sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Quantum - Quantum (1983)

 


No Brasil definitivamente temos músicos teimosos, resistentes! A arte, pura e genuína, em nosso país, por si só é um ato de resistência. Em um país em que não existe a cultura da leitura, o senso crítico caiu no senso comum, na vala do simplismo mórbido.

Mas ainda há, repito, os resistentes, aqueles que, bravamente, difundem a sua música, a sua arte, contra um status quo que privilegia a letargia, a inércia da estupidez.

E no caso dos músicos brasileiros, voltemos a eles, sobretudo aqueles que não se contentam com a coisa pasteurizada que trafega pelo mainstream, lutam em uma luta hercúlea e, para muitos, injusta, mas resistem e para o nosso deleite, pois, mesmo em tempos tão frívolos ainda podemos, temos a chance de ouvir músicas que nos impactam positivamente.

Mas há aqueles que sucumbem e, para ter o seu trabalho minimamente exposto, visto, optam por ir para a Europa, para cenas que propiciem um pouco de estrutura para materializar a sua música. Talvez não seja a palavra correta, a de sucumbir, mas cansaço.

Contudo voltando-se para os que, bravamente, ficam, há uma banda que realmente deslocou-se do tempo em que existiu. Sabe aquele caso em que você é muito descolado? É o caso dessa banda de hoje.

O QUANTUM, banda formada em 1982, no Rio de Janeiro, é um exemplo fiel de resistência e de que não “adequou-se” ao período em que foi concebida. É sabido que o rock dos anos 1980 foi dominado pelo pós-punk, pela new wave e, por algum tempo, o heavy metal, a “New Wave of British Heavy Metal” e o Quantum entregou o rock progressivo.

Logo o rock progressivo que, para muitos, estava em baixa, derrotado, esquecido, pouco criativo. Evidente que a cena não estava em alta, mas sob o aspecto comercial e muitas bandas gigantescas do estilo pereceram exatamente por conta desse triste fenômeno mercadológico e outras lotaram arenas pelo simples fato de se adequar ao modismo sonoro da época.

Não com o Quantum. Eu não aprecio as comparações entre as bandas, mas no caso do Quantum vem a calhar para ilustrar a sua situação nos anos 1980: a banda, com o seu primeiro trabalho, que completou 40 anos, lançado em 1983, traz influências da cena britânica de Canterbury personificado no som do Camel, principalmente, com elementos de jazz que proporcionou um balanço interessante ao som sinfônico em geral.

Mas a essa influência britânica da banda de Andrew Latimer e companhia você acrescenta um art rock instrumental com uma abordagem lírico-romântica bem instigante e original, típico das bandas brasileiras do gênero e até mesmo das bandas sul americanas no geral.

O Quantum, com seu debut mostrou-se digno sucessores dos trabalhos das grandes bandas que lá nos anos 1970 construíram tão brilhantemente um estilo, um conceito, uma cena, isso em plenos anos 1980 que alguns maldosos teimam em dizer que o prog rock deixou de existir. Como um som híbrido, o rock e seus gêneros, só se manifestam de forma diferente, é isso!

O álbum, “homônimo”, nasceu, para variar, de forma independente, na base da luta e resistência, por um selo chamado “Café”, mas pasmem, vendeu cerca de 6.000 cópias o que é um número deveras alto para uma música relegada ao descaso, ao esquecimento.

Claro que a produção deixa um pouco a desejar, mas o trabalho é inspirador, repleto de entonações fabulosas. O componente composicional, bem como a classe de desempenho são excelentes. Não podemos negligenciar também as linhas gêmeas de guitarra que dão o tom para a maioria das faixas, com solos arrojados, floreios acústicos contemplativos, sutis que nos faz viajar.

A formação clássica do Quantum, neste trabalho de 1983, contou com: Marcos G. Rosset (Gringo) na guitarra e violão, Reynado Rana Junior (Dinho) na guitarra e violão de 12 cordas, Fernanda Costa nos teclados e guitarra na faixa “Chuva”, Segis C. Rodrigues no baixo e Paulo Eduardo Naddeo na bateria e percussão. Fecha com a ilustre participação do icônico baterista brasileiro Rolando Castello Junior participando com as suas baquetas na faixa “Inter Vivos”. E por falar em faixas, vamos a elas, dissecando-as.

O álbum é inaugurado com a faixa “Tema Etéreo” que já começa avassaladora, uma incomparável aula de como se deve fundir com habilidade e maestria o jazz rock e o progressivo. São pouco mais de nove minutos de inspiração, complexidade e qualidade técnica de todos os seus músicos. Não podemos esquecer do equilíbrio suave dos teclados e o frenesi do jazz rock da seção rítmica.

