Final da década de 1960. A
psicodelia estava em seu ápice e claro na Itália não era muito diferente, o
beat italiano tomava conta das rádios e proliferava em todos os cantos do país.
Algumas bandas gozavam de popularidade e algumas eram promissoras, tinham um
futuro pela frente, a desbravar. Era o caso da banda Free Love.
A banda trazia em seu line up músicos jovens, mas que já tinham
alguma bagagem ou até reputação na cena psicodélica italiana. As coisas
realmente iam muito bem para o Free Love nos idos de 1970, tanto que em outubro
daquele ano os caras são convidados para tocar no primeiro festival pop de
Caravala e inclusive conseguiram um contrato com a gravadora “Vedette” que
editou seus primeiros 45 rpm, “Sandy” e “Il Tempo di Pietra", ambos
lançados ainda em 1970.
A formação original do Free
Love apresentava os irmãos norte-americanos Carl e Steve Stogel, baixo e
guitarra, respectivamente, Stefano Sabatini, nos teclados, Gianni Caia na
bateria e o vocalista Tony Gizzarelli. Com essa formação a banda gravou os seus
primeiros singles. Mais tarde, no final de 1969, o Free Love foi acompanhado
pelo violinista canadense John Picard e, por apenas a alguns meses, pelo cantor
e percussionista Ricky Cellini.
A banda, em seus primórdios,
lembrava um pouco os primeiros trabalhos do New Trolls, tanto que os seus
singles chamam a atenção do maestro Piero Umiliano que recruta o Free Love para
interpretar a trilha sonora de seu filme, “Roy Colt & Winchester Jack”, um
“faroeste espaguete”, que foi imortalizado em 45 rpm para Cinevox, com as
músicas “Roy Colt” e “Dove”, ambos de 1970.
Ainda em 1970, após a saída de Gizzarelli e Cellini, fizeram vários shows no norte da Itália, Suíça e Sardenha. Tudo ia muito bem para o Free Love, eram shows, contrato, participação em trilha sonora de filme, tanto que eles iriam participar de outra edição do festival em Caracalla em maio de 1971, ao lado de bandas como New Trolls, Osanna, Delirium e The Trip.
Mas a banda se separaria lá pelo final do ano 1971, Fábio Cammarata substituiria Stefano Sabatini e Picard sairia após o verão, mudando-se para a França. Caia e Steve Stogel, juntamente com o baixista Mauro Montaldo, se reuniriam com Sabatini para uma turnê como banda de apoio de Mia Martini. E aí a tragédia aconteceria.
Foi em fevereiro de 1972, quando regressavam de um show na Sicília, que o carro dos músicos se envolveu em um grave acidente matando Gianni Caia e Steve Stogel, enquanto Sabatini e Montaldo ficaram gravemente feridos, mas sobreviveram. Um show, quando Sabatini e Montaldo se recuperaram, foi realizado no Piper para lembrar os músicos que morreram e para arrecadar fundos para as suas famílias.
O reencontro, nessas
circunstâncias, não foi fácil, foi dolorido, mas com muita coragem e esmero em prol do amor à música, Sabatini e Carl Stogel reconstruíram uma nova banda para
participar do festival de Caracalla, no outono de 1972, com o baterista
Giovanni Liberti e o Saxofonista Massimo Balla que substituiu Stefano Cesaroni.
Nesse momento se decreta o fim do Free Love.
Em 1973, desta formação que
se apresentou no outono de 1972 no festival Caracalla, após a substituição de
Carl Stogel pelo estreante baixista Franco Tallarita, nascia a banda KALEIDON,
alvo de minha resenha de hoje, sendo fortemente influenciado pelo jazz rock e
algumas passagens bem temperadas pelo rock progressivo, gravando apenas um
álbum, pela “Fonit Records” que se intitula “Free Love”. A intenção era
homenagear a sua antiga banda e os seus companheiros que perderam a vida no
fatídico acidente.
O título do álbum, além de
uma clara homenagem a banda anterior e ao seu sonho artístico bruscamente
interrompido, trata-se também de uma jóia instrumental do mais puro e genuíno
jazz rock de absoluta cristalinidade ao estilo “canterburiana”, com uma
“contaminação” para o jazz.
O álbum, inteiramente
instrumental e gravado em um tempo recorde, em apenas três dias, de 28 a 30 de
agosto de 1973), como disse, enquadra-se na veia jazz rock, ousaria dizer que
mais jazz do que rock e soa fluído e compacto, livre de borrões e algo
demasiadamente carregado o que logo se nota nos primeiros acordes da primeira
faixa, mostrando um ótimo trabalho de equipe, de banda coesa com texturas
tecidas com o protagonismo do piano e saxofone.
O álbum, como muitas vezes acontecia naquele período, não teve muita sorte sob o aspecto comercial, porém no “Ciao 2001”, de 21 de abril de 1974, Giorgio Rivieccio falou do Kaleidon como uma banda que demonstrou e desenvolveu um discurso jazzístico próprio e altamente original.
E continuou dizendo que “Free Love” surpreendeu muito do
ponto de vista técnico e estilístico e que é tanto mais apreciável quanto é o
resultado de uma pesquisa pessoal intransigente de um álbum natural que para
muitos são encarregados de clareza expressiva e o sentimento desta banda brota
das notas de cada um dos instrumentos, envolvendo totalmente o ouvinte e
conseguindo quebrar o biombo que se cria entre ele e o intérprete, para
estabelecer com ele uma comunicação mais direta. Termina dizendo que cada nota,
cada pausa ganha o devido valor e o justo equilíbrio até nas improvisações que,
apesar disso, conservam todo o seu frescor e espontaneidade.
