quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Gäa - Auf Der Bahn Zum Uranus (1974)

 

Acho pitoresco esses termos, essas nomenclaturas que se atribuem a uma banda ou sua obra de arte, as suas condições perante a cena, perante ao mercado e no que isso tudo pode impactar uma realidade em um determinado país ou a um estilo de música, como no caso do rock n’ roll, por exemplo.

Uma banda que lança um álbum e que passa despercebida, cai nos escombros do rock, se torna empoeirada, no limbo do ostracismo, mas, com o passar dos anos se torna cult, referência e tem seus álbuns, geralmente lançados de forma quase que “artesanal”, em poucas tiragens, sendo disputados a tapas pelos caçadores de raridades, ou ainda sendo vendidos em valores quase que inalcançáveis aos bolsos dos pobres mortais.

Não estou, caro e estimado leitor, questionando essas viradas da história, mas, parando para refletir, torna-se, no mínimo, louco pensar que um trabalho totalmente esquecido por tudo e por todos, depois de alguns anos, ter o valor de seus álbuns altíssimo.

São alguns fenômenos comerciais e sonoros que caberia uma profunda dissertação, mas não vou entrar nos pormenores para não os deixar, amigos leitores, cansados, tornando essa leitura deveras enfadonha. E a Alemanha dos anos 1970, com o seu krautrock, movimento político, comportamental e musical completamente contracultural, e mais à frente o prog rock, hard rock, trouxeram inúmeras bandas que ficaram à margem do sucesso, do glamour do mainstream, pelo simples fato de apresentar músicas pouco ortodoxas.

E uma banda, em especial, adequa-se a esses requisitos com uma fidelidade espantosa e promoveu uma música extremamente vanguardista e que, de uma forma, ajudar a tecer a música alemã dos incríveis anos 1970. Falo do Gäa. Arrisco dizer que essa banda sequer é comentada entre os próprios alemães apreciadores de rock, mesmo com a sua afeição a cena rock daqueles tempos.

Gäa

É underground, por isso é raro. É uma sonoridade que alucina, nos provoca a sair da famigerada e temida zona de conforto, nos torna mais eufóricos por perceber que a sua sonoridade é conduzida a um patamar onde a criatividade rege a mente e os instrumentos de seus músicos. O Gäa traz nuances extremamente surrealistas, uma obra de arte que nos entorpece, quase chega a ser abstrata.

Parece ser minimalista, experimental, lisérgico, mas descamba para o blues rock, para o hard rock, para o prog rock como que em um estalar de dedos, sem pestanejar. Não há uma obediência calcada em estereótipos, não há um carimbo que determina um estilo específico de música. Há sim, tudo. E falo tudo isso porque em seu debut, o “Auf Der Bahn Zum Uranus”, lançado em 1974, sintetiza fielmente o que foi a banda em sua curta trajetória no planeta da música.

Mas para perder o costume vamos à história da banda, afinal a sua história se torna o espelho do que produziu em seus álbuns, sobretudo para bandas como o Gäa que deixa a liberdade da criatividade imperar.

“Gäa” vem do nome da deusa grega da Terra e da Fertilidade, Gaia, e foi formada em 1973, em Saarbrücken, capital do menor estado do Sarre, que faz fronteira com Luxemburgo e França. E quem esteve na fundação foram três amigos: Helmut Heisel, na guitarra, Peter Bell, no baixo e Stefan Dörr, na bateria e que tocaram juntos em uma banda chamada “The Phantoms” no colégio.

Era uma banda praticamente amadora, de jovens músicos, que tocavam cover, mas que logo se estabilizou em torno do guitarrista Werner Frey, que entrou no lugar de Heisel que, quando se formou na escola, optou por cursar Direito, do baterista Stefan, do vocalista e percussionista Werner Jungmann, do tecladista Günther Lackes e do baixista e flautista Peter Bell.

Depois de vários shows, estes amigos tiveram a oportunidade de entrar em estúdio, ainda em 1973, quando a banda já estava de fato formada e determinada a gravar músicas autorais, para gravar o álbum “Auf Der Bahn Zum Uranus” que foi lançado um ano depois, em 1974, com uma tiragem, pasmem, de apenas 300 exemplares! Reza a lenda que a quantidade de prensagens foi ainda menor, com cerca de 289 cópias!