"Tema Etéreo" (Ao vivo na TV Cultura)

A sequência temos a faixa “Chuva”, mas simples e direta, entrega guitarras dedilhadas, contemplativa, viajante, ao estilo mais voltado para o prog rock que mais parece ser uma introdução para a faixa seguinte, “Acapulco” que me remete ao progressivo sinfônico aliado a pegada mais pesadas, diria, de hard rock. É contundente, é complexo, o jazz se revela pelos teclados, pela seção rítimica. Excelente!

"Acapulco"

Chega “Inter Vivos” e a guitarra e a bateria trazem uma beleza que positivamente destoa do álbum, com um hard rock mais vivo, mais pesado, com solos ao estilo Camel, que traz à tona o brilho, a competência de cada músico, é simplesmente emocional, intenso, vívido e pleno. E, mais uma vez, cabe uma menção a Castello Junior que se tornou notório no hard rock, deixou sua marca e se aventurou perfeitamente no rock progressivo.

"Inter Vivos"

A faixa seguinte é “Sonata”, outra joia desse excelente álbum, uma das mais lindas e belas composições que tive a alegria e o privilégio de ouvir. Com sua vibe suave é profunda, intensa e emocionante.

"Sonata"

E fecha com a faixa título, “Quantum” que poderia ser considerada uma “micro-suite”, mas é o que menos importa, o mais importante e enaltecedor é que é repleta de uma beleza que, inicialmente se revela incontida que se desdobra sutilmente nos dois primeiros minutos, para logo depois revelar-se explosiva, catastrófica, linda, intensa, tensa, com temas cativantes, geniais.

"Quantum"

Dez anos depois dois integrantes da banda, os principais compositores, Fernando Costa e Reynaldo Rana Junior, com o apoio de músicos convidados, gravaram o segundo álbum da banda, o “Quantum II”, um ano depois, de 1994 que deixa um pouco a desejar do primeiro álbum, trazendo um pouco a artificialidade de um neo-prog dos teclados e uma difícil ausência de guitarras, não satisfazendo os fãs que apreciaram o Quantum da década de 1980.

E o resultado foi o inevitável: o fim. Os líderes do projeto, desse triste retorno tomaram a decisão de se dissolverem. Infelizmente algumas comparações acontecem e o fim se tornaria talvez a melhor maneira para não continuar com decisões equivocadas.

Mas ainda em 1993, algo bom aconteceu, pois, o debut do Quantum, de 1983, foi relançado com uma faixa bônus, “Presságio”, compilada durante os trabalhos de material para o segundo álbum, “Quantum II”, em 1994.

“Quantum” é exemplar, fantástico e merecedor de grande destaque, sendo indispensável na cabeceira qualquer apreciador do jazz rock e progressivo, dada as devidas proporções de predileções, evidente. O fato é que os caras do Quantum são verdadeiros abnegados da música progressiva em tempos que essa sonoridade foi rejeitada clamorosamente pela indústria fonográfica.




A banda:

Marcos G Rosset (Gringo) na guitarra e violão (baixo em "Inter Vivos")

Reynaldo Rana Jr. (Dinho) na guitarra e violão de 12 cordas

Fernando Costa nos teclados (guitarra em "Chuva")

Segis C. Rodrigues no baixo

Paulo Eduardo Naddeo na bateria e percussão

 

Participação:

Rolando Castelo Jr.: bateria em "Inter Vivos"

Felipe Carvalho: baixo em "Presságio"

 

Faixas:

1 - Tema Etéreo

2 - Chuva

3 - Acapulco

4 - Inter Vivos

5 - Sonata

6 – Quantum

 

Faixa bônus de relançamento de 1993:

 

7 - Presságio


"Quantum" (1983)















 




sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Il Rovescio Della Medaglia - Io Come Io (1972)

 


Toda banda tem o seu lado “dark side”, tem parte ou toda história relegada, esquecida pelo tempo, jogada ao mais puro e total ostracismo. Muitos podem ser os motivos, talvez não seja tão prudente elenca-los por aqui, mas o fato é que se o blog em que você, caro e estimado leitor, está lendo, enaltece o fracasso, as bandas e seus trabalhos vilipendiados.

E a banda que falaremos aqui tem a sua importância que não é, creio, devidamente creditada, dentro da cena har e prog da Itália com lançamentos verdadeiramente icônicos, podendo citar álbuns do naipe de “La Bibbia”, debut de 1971, e o terceiro trabalho de 1973, “Contaminazione”, que completou este ano de 2023, cinquenta anos de lançamento.

