domingo, 6 de setembro de 2020

Gila - Night Works (1972)


Muitas das bandas alemãs no início da década de 1970 sofreram com os estereótipos do krautrock. É evidente que cena teve o valor e relevância histórica servindo de influência, de referência para o rock alemão em todas as suas gerações, mas talvez por uma questão mercadológica ou mero modismo o “carimbo” do kraut foi atrelado às bandas que surgiam e sequer tinha a proposta sonora da referida vertente, no máximo uma influência, mas tudo na Alemanha era krautrock. 

E o fato de ter colocado todas as bandas no “saco do krautrock”, na vala comum do esteriótipo, ajudou para a não popularização do movimento, sendo considerado como um estilo limitado e puramente de ruídos estranhos. A Alemanha é mais do que o krautrock. Há uma diversidade de vertentes que vai do próprio krautrock ao hard rock, rock progressivo sinfônico, space rock, entre outros tantos que ganharam alguma visibilidade nos longínquos anos 1970. 

E uma banda que soube com maestria se desvencilhar do kraut, mas ao mesmo tempo tendo o mesmo em seu DNA sonoro, foi o GILA e ainda assim não gozava de tanta popularidade, sendo negligenciada a sua importância para a transição do krautrock minimalista e experimental para o rock progressivo com passagens pelo space rock e um som, apesar de chapante como o kraut, mas complexo e virtuoso.

Assim era o grande Gila. Era uma banda eclética, com uma flexibilidade sonora invejável e apesar de sua curta carreira discográfica foi uma referência no estilo na Alemanha, apesar de ter sido uma banda obscura, embora isso possa parecer improvável. Não para aqueles que a conhece. Então vamos a sua história! O Gila foi formada em uma comuna política na cidade de Stuttgart em 1969 e tinha o nome “Gila Füchs”, que foi dado pelo guitarrista Conny Veit. A intenção era chocar, era subverter e já poderia começar com o nome da banda.

E assim começaram a expor o "Gila Fuck" em slogans, cartazes com as "frases de efeito", tais como: "Crianças, fodam-se seus pais" ou coisas do tipo, apenas para chocar. Mas o cunho político também imperava na banda, afinal nasceram em comunas políticas. Naquela época tudo era político, politizado, a veia subversiva com base na percepção política estava em voga, afinal, era época da Guerra do Vietnã, dos beatnicks, dos lisérgicos, nada mais comum. 



E o comum era: Viver juntos, trabalhar juntos, se divertir juntos! Tudo com base no conceito de liberdade, no conceito da vida desprendidas de certas convenções sociais calcada em conservadorismos extremos, assim nascera o krautrock e claro e evidente o Gila, como muitas bandas surgidas na Alemanha nos confins dos anos 1960 e 1970, beberam dessa fonte.

E a música surgira no Gila com base em decisões de cima para baixo, onde a música pré determinada em uma espécie de forma, com métodos consideravam como música capitalista e direcionadas a escravos da música e da indústria fonográfica. Então já tem uma noção básica de liberdade criativa que pairava na banda, com música improvisada, experimental e longa, sem nenhuma amarra. Assim era o Gila.

No decorrer desse desenvolvimento as demandas musicais da banda foram aumentando. Conny Veit havia entrado em contato com gravadoras, bem como a cena musical também. Naquela época o Gila tinha, além de Veit na guitarra, Fritz Scheyhing nos teclados, Rainer Fuss, conhecido como "Bongo", porque tocava bongô e Walter Wiederkehr no baixo. Mas o "Bongo" jogou a toalha, não queria uma carreira musical e reza a lenda que não era um exímio baterista, apenas tocador de bongô mesmo. 

Então, como as propostas da banda frente à música estava crescendo, era necessário trazer um novo baterista. E nesses contatos estabelecidos por Connie Veit, surgiu um empresário, um executivo da EMI que tinha recém chegado dos Estados Unidos e queria que o Gila tocasse tão bem quanto o Creedence Clearwater Revival e assim foi a primeira incursão da banda na música profissional.

E nesse meio tempo Daniel Alluno surgiu assumindo o posto de baterista do Gila. A banda começou a tocar em alguns festivais, tocando em Munique, Stuttgart, em clubes, saindo dos pequenos e horrendos lugares que tocava na época em que eram apenas uma comuna política. E começaram a compartilhar o palco com bandas do naipe de Guru Guru, Agitation Free e muitas outras de seu tempo.

O seu debut, o excelente “Free Electric Sound”, de 1971 é um divisor de águas sonoro na Alemanha e, embora entregasse algumas tendências do krautrock, em voga naquele país, trazia também, e em profusão, peças psicodélicas e uma camada generosa de rock progressivo e space rock, um trabalho ambicioso, audacioso que ainda revelava um caótico hard rock em um frenesi experimental, mas com muita qualidade. 

O título do álbum é muito pertinente para a música do Gila: liberdade criativa sem amarras e estereótipos, sem rótulos, um álbum eclético e que absorveu, flertou com todos os estilos que surgiam à época. Uma curiosidade: “Free Electric Sound” chegou a ser produzido no Brasil, ainda que em poucas cópias, lançado pela BASF, cuja política de distribuição era global, com o intuito de atingir a vários lugares.

"Free Electric Sound" (1971)

Lançou outro trabalho, considerado como o segundo álbum, em 1973, chamado “Bury My Heart At Wounded Knee”. A magia do Gila já tinha se perdido, se dissipado, fugindo e muito da proposta de “Free Electric Sound”, indo para uma levada mais simples e direta, com uma pegada mais country, música americana, talvez quisessem se desvencilhar do trabalho anterior, vai saber! 

