Atualmente falar que a cena
italiana de rock progressivo e também de outras vertentes expandiu de uma forma
quantitativa e qualitativa não é novidade para ninguém. Mas não podemos, ainda
assim, deixar de falar o quanto os italianos vivem e respiram a cena como uma
manifestação cultural, como de fato o é.
É inacreditável a quantidade
de bandas que povoam os palcos italianos que vem produzindo músicas, não
emulando às bandas dos anos 1970, mas fazendo, de forma arrojada, a sua própria
música, contemporânea, com o frescor dos novos tempos, sem se seduzir com o
glamour pasteurizado do mainstream e sim, nada menos do que homenageando
as bandas que desbravaram a música progressiva dos primórdios anos setentistas.
Nos últimos 30 anos um boom
avassalador está impactando as estruturas sonoras do rock italiano construindo
uma nova perspectiva de som, trazendo as boas novas de cada ano mágico que o
rock italiano tem. Há vida pulsando no hard rock e progressivo da Itália, não
há um passado ultrapassado e carcomido.
Diante de uma cena interessada
e ávida por consumir a música progressiva a oferta, mesclada a um impacto de
criatividade, se faz presente, fomentando, inclusive, o ressurgimento de muitas
bandas clássicas e obscuras que a tempos hibernava no berço da sua história, a
produzir material novo.
O flerte do passado e o futuro
é notório e se entrelaçam em uma cena plena e latente, fazendo do prog italiano
uma realidade viva e intensa. Tenho, com fiel atenção, acompanhado esse
fenômeno que está longe de ser efêmero e conhecendo grandes bandas que definitivamente
está ganhando, não apenas a minha audiência, mas a dos italianos e do mundo.
E uma banda que sempre quis
escrever sobre, e eis que foi chegada a hora, personifica, com requintes de
originalidade, essa cena. Falo do WITCHWOOD. A banda, com sua sonoridade,
abraça a vários apreciadores do hard rock, do rock progressivo, do psych rock e
até mesmo do heavy metal, fazendo de sua música uma salada sonora improvável e
singular e convincente.
O Witchwood nasceu das cinzas da banda de hard rock Buttered Bacon Biscuits, um nome curioso, que lançou um trabalho, em 2009, chamado “From the Solitary Woods”, pelo emblemático selo Black Widow e relançado pela Jolly Records também no formato LP. O álbum pode ser ouvido aqui!
The Buttered Bacon Biscuits
foi uma banda baseada na cidade de Faenza, localidade em uma área chamada
Romagna e esteve ativa entre 2008 e 2013 com um estilo enraizado nos anos 1970,
tendo uma pegada psicodélica, de hard rock e uma discreta pitada de rock
progressivo. Foram ativos em apresentações ao vivo, mostrando-se intenso e
enérgico, mas mesmo com o álbum lançado e uma razoável reputação criada, a
banda não durou por muito tempo, finalizando as suas atividades em 2014.
Com o final da banda, ainda no
ano de 2014 surgiria o Witchwood, um quinteto que traria três músicos do
Buttered Bacon Biscuits, Rick (Riccardo) Dal Pane, nos vocais, guitarras,
bandolim e percussão, Stefano Olivi no hammond, piano e sintetizador e Andrea
Palli, na bateria e percussão, juntamente com Samuele Tesori, na flauta e gaita
e Luca Celotti no baixo.
Em 2015, o Witchwood lançaria
o seu interessante e diria, sem medo de errar, épico, álbum de estreia chamado”
Litanies from the Woods”, pelo selo independente “Jolly Roger Records”, alvo de
meu texto hoje. E nada melhor para falar de uma nova e grande banda, pelo seu debut, pois é por ele, que entendemos a
sua importância, o seu real desenho sonoro que alia o glorioso passado do rock
italiano com vistas ao futuro.
