Será que podemos considerar as
bandas que lançam apenas um álbum, que são muitas espalhadas por esse mundo, de
ruins? O que ocasiona a precocidade desses momentos? Quais são os fatores? É
predominantemente incompetência das bandas de gerir a sua música e carreira? Ou
apenas um azar comercial que impede de a banda seguir com a sua trajetória
musical?
Cada banda traz uma realidade
diferente e cabe a este reles e humilde blog trazer o máximo possível dessas
histórias que definitivamente são ricas e que são verdadeiros exemplos de amor
à sua música, de reverência a sua verdade sonora, mesmo que o fracasso
comercial venha à tona, muitas vezes, de forma visceral.
E, para variar, vou trazer uma
história de uma banda italiana que gravou apenas um álbum e ainda com um
agravante: não foi lançado no ano de sua gravação e, por anos, hibernou
esquecida nos porões do rock n’ roll assumindo a condição de obscuridades. Falo
da banda ENEIDE.
Os primórdios da banda se deu
na cidade de Pádua, no início dos anos 1970 e tinha o nome de “Sensazioni” e os
integrantes dessa embrionária banda eram muito jovens, adolescentes, diria, e
estavam na faixa dos 14 anos de idade! Tinha na formação o baixista e líder do
projeto Romeo Pegoraro, o baterista Diego Moreno e o cantor e guitarrista
Gianluigi Cavaliere.
Adriano Pegoraro, que era
guitarrista, flautista e saxofonista, era amigo de Romeo e fazia parte de uma
banda chamada “Dragoni” (sua música foi influência da futura Eneide), foi
convencido a fazer parte do Sensazioni, dispensando o guitarrista Gabriele Trevisan
e efetivando um tecladista chamado Antonio Venturini.
A banda estava formada, mas o
nome mudou para “Eneide Pop 70” e começou a tocar em clubes locais, lugares
pequenos, acanhados e de estrutura simples, tocando covers de bandas italianas
e estrangeiras, como Led Zeppelin, Vanilla Fudge, King Crimson etc. além de
tocar algum material autoral que já possuíam. Os problemas com a rotatividade
de integrantes começaram a dar problemas e o teclacista Antonio Venturini foi o
primeiro a sair do Eneide Pop. Ele não convenceu nos teclados. Decidiram
procurar por outro músico efetivaram um tecladista mais conhecido chamado Carlo
Barnini, que era da banda “Stato d’Animo”.
A partir daí parecia que a
sorte começava a sorrir para os meninos do Eneide Pop, quando em 1972 um
empresário de nome Luciano Tosetto, encarregado de organizar turnês de grandes
bandas na Itália viu o Eneide Pop tocar em um show local e os convidou para
participar de alguns festivais que estavam em voga na Itália àquela época.
Os jovens músicos do Eneide
chegaram a tocar, nesses festivais, com bandas do naipe do Premiata Forneria
Marconi, Banco del Mutuo Soccorso, Delirium, Formula 3 e muitas outras. Nova
mudança ocorreu no nome da banda, encurtando para apenas “Eneide” e, nesse
momento, ocorreu o ápice desses jovens músicos, tocando ao lado dos já figurões
da música progressiva mundial, os ingleses Genesis e Atomic Rooster e dando
suporte ao Van der Graaf Generator em seis datas de sua turnê pela Itália. Sem
dúvida um momento importante para mostrar o seu trabalho autoral que já era a
intenção principal da banda, deixando de lado os covers de bandas famosas.
O Eneide, nesta época, contava
com a seguinte formação: Gianluigi Cavaliere, nos vocais e guitarra, Adriano
Pegoraro, na guitarra, flauta e vocal, Carlo Barnini, teclados e vocal, Romeo
Pegoraro, no baixo e vocal e o baterista Moreno Diego Polato. Com essas
apresentações em festivais italianos e sendo suporte para bandas como Genesis,
Atomic Rooster e Van der Graaf Generator e as suas intensas apresentações na
cena undergroud de Pádova e Veneza, em 1972 Maurizio salvadori e Luciano
Tosetto, da agência de show milanesa, Trident, perceberam que a banda tinha
potencial e os contrataram.
A Trident era uma produtora de
shows, mas queria se aventurar como gravadora e o Eneide talvez tenha sido uma
das primeiras bandas a ser contratada por jovem selo de Milão. A popularidade
adquirida graças a esses shows e as intensas apresentações em clubes locais
fizeram com que a Trident não apenas o contratasse, mas que gravassem um álbum.
A banda já tinha música
autoral o suficiente para gravar o seu debut e estavam, evidentemente, animados
com a possibilidade de trazer à vida o seu primeiro trabalho, ainda muito
jovens, na faixa dos 16 e 17 anos! Muito jovens e já com um currículo invejável.