As impressões de Rivieccio incrivelmente convergem com a minha acerca deste trabalho do Kaleidon, com o uso carregado de piano elétrico e os efeitos psicodélicos e jazzísticos de Sabatini, o trabalho de saxofone quase que escaldante de Massimo Balla fazem a diferença, definitivamente.
Outro detalhe importante a se ressaltar é a ausência da
guitarra, o que pode reforçar a hipótese de que o Kaleidon tende mais para o
jazz do que o rock n’ roll, mas o rock está lá, principalmente pelas “pitadas”
progressivas e algumas doses de peso. Se fosse tentar “rotular” o som do
Kaleidon em “Free Love” eu arriscaria em uma espécie de “stoner jazz”! Picardias
à parte a música neste álbum transcende.
A faixa de abertura,
“Kaleidon”, começa com o evidente jazz bem atmosférico que vai aumentando
gradualmente até se estabelecer em uma batida bem legal de bateria, acompanhada
de groove de baixo, pulsante e vivo. Saxofone misturado com teclados traz todo
o acabamento da música, até que a música muda de andamento, como em uma virada
prog rock e a interferência do jazz rock lisérgico continua de forma muito
agradável e solar.
A faixa “Inverno ‘43” começa
com uma leve bateria tribal, acompanhada por piano e baixo flutuando suavemente
sobre tudo. O sax se junta, animando um pouco, mas essa música é muito suave e
espacial. É uma música fervente, taciturna, com sax e baixo enamorando-se em
uma sinergia incrível, com a discreta participação de uma guitarra.
“Dopo La Festa” segue,
abrindo com uma batida de bateria, então alguma improvisação de psych-jazz.
Isso eventualmente se resolve em uma boa jam
de jazz sobre uma batida envolvente e mais um excelente trabalho de baixo.
A quarta música, "Polvere" começa
com uma linha de baixo repetida, que logo será acompanhada pelo resto da banda,
e a jam de jazz começa novamente, com
pontes ocasionais conectando cada seção da jam.
A próxima faixa, "Oceano", a flauta ganha protagonismo, tocada por Balla, e é uma mudança de ritmo bem-vinda, acrescentando à tapeçaria que está sendo tecida enquanto você ouve o álbum. A música é outra excelente jam de jazz rock com muita interação de todos os membros da banda.
A faixa que encerra o álbum
é "Free Love", a faixa título, sendo uma música de jazz puro, com um
trabalho estelar de piano de Sabatini complementado com belos solos de saxofone
de Balla. Um final agradável, solar e maravilhoso de um espécime de jazz rock
da melhor qualidade.
No dia seguinte à sua
participação no terceiro festival d’Avanguardia de Nápoles, em 1973, há um
importante rearranjo na formação do Kaleidon com a entrada de Francesco Bruno,
um talento guitarrista, para cobrir a necessidade de maior expansão e o casal
Francesco Froggio Francica e Gianni Colaiacomo para substituir o baterista
Liberti (forçado a sair por motivos familiares) e o baixista Tallarita que
sairia para tentar novos caminhos, novos projetos musicais, tocando em banda
chamada “UT”.
A nova ala rítmica é
claramente mais voltada para o rock n’ roll e o novo Kaleidon, que gira em
torno do tecladista Sabatini, parecia abrir-se a novos horizontes musicais: com
um guitarrista nada convencional e, ainda por cima, experimentação com outros instrumentos,
como violino, vibrafone e percussão. E essa mudança se apresentou de forma
latente em ensaios e festivais que a banda esteve, como em Carpineto Romano e
Villa Pamphili.
Brigas internas no Kaleidon,
a pouca receptividade na indústria fonográfica para com a sua sonoridade, bem
como as rádios, a banda decretou seu fim em 1974. As experiências posteriores
dos músicos do Kaleidon não foram de tão ruim assim. Gianni Colaiacomo entraria
no Banco del Mutuo Soccorso, Stefano Sabatini fará parte do projeto Samadhi,
tocaria também na banda de Tony Esposito e Form The Mediterraneo, enquanto
Francesco Bruno viria a produzir vários projetos musicais.
“Free Love” do Kaleidon não é a obra-prima do jazz rock, mas sem dúvida alguma se trata de um exemplo esplêndido desta música maravilhosa que surgiu no início dos anos 1970 que poucas pessoas ouviram e as que ouviu, a sua maioria, rejeitou, inclusive a indústria fonográfica. “Free Love” é uma dose pesada e chapante de jazz rock psicodélico, um álbum e tanto que conceberam dentro de sua vertente sonora e deveriam ter sido reconhecidos por isso.
O álbum foi relançado, no formato CD, pelo selo Mellow Records e ainda assim se tornaram raros e caros e em 2014 a gravadora italiana BTF relançou “Free Love” no formato LP e as suas cópias parecem estar prontamente disponíveis em sites especializados de venda. Definitivamente uma pérola subestimada à época, mas altamente recomendada em todos os tempos.
A banda:
Stefano Sabatini nos
teclados
Massimo Balla no saxophone e
flauta
Franco Tallarita no baixo
Giovanni Liberti na bateria
Faixas:
1 - Kaleidon
2 - Inverno '43
3 - Dopo La Festa
4 - Polvere
5 - Oceano