“Litanies from the Woods”
consegue, de forma magistral, mesclar hard rock, progressivo, psicodelia e até
mesmo algo de Southern rock, além de pegadas blueseiras, adicionando sons
vintages e atmosferas sombrias, obscuras do occult rock dos anos 1970. Mas não
se enganem, caros leitores, que se restringe o som do Witchwood a
reminiscências dos anos setentistas, trazendo um frescor, uma música
contemporânea solar e acessível aos ouvidos mais exigentes e iniciantes,
fazendo da banda extremamente competente e versátil sonoramente falando. E
assim construíram, sobretudo em seu álbum inaugural, a sua personalidade.
E essa mistura de gêneros e
estilos se deu graças a experiência da maioria de seus músicos em outras bandas
e também a história que a maioria tiveram juntos em outras jornadas sonoras em
outros projetos. Os caras se conhecem, sabem de seus defeitos e qualidades e
essas coisas “orgânicas” trazem a verdade do Witchwood em seu debut.
“Litanies from the Woods” é
inaugurado com a faixa “Prelude/Liar”, onde a “Prelude” introduz, com uma curta
introdução, de guitarra elétrica, mas que logo irrompe com a cáustica “Liar”,
com peso de riffs de guitarra que clama por uma “cozinha” bem ritmada e
igualmente pesada, com passagens mais acústicas capitaneado pela flauta. A
letra fala de uma reclamação sincera e urgente contra um mundo onde as
aparências são mais importantes que os valores reais e a democracia não passam
de uma ilusão criada por políticos cínicos, um mundo onde as mentiras da mídia
escondem os pecados mais sujos e onde os sonhos enchem os túmulos.
Na sequência tem “A Place for
the Sun” começa introspectiva com sons sombrios de teclados, mas logo ganha
energia com a bateria forte, marcada e uma flauta tocada a plenos pulmões ao
estilo Jethro Tull, logo surgem os riffs poderosos de guitarra, vocais rasgados
e, entre passagens pesadas e mais discretas percebe-se a grandiosidade da
faixa, cheia de recursos rítmicos. A letra evoca o poder catártico da música e nos
convida a viver dia após dia para enfrentar as adversidades da vida, sempre
buscando o lugar escondido em sua alma onde o sol sempre brilha.
“Rainbow Highway” traz o
protótipo do rock com uma “queda” para os anos 1990, com uma veia mais
comercial, riffs de guitarra dançante, baixo pulsante, bateria pesada e solar,
teclados dando uma textura radiofônica. Os vocais são apaixonados, melódicos.
Faixa animada! A letra denuncia o desejo de liberdade e aventura de um garoto
que cresceu em uma cidade pequena, cercado por tédio e velhas tradições. Evoca
o sonho de uma vida sem regras, um desejo de liberdade absoluta, um passeio
fantástico nos ombros de um demônio do arco-íris para sentir o vento soprando
livre e selvagem por todo lado.
“The Golden King” os caras
reduzem as coisas, é uma balada rock e a introdução meio tribal, com a
percussão e os teclados juntos, essa “paixão”, essa volúpia sonora é amenizada.
O vocal sussurrado corrobora essa condição. A letra fala de uma caravana vinda
de um planeta distante, navegando por céus infinitos.
A próxima faixa é “Shade of
Grey” que abre complexa, com uma guitarra intrincada, enquanto vocais
reservados, até discretos se fundem, tendo, inclusive, vocais femininos
ajudando nessa faixa. Temos a presença de bandolim e flauta, antes de começar a
esquentar, mas se acalma de volta, tornando-a ainda mais contemplativa e
pastoral. É sombria e até mesmo assustadora. A letra evoca uma atmosfera gótica
e uma criatura inquietante de um mundo oculto se movendo pela floresta.
A próxima música é outra
balada, mais acessível, chamada “The World Behind Your Eyes” com vocais
relaxados, violões delicadamente dedilhados, até que entra em ação após os dois
minutos e esses contrates continuarão. Essa música é dedicada a Laura, musa do
vocalista Rick Del Pane.