Desde o início de sua trajetória o Gäa se distanciou da cena cultura de Munique ou da antiga Berlim Ocidental. Não tinham a “elegância” local, não se comparavam a bandas como Can, Faust, Cluster ou ainda o Amon Düül. Talvez pelo fato da banda, sem recursos para ter os equipamentos caros ou uma estrutura condizente para construir sonoridades como dessas seminais bandas representantes do krautrock, construiu a sua própria e arrojada sonoridade. Se tornaram únicos à sua maneira, mesmo que diante de obstáculos e entraves de cunho estruturais.

"Auf Der Bahn Zum Uranus" que, em tradução livre, significa “No caminho para Urano”, talvez personifique bem a condição sonora de suas chapantes músicas, porque, como disse, além de ser bem original, traz aquele apelo à space rock, que arriscaria em dizer que pode ter sido um dos primeiros trabalhos lançados na história.

E esse tipo de música, pouco usual para a época, foi o que interessou Alfred Kerston, dono da gravadora Kerston Records que decidiu contratar os caras imediatamente. Mesmo com essa questão da música underground e que pouco se encaixa ao que existia à época, a banda foi precoce, porque foi formada em 1973 e logo gravou seu primeiro álbum em 1974.

E outro detalhe importante que é, no mínimo inusitado, é que a gravadora era focada principalmente no lançamento de singles e bandas pop e que sempre evitou desbravar músicos e bandas alternativas. Era um estúdio pouco equipado, não tinha a estrutura dos grandes estúdios da época e, claro que o Gäa seria submetido a esse cenário e gravaria seu primeiro álbum de forma muito artesanal e assim nasceu “Auf Der Bahn Zum Uranus”.

E além da pouquíssima tiragem, ainda sofreram com alguns acidentes, porque parte da edição foi destruída e apenas uma pequena parte, à época do lançamento, foi vendida nos shows, sem nenhum tipo de divulgação por parte da gravadora, mas também com esse número tão reduzido de cópias. O que fazer? E hoje é tido, por muitos especialistas e colecionadores ávidos de vinis, como um dos LPs mais raros do mundo!

Mas não se enganem, caros amigos leitores, que esse trabalho se resume a uma pegada space rock, mas traz texturas interessantes de blues rock, de hard rock, de psych rock, com altos tons de lisergia, com guitarras alucinantes, com levadas de prog rock com um caráter mais sujo e garage e uma discreta pegada experimental, afinal, quando se coloca tudo isso em um “caldeirão” sonoro, não pode ser esquecido o fator experimental para tentar definir esse clássico obscuro.

A produção, para variar, fica aquém do que se espera, afinal, com a tímida estrutura do estúdio a qual foi concebido, não poderia ser diferente, mas traz certo “charme” ao produto final, dando-lhe identidade, trazendo também composições ingênuas, simples, mas que sintetiza fielmente o rock em sua gênese.

O Gäa, com o seu debut, demonstra uma tendência não conformista. Sente-se uma música sensível, cheia de melancolia, paixão, visceral, com tons até mesmo dramáticos, graças ao hard rock e até mesmo ao folk envolvidos. Ousaria dizer que ficaria no mesmo patamar de medalhões como Pink Floyd, Scorpions e até mesmo Jimi Hendrix. Basta observar, ouvir a guitarra de Werner Frey para corroborar tal questão, mas não se enganem, a sonoridade não se plagia. A formação da banda, em seu primeiro trabalho, trazia: Werner Frey na guitarra e vocal, Stefan Dorr na bateria e vocal, Werner Jungmann no vocal, Gunter Lackes nos teclados, órgão, piano e vocal e Peter Bell no baixo. Flauta e vocal.

O álbum começa, e muito bem, com a faixa “Uranus” que introduz com sons calmos, brandos, levando a um sermão falado em alemão. Há quem diga se tratar da sonda “Voyager” que estava indo para esses planetas gigantes gasosos distantes na década de 1970. E com isso a música se traveste em uma paisagem sonora cósmica, graças a um órgão soturno e sinfônico, revestido por um blues ácido e pesado, nebuloso, com uma guitarra lisérgica. A música interage com space rock, a calmaria que este propicia e o peso da lisergia capitaneada pela guitarra.

"Uranus"

Segue com a instrumental “Bossa Rustical”, de clima meio hispânico mesclada a aridez da psicodelia trazendo variações com violão acústico de estilo folk e que a bateria e o baixo dão sequência, atribuindo um pouco mais de ritmo. Eis que surge a guitarra que traz consigo um pouco mais de peso, mas que logo desaparece e a música termina em um vazio estranho.

