Ecos de um longínquo passado,
tão distante que parece soar primitivo em determinadas sonoridades. Datado?
Talvez! Fora de moda! Moda vem e vai, modismos transparecem para mim algo tão
vazio e frívolo que sequer possa interessar aos que gozam de mínima
personalidade.
Mas parece a fusão do blues e
o rock foi um processo de extrema revolução nos idos de 1967, 1968, com a
profusão de bandas que aliou criador e criatura em um caldeirão fervilhante,
intenso e de uma plenitude sonora bem interessante. O Cream, juntamente com
Jimi Hendrix, trouxe a potência do rock e a melancolia sombria do blues,
eletrificando, tornando pesado uma vertente que traria outras tantas e tantas
bandas seminais fazendo jus aos criadores.
O que dizer de Led Zeppelin ou
ainda do underground Blue Cheer ou de John Kay com seu Steppenwolf? Referências
que se confundiram com o blues rock, mesclados ainda ao hard e o psych que
também estavam pairando pela cena rock na transição dos anos 1960 e 1970.
As bandas seminais e famosas
ganharam o mundo, levaram seu nome para o mais alto patamar e excelência do bom
e velho rock n’ roll e estão no rol dos clássicos indiscutíveis. Mas e as
bandas obscuras? Não podemos discuti-las? Não podemos coloca-las no mesmo
patamar de importância?
Bem esse blog que você, estimado
leitor, está navegando, traz as bandas obscuras, raras e undergrounds a um nível
de protagonismo, mesmo no ápice de seus fracassos comerciais e, aproveitando o
ensejo da cena blues rock, que muito me cativa, gostaria de trazer uma banda,
surgida na fria Dinamarca, que entrega uma sonoridade quente e diversificada e
se chama MOSES.
Quando busquei referências de
pesquisa para construir esse texto que você, bom amigo leitor, está lendo, li
alguns comentários do tipo: “Nossa, é um álbum fraco”! “Um álbum básico demais”!
“Uma cópia barata do Ten Years After”! Evidente que não quero entrar no mérito
das opiniões, afinal, são pessoais e precisam ser respeitadas, mas o “básico”,
penso, não pode ser assimilado a algo ruim. Muito pelo contrário, é a essência
do rock, a gênese de um estilo.
Quando ouvi, pela primeira
vez, o primeiro álbum do Moses, “Changes”, de 1971, foi tão arrebatador que me
fez, com o perdão das famigeradas comparações, lembrar as estreias de bandas do
naipe de Black Sabbath e Blue Cheer, por exemplo. Uma sonoridade tão primitiva
e básica, calcada no peso, em um blues rock elétrico, distorcido e agressivo. A
trinca guitarra, baixo e bateria traz uma pegada, além da já comentada, pegada
pesada, traz um despojado, algo tão despretensioso, que beira até a inocência
de seus músicos, sem contar que o vocal lembra de um bebedor inveterado.
Se para muitos isso possa
trazer a noção de amadorismo, para esse que vos escreve é o charme de todo o
conteúdo, seja ele intencional ou não. “Changes” é fantástico por isso!
Guitarras wah-wah cheia de distorções e lisergia, hard rock, aquele blues
eletrificado, tantos atrativos mesmo para um álbum tão básico. É louco, não
acha? Ainda encara o básico como ruim? Sugiro rever os conceitos...
Mas antes de destrinchar o
único rebento do Moses, “Changes”, vamos tentar falar um pouco dos primórdios
da banda. Já digo, amigo leitor, de antemão que, por se tratar de uma banda
obscura, pouco se sabe sobre, poucas foram as referências encontradas, mas as
linhas desse texto precisam se fazer existir.
O Moses foi formado em uma
cidade chamada Esbjerg, na Dinamarca. E o conceito de seu estilo vem muito do
passado de dois de seus integrantes, são eles: Jørgen Villadsen e Søren
Højbjerg, vocais e baixo e guitarrista, respectivamente, que tocaram em uma
banda de blues chamada Fresh Boiled, em 1968. Na realidade essa banda seria o
esboço do Moses. Henrik Laurvig, o baterista, tocou em diferentes e várias
bandas locais e juntou-se a Jørgen e Søren quando a banda mudou seu nome para
Moses, no início de 1969.
A partir daí o Moses
excursionou sem parar durante o ano de 1969 e por toda a sua precoce existência
e, em 1970, estava em contato com uma gravadora underground chamada Spectator
Records. O selo estava muito interessando em gravá-los, contratá-los, mas
precisava ver os shows dos caras para ter a certeza de que eram bons o
suficiente ao vivo para ter o melhor resultado em estúdio e no verão daquele
mesmo ano gravaram, por incríveis dois dias, “Changes” no Spectator Record
Studio, em Ålborg, na Dinamarca, porém o álbum só foi lançado em 1971.
A responsabilidade da distribuição
ficou a cargo da Spectator Records e teve uma reduzida tiragem, pasmem, de
apenas 500 cópias, tornando-o hoje um produto muito valorizado nos sites de
vendas de vinis, como acontece frequentemente com muitos desses tesouros
obscuros e perdidos dos anos 1970. E como poucos teriam acesso a esse vinil por
conta do alto valor, a sorte de nós, pobres mortais, é de que temos alguns
canais no YouTube, abnegados, que difundem o álbum, bem como blogs e sites que
trazem, além da sonoridade, a história de bandas como o Moses.