O primeiro é um avassalador hard rock com pitadas progressivas que figura, sem sombra de dúvidas, como um dos pioneiros do estilo na Itália e o segundo álbum mencionado é um excelente álbum de progressivo sinfônico que está nos anais da vertente no “País da Bota”.

A banda é o IL ROVESCIO DELLA MEDAGLIA. Tenho um especial carinho por esta banda, algo emocional mesmo, pois quando me apresentaram o “La Bibbia”, cuja resenha pode ser lida aqui, fui envolto por uma catarse inexplicável e foi graças a ele que a cena rock italiana descortinou-se diante de minhas retinas.

Il Rovescio della Medaglia

E a partir daí passei, de forma compulsiva, a buscar, ler, escrever e ouvir tudo do velho Il Rovescio della Medaglia e a cada nova audição era um estupendo momento de êxtase. Sou fã? Sim! Talvez tudo que eu vir a escrever sobre a banda neste humilde blog, soe como algo questionador, pelo fato de ser um apreciador da banda, mas que nada! A banda definitivamente é fantástica.

E, seguindo nessa discussão, eu vou falar de um álbum que não é tão comentado e que é, por muitos apreciadores do estilo, completamente dispensável e quiçá pelos próprios músicos que foram parte da concepção deste trabalho. Falo do segundo álbum da banda, o “Io Come Io”, de 1972, lançado pelo selo RCA.

Para muitos é um “álbum menor”, que para muitos poderia ser excluído do catálogo da banda, da sua discografia, mas quando o ouvi, pela primeira vez, seguindo aquelas audições quando conheci o RDM, me desafiou, me instigou a entende-lo, a vê-lo de outras formas, que não as convencionais no que tange as percepções da qualidade sonora dos álbuns.

Mas ele é marcante sem sua forma desafiadoramente, digamos, “sem importância”. “Io Come Io” tem trinta minutos apenas de um complexo “garage-prog” extremamente envolvente. Não sei se criaram esse termo “garage-prog”, mas foi o que encontrei para definir, inicialmente, o segundo trabalho do Il Rovescio della Medaglia.

Estamos tão acostumados com o progressivo associado à sofisticação, a músicas complexas, com melodias intricadas, que quando se ouve a produção insipiente de “Io Come Io”, gera a famosa rejeição de imediato.

Não se engane, caro leitor, “Io Come Io” tem, a meu ver, todos os elementos que edificam o prog rock, mas é sujo, é denso, intenso, pesado, beirando, em alguns momentos, algo despretensioso, por isso o percebo como “garage rock”.

Há algo irônico e desapegado neste trabalho do Rovescio. Embora seja modesto, sob o aspecto da produção e tudo o mais, ele se mostrou, a meu ver, inteiramente vanguardista trazendo um viés novo, naquela época, do progressivo, servindo, ouso dizer, como referência para o hard prog e até mesmo o metal progressivo, dado a aspereza e peso de seu som.

“Io Come Io” é um álbum repleto de energia e, por mais que seja sombrio, é solar por esse fator, por ser um trabalho frenético, apesar de apresentar gravações apressadas, o que impactou na produção, mas os músicos são tão grandiosos que, o que se percebe é a destreza dos seus instrumentos.

E falando em músicos a formação do Il Rovescio della Medaglia em “Io Come Io”, foi a mesma que gravou seu antecessor, “La Bibbia” e que permaneceria até o ano de 1973 e que gravaria seu álbum mais conhecido, “Contaminazione”. São eles: Pino Ballarini vocais e flauta, Enzo Vita na guitarra, Stefano Urso no baixo e Gino Campoli na bateria.

Não se sabe ao certo, mas “Io Come Io” é um álbum conceitual e no encarte do LP original são citados alguns versos do filósofo alemão Hegel, que diz:

“Na filosofia, as determinações do conhecimento são consideradas não unilateralmente, apenas como determinações das coisas, mas juntamente com o conhecimento a que se referem...”

Ou seja, a “busca de si mesmo em um mundo cheio de contradições”. “Io Come Io” é composta por quatro partes principais, das quais as partes são divididas em movimentos. É claramente estruturado com sua própria lógica lírica e instrumental, com as partes mais dinâmicas colocadas no início e no final, e as mais “técnicas” concentradas nos grooves. É um som áspero, cinzelado, mas que realça a dinâmica de cada instrumento.