"Bury My Heart At Wounded Knee" (1973)


Mas por que disse que este álbum é considerado como o segundo trabalho do Gila? Porque havia outro, o “verdadeiro” segundo álbum da banda chamado “Night Works”, gravado em 1972, mas que, infelizmente não fora lançado naquele ano e esse trabalho, esse registro ao vivo do Gila, será o alvo da minha resenha de hoje. 

Embora “Night Works” não tenha sido lançado oficialmente em 1972, é considerado o segundo álbum do Gila e segue a mesma proposta do “Free Electric Sound”: Um rock progressivo com uma levada space rock, uma sonoridade experimental, com tendências kraut, porém mais elaborado, mais bem acabado, com uma melodia complexa, intricada e diria caótica, psicodélica, lisérgica e até pesada. Contava com a formação do primeiro álbum e original com Wolf Conrad "Conny" Veit na guitarra e vocal, Fritz Scheyhing no mellotron e teclados, Walter Wiederkehr no baixo e Daniel Alluno na bateria e percussão.


“Nights Works” foi gravado em um estúdio de rádio em Colônia, no Cologne Radio Studio WDR em 26 de fevereiro de 1972, mas foi lançado apenas em 1999 pelo abnegado e valoroso selo “Garden of Delights” e relançado em 2009 em um box chamado “Free Electric Rock Session: Live in Köln [26.02.1972]".

Ao ouvir o álbum não se percebe as palmas, o que leva a crer que no estúdio não havia público, sendo construído com a proposta de um “alive in studio”. Mas ainda assim se captou toda a beleza sonora da fase mais espetacular do Gila e detalhe: as músicas executadas nessa apresentação na rádio FM de Colônia eram inéditas! Essas músicas não figuravam no primeiro e no oficial segundo álbum da banda. Mais um atrativo para ouvi-lo. Então comecemos! 

A faixa inaugural, “Around Midnight” já entrega o que se espera de uma banda como o Gila: experimentalismo com um progressivo psicodélico e chapante que faz com que o ouvinte sinta a música, relaxe e aprecie, contemple a batida. E vai se desenvolvendo aos poucos. Uma música que faz com que a sua alma se desprenda do corpo e voe, voe...

Gila - "Around Midnight"

“Braintwist” é mais agressiva, riffs ácidos e pesados de guitarra dão o tom inicial, os solos vão se desenrolando, dando mais “corpo” a música. E assim vai se estendo por mais de dois minutos! Um primor! Uma música mais bruta do Gila neste álbum. A bateria vai ganhando destaque, sendo tocada com mais aspereza, o teclado dando a camada progressiva, até que enfim surge o vocal de Conny Veit, meio teatral, meio caótico, rasgado.

Gila - "Braintwist"

"Trampelpfad" começa com um ritmo dançante, os riffs de guitarra protagonizam esse momento um tanto quanto solar e animado, os teclados seguem a proposta. A guitarra vai desenvolvendo a música a um estágio mais hard rock, de mais peso, fica um pouco mais distorcida, a batida da bateria também fica agressiva, um progressivo com apelo hard. Incrível!

Gila - "Trampelpfad"

"Viva Arabica" começa com uma levada meio repetitiva, hipnotizante e que, vagarosamente vai acelerando, a guitarra com seus solos lisérgicos assume a dianteira, tornando a faixa mais “atrativa” e pesada, com o órgão mais tenso e poderoso, acompanhando a guitarra em um salutar duelo.

Gila - "Viva Arabica"

"The Gila Symphony" é uma epopeia sonora no alto de seus 14 minutos de duração. Ele inicia com sons experimentais, sons indistintos, sem melodia, mas logo param para dar licença ao teclado, baixo, bateria, tudo distorcido, quando o teclado começa a delinear a sua camada introspectiva e soturna, a bateria, meio jazzy, também ganha notabilidade, riffs de guitarra surgem, o baixo pulsante, o conjunto instrumental ganha tonalidade, a música fica mais intensa e plural e emendada a “The Gila Symphony” vem “Communication II” seguindo a mesma proposta da faixa anterior, com o protagonismo da bateria, guitarra e o teclado, em um efeito viajante e mesmerizante.

Gila - "The Gila Symphony"

Fecha com “The Needle”, mas estranhamente ela não finaliza, parece ter sido interrompida pela estação de rádio, possivelmente atingido o tempo antes estabelecido ou algum problema técnico que fez a rádio sair do ar ou coisa que o valha. O pouco que se ouviu foram apenas dedilhados de guitarra. 

“Night Works” não tem uma boa qualidade na produção, mas ainda assim mostra um grande trabalho da gravadora “Garden of Delights” que recupera e restaura essa pérola do progressivo alemão, sendo mais do que perdoáveis às falhas na produção dessa apresentação no estúdio de rádio na cidade de Colônia, afinal nada fora alterado para manter a originalidade criativa do som do Gila. 

A arte da capa foi pintada pelo próprio Conny Veit e na época de seu lançamento foi feito um livreto de doze páginas, contendo uma história amplamente elaborada em alemão, inglês e sueco, em um total de 1.000 cópias devidamente numeradas. Uma pérola vibrante e única do Gila e um divisor de águas do valoroso rock alemão. 


A banda:

Wolf Conrad "Conny" Veit na guitarra e vocal
Fritz Scheyhing nos teclados e mellotron
Walter Wiederkehr no baixo
Daniel Alluno na bateria e percussão

Faixas:

1 - Around Midnight
2 - Braintwist
3 - Trampelpfad
4 - Viva Arabica
5 - The Gila Symphony
6 - Communication II
7 - The Needle