Então, em 1972, entre os meses de setembro e novembro entraram em estúdio para
realizar seus sonhos: gravar o seu primeiro álbum.
Tudo correu bem, todos os
trâmites de gravação tiveram sua sequência realizada sem maiores problemas. Mas
por uma razão misteriosa, estranha mesmo, o álbum, intitulado “Uomini Umili
Popoli Liberi”, não foi lançado naquele ano. Reza a lenda que a empreitada da
jovem gravadora Trident não vingou, simplesmente faliu.
Porém, à época da sua
fundação, sempre foi produtora de shows, quatro bandas foram contratadas para
lançar seu álbum no jovem selo da Trident. Foram eles: o primeiro do Dedalus,
homônimo, o “Time of Change”, do The Trip e o debut do Semiramis “Dedicato a
Frazz”. Todos foram lançados oficialmente, mas não o álbum do Eneide.
Simplesmente as cópias não foram impressas, apesar de as matrizes já terem sido
prontas há algum tempo, o que torna a situação ainda mais estranha.
Independentemente do que
aconteceu, o que teria ocasionado com o engavetamento do trabalho inaugural do
Eneide, o fato foi que esse lamentável ocorrido, foi um duro golpe para
promover a banda e acabou obrigando os jovens músicos a se refugiar em outro lugar.
Primeiro abriu as datas do cantor Maurizio Arcieri (na época ainda em fase
melódica), tocando as suas músicas e um set com o material do Eneide e depois
se tornando sua banda de apoio até que, em 1974, o Eneide se dissolveu
completamente, saindo de cena de forma melancólica, abrupta e triste. Muitos
também atribuem esse precoce fim, não apenas em decorrência do não lançamento
de seu álbum por conta da falência da Trident, em 1975, mas a incompetência da
própria banda, de gerir-se. Mas quem irá saber?
Mas aqui não é o fim, afinal, precisamos falar de “Uomini Umili Popoli Liberi” e da sua qualidade sonora que é, sim, inquestionável para àquela época mágica do rock progressivo italiano, sobretudo na primeira metade dos anos 1970. Porém cabe ressaltar que o único trabalho do Eneide não continha elementos progressivos de forma majoritária.
As
faixas, com duração, em média de 4 minutos de duração, tinham estruturas
básicas, que variava de uma mistura de baladas acústicas, além de pegadas
psicodélicas e de blues. Os instrumentos dominantes no álbum são os teclados e
a guitarra, embora a flauta também tenha destaque, sem contar com o vocalista
principal que tinha um tom áspero e grave, mas cantando com sentimento e aquele
toque de dramaticidade típico dos cantores italianos.
“Uomini Umili Popoli Liberi”
traz jams de rock estilo “garage” com
toques bem suculentos e enérgicos, com ritmos até agressivos, bastante
convencionais, flertando, como disse, com o classic rock, prog rock e hard
rock. Diria que, embora seja um álbum básico, traz um leque de opções sonoras o
tornando um trabalho versátil e diversificado que pode atingir a todos os
ouvintes com suas predileções musicais. Mas ainda tem algo a apresentar,
sobretudo nos momentos mais suaves, com o uso do violoncelo e flauta realçando
esse momento.
Mas não se enganem, prezados
leitores, que há essa separação de ambientes no som do único álbum do Eneide, é
possível ouvir, entre as dez faixas do trabalho, riffs pesados de guitarra,
melodias de teclados e intervenções preciosas de flauta. Trata-se de um álbum
muito maduro, levando em consideração que os músicos eram muito jovens à época.
A faixa inaugural é “Cantico
Alle Stelle-Traccia 1” que começa um tanto quanto pastoral quando os vocais se
juntam, trazendo também alguns sons do violino. Trata-se de uma abertura
melódica, diria sinfônica, simples. Na segunda parte da música o hammond ganha
destaque levando a música a territórios mais próximo do rock progressivo.
“Non Voglio Catene” é a música
que mais se aproxima dos estilos progressivos que eram executados à época e a
única que ultrapassa os 5 minutos de duração. A composição é excelente e traz o
moog e o violão em evidência, trazendo um viés mais acústico, até que, em
determinado momento, o hammond se torna mais enérgico, tornando-se mais
agradável.
“Canto della Rassegnazione” é
uma balada curta, com vocais mais suaves, quase frágeis, diria, com sons
delicados de violinos e uma flauta que termina a faixa. É seguida pela música “Oppressione
e Disperazione” que traz versões mais duras e pesadas de blues rock ditadas
pelo entrelaçamento do hammond e da guitarra. A bateria é o tempero que entrega
a música o peso e quando mesclada ao órgão e a guitarra essa máxima é
corroborada. Excelente faixa!
“Ecce Omo” apresenta, no
início, a bateria, forte e altiva, com sintetizadores e a guitarra no início.