 Antes de dissecar o álbum com as suas músicas, acho extremamente conveniente expor um pouco da história, dos primórdios do Il Rovescio della Medaglia, mesmo que brevemente.

A banda foi formada em Roma no final de 1970 e se chamava “Il Lombrichi”, mudando o nome para “Rovescio Della Medaglia” com a entrada do vocalista Pino Ballarini, o terceiro, na sucessão. A banda foi formada por Enzo Vita, guitarrista, pelo baixista Stefano Urso e pelo baterista Gino Campoli.

O primeiro vocalista foi Gianni Mereu, depois assumiu Sandro Falbo, da banda “Le Rivelazioni e logo depois Pino Ballarini, que se mudou para Roma, vindo da região de Pescara, onde tocou em bandas como “Nassa” e “Poema”. E a chegada de Ballarini trouxe também a sorte, pois imediatamente a banda assinaria contrato com o selo RCA, isso em 1970, para gravar um novo álbum, que viria a ser o grande “La Bibbia”, um ano depois, em 1971.

A faixa de abertura é “Io” começa com um som de gongo, anunciando a bateria e guitarra que criam uma atmosfera densa, soturna e perigosa. A música e a letra evocam visões estranhas, deliciosamente estranhas. Coisas e pessoas, lugares e sentimentos parecem atravessar a névoa do tempo, algumas memórias de experiências passadas, sombras, segredos da vida, o conceito entre velho e novo. O protagonista se vê desafiado pela vida e morte. E a música parece imprimir esse conceito, pois traz peso, complexidade, vivacidade, mas envolto em sombras.

"Você diz que tudo que eu que te disse é verdade / Mas tenho medo quando você diz que não sabe como é bom morrer!"...

"Io"

“Fenomeno é uma longa faixa dividida em duas partes, “Proiezione” e “Rappresentazione”. Começa um padrão dedilhado de violão que são quebrados por riffs pesados e poderosos de guitarra. A música e letra evocam a imagem do protagonista perdido em uma estrada misteriosa, vagando sem a menor ideia tentando, de forma desespera, entender o que é falso e verdadeiro. 

"O mundo em sua volta é vazio, sem vida, de manhã não há sol, a noite não há lua. O protagonista pode ver uma luz e alguém o chama, uma porta se abre para ele." 

E com isso a música acalma, mas de repente o ritmo intensifica, aumenta, vai ficando mais frenético. 

"Fenomeno"

A excelente e catártica “Non Io” começa com um delicado arpejo de violão e notas crescentes de flauta. A atmosfera é pacífica, viajante, contemplativa. A música e a letra retratam a nova consciência do protagonista, que pode ver seus últimos dias se desenrolando atrás dele. Ele passa a odiar as coisas materiais e reflete os verdadeiros da vida. Nus, descalços, os protagonistas querem ir onde o céu termina e o mar começa em busca de ideais que não podem desaparecer com o tempo como a beleza ou a riqueza.

"Ainda quero seguir o meu caminho, onde o céu se junta o mar / Deixando sozinho atrás de mim aquele homem que não tem verdade...".

"Non Io"

A última e derradeira faixa é “Io Come Io” e é dividida em duas partes intituladas “Divenire” e “Logica” e marca a conquista da jornada interior do protagonista, encontrando finalmente a luz, que arde nele como um sol que nunca morrerá. É uma faixa enérgica, solar, que personifica o momento do personagem. Hammond, riffs de guitarra, seção rítmica poderosa, faz dessa faixa algo intenso, sob o aspecto instrumental.

"Io Come Io"

“Io Come Io” teve vários relançamentos, onde a primeira foi em 1994 com 2.000 cópias, outra em 1999, também pela RCA com apenas 500 cópias. Em 2004 foi a vez da BMG, em 2008 pela Sony/BMG e mais tarde, em 2019, pelo selo RCA/Mondadori.

“Io Come Io” definitivamente vem do mesmo galho que “La Bibbia”, porém aumenta o quociente progressivo, mas com uma roupagem um tanto quanto “garage”, algo alternativo, underground, completamente em uma aversão ao mainstream progressivo, se é que é possível dizer isso. Um hard rock psicodélico com aquele drama típico do rock progressivo italiano!


A banda:

Pino Ballarini na voz, flauta

Enzo Vita na guitarra

Stefano Urso nobaixo

Gino Campoli na bateria

 

Faixas

1 - Io

2 - Fenomeno

a) Proiezione

b) Rappresentazione

3 - Non Io

4 - Io come Io

a) Divenire

b) Logica


Il Rovescio della Medaglia - "Io Come Io" (1972)