Muitas das bandas alemãs no
início da década de 1970 sofreram com os estereótipos do krautrock. É evidente
que cena teve o valor e relevância histórica servindo de influência, de
referência para o rock alemão em todas as suas gerações, mas talvez por uma
questão mercadológica ou mero modismo o “carimbo” do kraut foi atrelado às
bandas que surgiam e sequer tinha a proposta sonora da referida vertente, no
máximo uma influência, mas tudo na Alemanha era krautrock.
E o fato de ter
colocado todas as bandas no “saco do krautrock”, na vala comum do esteriótipo, ajudou para a não popularização do movimento, sendo considerado como um estilo
limitado e puramente de ruídos estranhos. A Alemanha é mais do que o krautrock.
Há uma diversidade de vertentes que vai do próprio krautrock ao hard rock, rock
progressivo sinfônico, space rock, entre outros tantos que ganharam alguma
visibilidade nos longínquos anos 1970.
E uma banda que soube com maestria se
desvencilhar do kraut, mas ao mesmo tempo tendo o mesmo em seu DNA sonoro, foi
o GILA e ainda assim não gozava de tanta popularidade, sendo negligenciada a
sua importância para a transição do krautrock minimalista e experimental para o
rock progressivo com passagens pelo space rock e um som, apesar de chapante
como o kraut, mas complexo e virtuoso.
Assim era o grande Gila. Era uma banda
eclética, com uma flexibilidade sonora invejável e apesar de sua curta carreira
discográfica foi uma referência no estilo na Alemanha, apesar de ter sido uma
banda obscura, embora isso possa parecer improvável. Não para aqueles que a
conhece. Então vamos a sua história! O Gila foi formada em uma comuna política na cidade de Stuttgart
em 1969 e tinha o nome “Gila Füchs”, que foi dado pelo guitarrista Conny Veit. A intenção era chocar, era subverter e já poderia começar com o nome da banda.
E assim começaram a expor o "Gila Fuck" em slogans, cartazes com as "frases de efeito", tais como: "Crianças, fodam-se seus pais" ou coisas do tipo, apenas para chocar. Mas o cunho político também imperava na banda, afinal nasceram em comunas políticas. Naquela época tudo era político, politizado, a veia subversiva com base na percepção política estava em voga, afinal, era época da Guerra do Vietnã, dos beatnicks, dos lisérgicos, nada mais comum.
E o comum era: Viver juntos, trabalhar juntos, se divertir juntos! Tudo com base no conceito de liberdade, no conceito da vida desprendidas de certas convenções sociais calcada em conservadorismos extremos, assim nascera o krautrock e claro e evidente o Gila, como muitas bandas surgidas na Alemanha nos confins dos anos 1960 e 1970, beberam dessa fonte.
E a música surgira no Gila com base em decisões de cima para baixo, onde a música pré determinada em uma espécie de forma, com métodos consideravam como música capitalista e direcionadas a escravos da música e da indústria fonográfica. Então já tem uma noção básica de liberdade criativa que pairava na banda, com música improvisada, experimental e longa, sem nenhuma amarra. Assim era o Gila.
No decorrer desse desenvolvimento as demandas musicais da banda foram aumentando. Conny Veit havia entrado em contato com gravadoras, bem como a cena musical também. Naquela época o Gila tinha, além de Veit na guitarra, Fritz Scheyhing nos teclados, Rainer Fuss, conhecido como "Bongo", porque tocava bongô e Walter Wiederkehr no baixo. Mas o "Bongo" jogou a toalha, não queria uma carreira musical e reza a lenda que não era um exímio baterista, apenas tocador de bongô mesmo.
Então, como as propostas da banda frente à música estava crescendo, era necessário trazer um novo baterista. E nesses contatos estabelecidos por Connie Veit, surgiu um empresário, um executivo da EMI que tinha recém chegado dos Estados Unidos e queria que o Gila tocasse tão bem quanto o Creedence Clearwater Revival e assim foi a primeira incursão da banda na música profissional.
E nesse meio tempo Daniel Alluno surgiu assumindo o posto de baterista do Gila. A banda começou a tocar em alguns festivais, tocando em Munique, Stuttgart, em clubes, saindo dos pequenos e horrendos lugares que tocava na época em que eram apenas uma comuna política. E começaram a compartilhar o palco com bandas do naipe de Guru Guru, Agitation Free e muitas outras de seu tempo.
O seu debut, o excelente
“Free Electric Sound”, de 1971 é um divisor de águas sonoro na Alemanha e,
embora entregasse algumas tendências do krautrock, em voga naquele país, trazia
também, e em profusão, peças psicodélicas e uma camada generosa de rock
progressivo e space rock, um trabalho ambicioso, audacioso que ainda revelava
um caótico hard rock em um frenesi experimental, mas com muita qualidade.
O
título do álbum é muito pertinente para a música do Gila: liberdade criativa
sem amarras e estereótipos, sem rótulos, um álbum eclético e que absorveu, flertou
com todos os estilos que surgiam à época. Uma curiosidade: “Free Electric
Sound” chegou a ser produzido no Brasil, ainda que em poucas cópias, lançado
pela BASF, cuja política de distribuição era global, com o intuito de atingir a
vários lugares.
"Free Electric Sound" (1971)
Lançou outro trabalho, considerado como o segundo álbum, em 1973,
chamado “Bury My Heart At Wounded Knee”. A magia do Gila já tinha se perdido,
se dissipado, fugindo e muito da proposta de “Free Electric Sound”, indo para
uma levada mais simples e direta, com uma pegada mais country, música
americana, talvez quisessem se desvencilhar do trabalho anterior, vai saber!