Os teclados dominam a faixa, logo depois a flauta entra e a mesma, juntamente
com a guitarra, se entrelaçam. Um bom exemplo de hard prog! "Uomini Umili
Popoli Liberi" começa com melodias vocais, mas logo vocais ásperos se
juntam, com a flauta se junta com peças de hard rock promovendo um contraste
entre suavidade e peso, talvez um bom exemplo de hard prog também.
“Viaggia Cosmico” que
inicialmente nos conduz a uma audição ao estilo space rock, graças aos teclados
e logo depois vem uma balada lenta, onde o vocal é apoiado por violão e um
violino. Bela faixa! Na mesma sintonia vem a curta “Un Mondo Nuovo”, uma balada
acústica com nuances de violino e flauta, mas que não é tão incisiva e não
deixa muito impacto. O álbum fecha com "Cantico Alle Stelle -Traccia
II", que é realmente uma reprise da faixa de abertura.
A primeira edição oficial de "Uomini
Umili Popoli Liberi" finalmente foi lançada em 1990 pelo selo privado LPG
em uma edição limitadíssima de apenas 500 cópias e cerca da metade foi
autografada pelo guitarrista Gianluigi Cavaliere, uma verdadeira raridade aos
fãs da banda e de raridades como um todo. Esse exemplar veio com capa
“gatefold” contendo a letra e etiqueta cinza/marrom com escrita branca,
trazendo uma imagem da banda se apresentando. Enquanto uma segunda impressão,
com aproximadamente o mesmo número da primeira edição, tem capa única e
etiqueta azul clara, também neste caso com alguns exemplares numerados e
autografados.
E esse lançamento, quase vinte
anos depois, aconteceu porque Cavaliere guardou as fitas à época do não
lançamento do Eneide em 1972 e também do interesse de um amigo que, após o
lançamento oficial, tiveram a oportunidade de divulgar o álbum com a ajuda do
selo icônico “Black Widow”, de Gênova.
Teve um relançamento, em CD,
de 2011, pelo selo “AMS”, onde há duas faixas adicionais inéditas, retiradas do
projeto de 1995, intitulado “Oblomov’s Dream” quando a banda tentou se reunir.
Estavam nesse projeto, além do guitarrista Gianluigi Cavaliere, Romeo Pegoraro
e Diego Polato e a ideia era lançar um novo álbum, mas os compromissos
profissionais não possibilitaram concluir as gravações e pararam no meio do
caminho. Eles ainda possuem essas fitas, quem sabe um dia podemos presenciar um
novo álbum do Eneide. A mesma gravadora relançou o álbum, em vinil, com capa “gatefold”,
mas sem as duas faixas extras da edição em CD.
O guitarrista Cavaliere
permaneceu no cenário musical como instrumentista e produtor e ainda toca com o
baixista Romei Pegoraro em uma banda chamada Chantango, que mescla diferentes
estilos de música e poesia com o tango. Romeo toca baixo como concertista
profissional no “Maggio Musicale Fiorentino”. O baterista Diego Polato toca em
várias bandas de rock progressivo, assim como seu filho e o guitarrista Adriano
Pegogaro também continua seguindo com sua carreira de músico. O único que
deixou a música foi o tecladista Carlo Barnini que atualmente é veterinário.
Cavaliere conheceu, em 1994,
Peter Hammill e David Jackson, ambos da formação clássica do Van der Graaf
Generator e conversaram sobre a possibilidade de Jackson tocar no que seria o
segundo álbum do Eneide, o “Oblomov’s Dream”, mas não foi para frente, não
fazendo mais nada, porém mantém, até hoje, contato com esses dois icônicos
músicos da história do prog rock.
Fracassos, precocidade na sua
história, falta de uma gestão de carreira.... Muitos podem ser os fatores para
uma ruptura na longevidade ou não de uma banda, o fato é que o único trabalho
do Eneide, embora não traga nada de revolucionário para a história do rock
progressivo italiano deixa uma marca importante naquela época de desbravamento
da música, mostrando-se essencial por se tratar de um álbum que entregou uma
interessante diversidade sonora.
A banda:
Carlo Barnini nos teclados,
minimoog e backing vocals
Gianluigi Cavaliere nos vocais
principais, gutarra elétrica e acústica
Adriano Pegoraro na guitarra,
flauta e backing vocals
Romeo Pegoraro no baixo e
backing vocals
Mereno Diego Polato na bateria
Faixas:
1 - Cantico alle Stelle -
Traccia I
2 - Il Male
3 - Non Voglio Catene
4 - Canto della Rassegnazione
5 - Oppressione e Disperazione
6 - Ecce Omo
7 - Uomini Umili Popoli Liberi
8 - Viaggia Cosmico
9 - Un Mondo Nuovo
10 - Cantico alle Stelle -
Traccia II