E como a banda durou meros
três anos ou um pouco mais, ou seja, uma curta existência e trajetória, a
formação que gravou “Changes” trazia, como já mencionados: Søren Højbjerg na
guitarra, Jørgen Villadsen no vocal, baixo e Henrik Laurvig na bateria. E como
também já comentado trazia um hard rock com generosas pitadas de blues e um
tempero saboroso de acid rock, com muita lisergia. O peso, aliado ao despojado
de sua sonoridade era o charme e fazia da música algo bastante característico,
apesar de não trazer nada de revolucionário.
O álbum é inaugurado com a faixa título “Changes” e já escancara com um proto metal configurado em riffs potentes e pegajosos de guitarra com uma levada bluesy. O som é arrastado e pesado, mas traz uma pitada sombria, soturna, diria. Solos de guitarras lisérgicas, ácidas são ouvidas, o peso é corroborado pela “cozinha”, com baixo pulsante e bateria marcada. Mas logo volta ao estágio arrastado que iniciou a faixa. O vocal é um destaque à parte, bem despretensioso. Não hesitaria em dizer que essa faixa trafega entre o stoner e o doom.
A sequência tem “I’m Coming
Home” que abre com um baixo dançante e com algum groove. A sonoridade me remete
ao psych rock com as já perceptíveis pitadas de blues rock. Solos pesados de
guitarra rasgam a faixa em um estrondo hard rock tipicamente setentista e logo
retoma ao baixo dançante com pegada ácida.
“Everything is Changed” já
começa rasgando com riffs arrogantes e agressivos de guitarra. Aqui o hard rock
se faz vivo e pleno, mas as bases trazem o psych rock, a lisergia igualmente
presente em toda a estrutura sônica do álbum. Os solos de guitarra aparecem e
trazem a certeza do peso dessa faixa. A sessão rítmica também seu destaque e
cadencia a camada hard da faixa.
Segue com “Beginning” que abre
com um solo curto e direto de bateria, com algumas viradas interessantes e logo
irrompe em riffs e solos desconcertantes de guitarra e um baixo muito pulsante
e vivo. A destreza instrumental nesta faixa é escancaradamente vibrante e
excitante! Um volumoso e potente hard rock que conta ainda, já para o final da
música, com um poderoso e arrasador solo de bateria.
“Skæv” segue na linha hard
rock e é cantada em dinamarquês. Um hard rock arrastado, mesclado ao psych rock
e um proto stoner invejável. Certamente uma das mais pesadas faixas do álbum,
com um trabalho excelente de guitarra. E quando se junta a forma mais agressiva
ainda da bateria, a música assume uma roupagem mais de proto metal. Incrível!
E fecha com “Warning” traz à
tona, mais uma vez, a competência rítmica da “cozinha” da banda. Batidas fortes
da bateria, o baixo pulsante, solar e dançante dá lugar a riffs pesados de
guitarra. O blues rock retorna e vem pesado e intenso. Os solos de guitarra,
mais uma vez, ganham destaque, e vem com a já percebida vibe psicodélica, com a
lisergia como pano de fundo. E desses “fragmentos” temos uma sessão
instrumental apoteótica, repleta de viradas e momentos distintos.
O Moses não conseguiu êxito
comercial após o lançamento de “Changes”, em 1971, mas seguiu fazendo shows, se
apresentando, mas não conseguiu fazer sucesso e divulgar o seu trabalho. Não
teve também a estrutura ideal para tal por parte do selo que também não gozava
de capital para tal investimento. Em 1972 a banda se vê obrigada a finalizar as
suas atividades.
Porém seus integrantes
seguiram, direta ou indiretamente, no mercado da música. Søren Højbjerg ainda
está trabalhando como diretor de sua própria organização dinamarquesa de
reservas e shows, SHB Agency, em Esbjerg. O baterista Henrik Laurvig continuou
em diferentes bandas, a mais famosa das quais foi Mani, com quem gravou o álbum
“Kontiki”, pelo selo Genlyd Records, em 1985. Junto com sua carreira musical,
ele trabalhou como gerente de vendas nas gravadoras CBS Records e Warner Music,
ambas da sucursal da Dinamarca. Já o baixista e vocalista Jørgen Villadsen
perdeu o contato com seus antigos companheiros de banda, e atualmente não se
sabe sobre seu paradeiro atual.
Um som despojado, inocente,
ruim, pouco apurado em termos de melodia, fraco, divertido, atraente por ser e
por ter uma sonoridade suja e teoricamente mal produzida. Tantas são as
percepções, mas com uma única certeza. É pesado e, no mais puro conceito de seu
som, se faz diverso e cheio de possibilidades para os mais variados “paladares”
de som que flerta com o blues rock, o hard rock, com o proto stoner e doom.
Mesmo básico é diverso. O conceito de tempo parece ser tão irrelevante para o
Moses e seu único trabalho que a discussão de ser ou não datado, torna-se
pueril. “Changes” teve um relançamento, em 2010, no formato “CD” pelo selo “Shadocks
Music”.
A banda:
Jørgen Villadsen: no baixo e
vocal
Henrik Laurvig: na bateria
Søren Højbjerg: na guitarra
Faixas:
1 - Changes
2 - I’m Coming Home
3 - Everything Is Changed
4 - Beginning
5 - Skæv
6 - Warning