sua simplicidade, e teclados contemplativos. Há alguns compassos deliciosamente estranhos e casuais, com elementos evidentes de jazz rock e vocais ao estilo Ian Anderson, do Jethro Tull. Bela música!

"Delightful", live at Helsinki, 2012

“Barocchi” traz também uma faixa instrumental muito bem executada, com uma pegada clássica, com um groove brilhante e bem contagiante, com o pleno uso do Moog. Na segunda metade o solo de guitarra se desenvolve muito bem, em uma versão rock, bem como do órgão.

"Barokki", live at Finland, 2012

“Isabelle Dandelion” é uma balada bem melancólica, dramática, diria soturna, ao som de violão e piano em plena e total sinergia sonora e os vocais pungentes de Gustafson são verdadeiramente emocionantes.

"Isabelle Dandelion", live at Wimma, Turku, 2010

Segue com “Moment (Now)” que imprime uma pegada mais jazz rock com teclados lindos e solares com guitarras mais poderosas, elásticas e até pesadas. As harmonias vocais e, mais uma vez, o todo instrumental são fantásticos. As guitarras se mostram afiadas, os teclados flutuantes, com o fusion protagonizando.

"Moment (Now)", live at Helsinki, 2012

“When Shall We Know” entrega uma atmosfera mais funky, algo dançante, em uma miscelânea com o blues e, claro, o rock progressivo, sendo soberbamente introduzido, sem soar “deslocado”. O piano é tanto quanto enérgico e o conjunto da obra tem um sentido de AOR.

"When Shall We Know", live at Wimma, Turku, 2010

O álbum é excelentemente encerrado com a faixa “Suit-Case” que, como o nome já sugere, trata-se de uma grande e instigante “peça” de rock progressivo que dura mais de oito minutos e tem um lindo e potente arranjo de teclado que me remeteu aos grandes e interessantes momentos do Greenslade, banda a que tenho adoração. Ele se torna, em alguns momentos, experimental, com “quedas” para improvisações, apresentando elementos de complexidade e cheio de emoções.

"Suit-Case", live at Wimma, Turku, 2010

“Deeds and Talks” é assim: um rock progressivo com forte viés sinfônico com um senso de melodia nórdica, tendo como alicerce teclados do rock progressivo britânico e guitarras incandescentes de blues e funk, com viagens jazzísticas. Ou seja, traz a plenitude da versatilidade.

O álbum ganhou alguma notoriedade, algum elogio por parte dos críticos musicais da Finlândia, sendo considerado como o melhor momento do rock progressivo daquele país desde a fundação do Wigwam, inclusive, porém a resposta do mercado foi tímida, morna, provavelmente por ter sido concebido por um selo pequeno e que ainda estava engatinhando, além das novas predileções da indústria fonográfica pelo punk rock e new wave, sendo as vendas decepcionantes.

Mas apesar de todos esses entraves o Kaamos continuou a se apresentar localmente, em sua terra natal, Turku, mas não resistiu a esses reveses e se separou em 1980. Sentiram falta, em decorrência desse cenário totalmente contra, de um público interessado e substancial para assisti-los também nas apresentações.

O tecladista Kyösti Laihi formou o Boulevard com Erki Korhonen. Em 1989 sofreu uma esclerose múltipla, mas que não o impediu de continuar ativo nesta mesma banda até os anos 2000. Como compositor escreveu várias músicas para vários cantores e, em 2002, gravou a música "Eteenpäin" com a Seitzema Seinaflua Bergesta Band.

O baterista e vocalista Johnny Gustafson se juntou a um grupo de dança “Bogart Company”, que se tornou sucesso e a mais tarde se reuniu a banda Bluebird. Depois disso, ele seguiu uma carreira solo, mas morreu em 9 de outubro de 2021.

O baixista Jakke Leivo se tornou um pioneiro no ensino do baixo na Finlândia e desde então tem sido professor titular do instrumento no no Helsinki Conservatory of Pop and Jazz, no Departamento de Educação Musical da Sibelius Academy e no Helsinki University of Applied Sciences Stadia.

O guitarrista Ilpo Murtojärvi formou o grupo new wave Pasi & Mishin no início dos anos 1980, tocando com os renomados guitarristas Anna Hansky, Aneli Thurliston e Joel Harikainen. Mais tarde, ele se tornou músico de estúdio e atuou como professor de guitarra pop e jazz no Conservatório de Turku. Em 2015, ele foi indicado como o melhor artista pela Turku Jazz Association em reconhecimento às suas realizações na composição e ensino de jazz.

Com um movimento de ressurgimento do rock na Finlândia “Deeds And Talks” foi “reavaliado” e entendido como um clássico do rock progressivo obscuro, ganhando uma reedição, limitada em vinil, em janeiro de 2016 pelo selo “Rocket Company”. Mas antes, em 2010, este álbum foi relançado em CD pela mesma gravadora.

“Deeds and Talks”, do Kaamos, apesar do seu infortúnio, se revela grandioso, mesmo não trazendo nenhum elemento de vanguardismo em seu som, mas feito com sinceridade, competência, sem se deixar rotular por uma vertente ou estilo. A prova contundente da qualidade do trabalho foi a carreira dos seus músicos pós Kaamos, extremamente prolífica, bem-sucedida, corroborando a importância deste álbum para a história do rock n’ roll finlandês e quiçá europeu, onde o prog rock reina absoluto.



A banda:

Johnny Gustafsson nos vocais, bateria e percussão

Kyösti Laihi nos teclados, moog e sintetizadores e backing vocals.

Ilpo Murtojärvi na guitarra e backing vocasl

Jakke Leivo no baixo

 

Faixas:

1 - Strife

2 - Are You Turning

3 - Delightful

4 - Barokki

5 - Isabelle Dandelion

6 - Moment (Now)

7 - When Shall We Know

8 - Suit-Case 



"Deeds and Talks" (1977)