"Bossa Rustical"

“Tanz Mit Dem Mond” que começa com pianos acústicos bem dramáticos e guitarra bem amplificada, soprando isso tudo, criando um “campo sonoro” bem agradável e pungente, diria. É a faixa enriquecida com belas melodias feitas por várias camadas vocais que são tão bem ecoadas que nos faz viajar.

"Tanz Mit Dem Mond"

“Mutter Erde” trazem melodias repletas de humores rítmicos, idas e vindas, variações sonoras, nos fazem chegar à conclusão de que a sonoridade não tem rótulos definidos e fechando isso tudo vem uma textura psicodélica cheia de groove. Definitivamente tem uma dinâmica fantástica, sendo um dos maiores destaques do álbum. “Welt Im Dunkel” é uma música mística, estranha, exotérica, talvez traz algum tipo de adoração, ritual, lembrando as músicas do seminal Black Widow e até mesmo Coven. Há uma “pitada” de occult rock nessa faixa.

"Mutter Erde"

E fecha com a faixa título, “Gaa” que começa, fantasticamente, com batidas de blues na seção rítmica, que se entrelaçam a guitarras pesadas e lisérgicas e que explode em uma verdadeira jam section. Há alguns toques leves de flauta, lembrando algo mais voltado para o beat, descambando para algo mais experimental e totalmente underground.

"Gaa"

A gravação, a produção do álbum de fato está aquém do que esperamos, claro, as condições pelas quais a banda trabalhou não eram favoráveis para uma gravação de qualidade, mas ainda assim, ao ouvi-lo, percebe-se o quão é cativante e agradável de ouvir esse único trabalho do Gäa. Além dos reveses que foi ter gravado esse álbum, sofreram com a perda de grande parte das cópias que, tudo indica ter sido criminosa, pois reza a lenda também que foram jogadas em uma lata de lixo no fundo de um quintal até mesmo com as fitas originais.

No início de 1975 foi gravado, desta vez em melhores condições, no estúdio “Leico”, de Michael Leistenschneider em Schmelz, o segundo álbum da banda chamado “Alraunes Alptraum”, que pode ser ouvido aqui, que não foi concluído, sendo lançado, somente em 1998, pelo selo “Garden of Delights”, porque a banda decidiu se separar, naquele mesmo ano, deixando-o inacabado. Há informações de que o Gäa teria se separado em 1978. 

"Alraunes Alptraum" 

Werner Frey seguiu Peter Bell até Tombstone, Günter Lackes juntou-se ao Blackbirds, onde até hoje toca com a banda, Helmut Heisel passou por várias bandas e está no Saartana desde 1991 junto com Stefan Dörr, que gravou um álbum solo em 1998. Werner Jungmann e Bello não atuam mais como músicos. Werner Frey agora trabalha como professor, Günter Lackes como bancário, Helmut Heisel como dono de terras, Stefan Dörr como empreiteiro de transporte, Werner Jungmann no serviço médico e Bello como funcionário público.

A conexão amigável entre eles ainda existe e é muito forte, tanto que, durante a década de 1980, os ex-membros do Gäa ocasionalmente se reuniram para tocar em pequenos clubes à noite e chegaram a gravar algum material autoral, mas não foram lançados oficialmente.

“Auf Der Bahn Zum Uranus” teve algumas reedições. A primeira foi em 1992 pelo selo Ohrwaschl, no formato CD, bem como em 2007, também em CD, pela gravadora “Orange”. Mais tarde, em 2015, foi reeditado pelo icônico selo “Garden of Delights”. Apesar do profundo ostracismo pelo qual o Gäa foi submetido a banda trouxe à tona um trabalho arrojado, importante, poderoso e extremamente versátil, não se adequando a rótulos, estilos, nada. Foi um álbum que absorveu, com êxito, todas as cenas musicais que borbulhavam na Alemanha no final dos anos 1960 e nos anos 1970.


A banda:

Werner Frey na guitarra e vocal

Stefan Dorr na bateria e vocal

Werner Jungmann no vocal e congas

Gunter Lackes no órgão, piano e vocal

Peter Bell no baixo, flauta e vocal

 

Faixas:

1 - Uranus

2 - Bossa Rustical

3 - Tanz Mit Dem Mond

4 - Mutter Erde

5 - Welt Im Dunkel

6 - GAA 



"Auf Der Bahn Zum Uranus" (1974)