“Farewellt to the Ocean
Boulevard” é a mais longa e complexa. Uma faixa instrumental longa, com pouco
mais de quinze minutos de duração, que mostra toda a capacidade instrumental da
banda, com músicos competentes e criativos. Começa com um violão dedilhado enquanto
a flauta se junta, com um som completo. Um solo de guitarra agradável chega,
com teclados mais a frente vem à tona, permanecendo relaxada a faixa,
contemplativa, inclusive, juntamente com a flauta e gaita, mas logo a guitarra
“ilumina” a música com força e intensidade. Diria, sem medo, que é épica!
“Song of Freedom” apresenta,
no início, bandolim e gaita, enquanto os vocais se juntam, forte, imperioso,
com alguma percussão. Torna-se mais pesado em torno dos dois minutos de música.
Um hard típico irrompe a faixa, mas esses contrastes continuarão até o fim. A
letra fala da celebração da vida na estrada, a canção de um viajante apaixonado
por sua doce liberdade.
E fecha com outra faixa muito interessante, “Handfull of Stars”, cheia de mudanças rítmicas caracterizando um hard prog. Trata-se de uma suíte dividida em três partes e que lembra aquelas histórias de terror de HP Lovecraft (sou um leitor assíduo) e que lida com sonhos assustadores e perigosos, diz a letra. Na primeira parte, “The Gates of Slumber” a letra fala da imagem de um sonhador perdido em seu quarto com planetas flutuantes ao redor, enquanto as estrelas enchem sua mente e coração. Ele cai em um abismo atemporal de sonhos sombrios que a música evocativa das próximas duas partes instrumentais, "Nox Erat..." (Era noite) e "Epilogue: Litanies For A Starless Night", deixa sua imaginação livre para construir. Riffs poderosos de guitarra e teclados sombrios “temperam” a música de um occult rock voluptuoso, além de vocais expressivos e poderosos.
Um trabalho engenhoso, com
frescor, com traços evidentes de contemporaneidade, com a urgência da
perpetuação, em dias atuais, do passado glorioso do rock progressivo italiano
dos anos 1970.
O trabalho de estúdio, de
composição, de juntar os fragmentos concebidos em momentos de pura liberdade
criativa, faz desse primeiro trabalho do Witchwood uma peça de arte que nos
remente ao passado com olhares para um futuro não promissor, mas real, latente,
de uma cena que não desiste de se reinventar, de mostrar que é forte e que está
viva.
O rock n’ roll não está morto. Morto está aquele que não se desprende do passado, sujeitando-se aos encantos mortais da zona de conforto. O Witchwood é a prova cabal de que há vida e que pulsa.
O Witchwood lançaria o ótimo “Handful of Stars”, em 2016 e mais tarde, em 2020 “Before the Winter”, com uma roupagem mais direta, com um hard rock mais visceral e sem firulas. Embora a discografia da banda seja pequena, é gigantesca em termos de qualidade e que, no auge de seus quase 10 anos de vida, possa trazer ao mundo novos rebentos sonoros para o nosso deleite.
A gravadora Jolly Roger
Records relançaria “Litanies from the Woods” várias outras vezes, seja no
formato CD, como no formato LP, em toda a Itália, entre 2015 e 2019. Não
ficaria restrito apenas no país de origem do Witchwood, mas também em vários
países da Europa, inclusive na Rússia. Perpetuando um “jovem clássico” do rock
italiano.
A banda:
Riccardo "Ricky" Dal
Pane: vocal principal, vocal de apoio, guitarra elétrica, slide guitar, violão,
bandolim, percussão
Stefano "Steve"
Olivi: Hammond C100, Leslie 760, Moog Voyager, piano
Andrea Palli: bateria, percussão
Samuele Tesori: flauta, gaita
Luca Celotti: baixo
Faixas:
1 - Prelude / Liar
2 - A Place for the Sun
3 - Rainbow Highway
4 - The Golden King
5 - Shade of Grey
6 - The World Behind Your Eyes
7 - Farewell to the Ocean
Boulevard
8 - Song of Freedom
9 - Handful of Stars