"Bury My Heart At Wounded Knee" (1973)
Mas por que disse que este
álbum é considerado como o segundo trabalho do Gila? Porque havia outro, o
“verdadeiro” segundo álbum da banda chamado “Night Works”, gravado em 1972, mas
que, infelizmente não fora lançado naquele ano e esse trabalho, esse registro ao vivo do Gila, será o alvo da minha
resenha de hoje.
Embora “Night Works” não tenha sido lançado oficialmente em
1972, é considerado o segundo álbum do Gila e segue a mesma proposta do “Free
Electric Sound”: Um rock progressivo com uma levada space rock, uma sonoridade
experimental, com tendências kraut, porém mais elaborado, mais bem acabado, com
uma melodia complexa, intricada e diria caótica, psicodélica, lisérgica e até
pesada. Contava com a formação do primeiro álbum e original com Wolf Conrad
"Conny" Veit na guitarra e vocal, Fritz Scheyhing no mellotron e
teclados, Walter Wiederkehr no baixo e Daniel Alluno na bateria e percussão.
“Nights Works” foi gravado
em um estúdio de rádio em Colônia, no Cologne Radio Studio WDR em 26 de
fevereiro de 1972, mas foi lançado apenas em 1999 pelo abnegado e valoroso selo
“Garden of Delights” e relançado em 2009 em um box chamado “Free Electric Rock
Session: Live in Köln [26.02.1972]".
Ao ouvir o álbum não se percebe as palmas,
o que leva a crer que no estúdio não havia público, sendo construído com a
proposta de um “alive in studio”. Mas ainda assim se captou toda a beleza
sonora da fase mais espetacular do Gila e detalhe: as músicas executadas nessa
apresentação na rádio FM de Colônia eram inéditas! Essas músicas não figuravam
no primeiro e no oficial segundo álbum da banda. Mais um atrativo para ouvi-lo.
Então comecemos!
A faixa inaugural, “Around Midnight” já entrega o que se
espera de uma banda como o Gila: experimentalismo com um progressivo
psicodélico e chapante que faz com que o ouvinte sinta a música, relaxe e
aprecie, contemple a batida. E vai se desenvolvendo aos poucos. Uma música que
faz com que a sua alma se desprenda do corpo e voe, voe...
Gila - "Around Midnight"
“Braintwist” é mais
agressiva, riffs ácidos e pesados de guitarra dão o tom inicial, os solos vão
se desenrolando, dando mais “corpo” a música. E assim vai se estendo por mais
de dois minutos! Um primor! Uma música mais bruta do Gila neste álbum. A
bateria vai ganhando destaque, sendo tocada com mais aspereza, o teclado dando
a camada progressiva, até que enfim surge o vocal de Conny Veit, meio teatral,
meio caótico, rasgado.
Gila - "Braintwist"
"Trampelpfad" começa
com um ritmo dançante, os riffs de guitarra protagonizam esse momento um tanto
quanto solar e animado, os teclados seguem a proposta. A guitarra vai
desenvolvendo a música a um estágio mais hard rock, de mais peso, fica um pouco
mais distorcida, a batida da bateria também fica agressiva, um progressivo com
apelo hard. Incrível!
Gila - "Trampelpfad"
"Viva Arabica" começa
com uma levada meio repetitiva, hipnotizante e que, vagarosamente vai
acelerando, a guitarra com seus solos lisérgicos assume a dianteira, tornando a
faixa mais “atrativa” e pesada, com o órgão mais tenso e poderoso, acompanhando
a guitarra em um salutar duelo.
Gila - "Viva Arabica"
"The Gila
Symphony" é uma epopeia sonora no alto de seus 14 minutos de duração. Ele
inicia com sons experimentais, sons indistintos, sem melodia, mas logo param
para dar licença ao teclado, baixo, bateria, tudo distorcido, quando o teclado
começa a delinear a sua camada introspectiva e soturna, a bateria, meio jazzy,
também ganha notabilidade, riffs de guitarra surgem, o baixo pulsante, o
conjunto instrumental ganha tonalidade, a música fica mais intensa e plural e
emendada a “The Gila Symphony” vem “Communication II” seguindo a mesma proposta
da faixa anterior, com o protagonismo da bateria, guitarra e o teclado, em um
efeito viajante e mesmerizante.
Gila - "The Gila Symphony"
Fecha com “The Needle”, mas
estranhamente ela não finaliza, parece ter sido interrompida pela estação de
rádio, possivelmente atingido o tempo antes estabelecido ou algum problema
técnico que fez a rádio sair do ar ou coisa que o valha. O pouco que se ouviu
foram apenas dedilhados de guitarra.
A arte da capa
foi pintada pelo próprio Conny Veit e na época de seu lançamento foi feito um
livreto de doze páginas, contendo uma história amplamente elaborada em alemão,
inglês e sueco, em um total de 1.000 cópias devidamente numeradas. Uma pérola
vibrante e única do Gila e um divisor de águas do valoroso rock alemão.
A banda:
Wolf Conrad
"Conny" Veit na guitarra e vocal
Fritz Scheyhing nos teclados
e mellotron
Walter Wiederkehr no baixo
Daniel Alluno na bateria e
percussão
Faixas:
1 - Around Midnight
2 - Braintwist
3 - Trampelpfad
4 - Viva Arabica
5 - The Gila Symphony
6 - Communication II
7 - The Needle