Segunda metade dos anos
1960. O mundo estava agitado, intenso e, diria, em alguns momentos, tenso. A
Guerra do Vietnã era um engodo democrático da polícia do mundo! O mundo
protestava contra a polícia do mundo! A contracultura florescia e protestava e,
por intermédio de várias manifestações artísticas deixavam os seus registros, a
sua revolta perante o status quo ultraconservador.
A música, claro, deixou a
sua marca, sobretudo a cena psicodélica de Los Angeles, com uma profusão de
grandes bandas que deixaram clássicos para todo o sempre com a sua
atemporalidade e nessa toada podemos destacar The Doors, Janis Joplin e tantos
outros que ajudaram a construir a cena rock, não apenas local, mas de todos os
Estados Unidos e que, claro, foi exportado para o mundo inteiro, servindo de
inspiração para o surgimento de tantas outras bandas.
Mas é claro que a cena
também teve o seu lado obscuro e esquecido, de bandas que caíram no ostracismo
ou aquelas que simplesmente nasceram fadadas à morte. Digo à morte comercial,
até porque precisamos, de uma vez por todas, diferenciar ou dissecar as faces
do sucesso e do fracasso, o que é oriundo de oportunidade ou da falta da mesma
ou da falta de talento.
A cena obscura norte
americana de hard rock e psicodélico é definitivamente grandiosa em termos
quantitativos e qualitativos e que, sem sombra de dúvida, viveu ou sobreviveu
em paralelo ao glamour e reconhecimento de público e crítica das grandes bandas
que, com algum merecimento, sim, ostentou o status de pioneiras em diversos segmentos
do rock n’ roll.
Eu poderia citar inúmeras bandas americanas de hard psych obscuras, afinal sou um apreciador do estilo e da cena obscura estadunidense e a cada dia parece renascer com cada descoberta por mim feita.
Para a minha alegria o rock n’ roll é um universo vasto,
inexplorado e logo selvagem. Um mundo intocável que de posse precisa ser
lapidado, registrado por textos, vídeos por seres abnegados para que ela, de
alguma forma, se perpetue.
Como diante disso torna-se
inviável elencar cada banda, vou citar uma rara, mas especial e não é especial
tão somente por ser rara, mas pela sua sonoridade arrojada para a época. Falo
da banda FRACTION e do seu único trabalho, lançado em 1971, chamado “Moon
Blood”.
E já que comecei esse texto a falar da cena psicodélica que reinou absoluta em Los Angeles, cidade onde o Fraction foi concebido, e em todos os Estados Unidos, o ano de 1971 foi o início do pós-hippie.
Hendrix, Joplin, Morrison, representantes da cena já
estavam mortos, Manson, com a sua carnificina, praticamente enterrou o
movimento “flower power” e algumas bandas, oriundas da cena tiveram que rever
sua sonoridade, trazendo algo mais pesado e o grande representante desse
momento foi o Iron Butterfly, por exemplo. Podemos exaltar tantas outras como
Blue Cheer, Blue Oyster Cult...
O Fraction trouxe esse
momento da música, sendo um representante fiel, com uma sonoridade densa
envoltas em uma atmosfera mística e nebulosa, quase que oculta e sombria,
pautado em letras cristãs meio que apocalípticas que me remete a italiana Il
Rovescio della Medaglia em seus primórdios. São letras abstratas, algo pouco
palpável para um entendimento “padrão” e visível incitando o ouvinte a pensar,
refletir e a construir inúmeras interpretações, dependendo da experiência de
vida de cada um.
Mas o som do Fraction ainda
carrega alguns “resquícios” de um passado não muito distante da lisergia
sessentista, com guitarras ácidas, com sons mesmerizantes e que induz a ouvir,
a ouvir e a ouvir compulsivamente. Um verdadeiro espécime da transição das
décadas.
Uma sonoridade dramática,
comovente, por vezes grave, urgente e reconfortante, agradável e contemplativa,
mas que descamba, para o frenesi do peso, da loucura que dilacera a alma com
peso e até agressividade.
A banda era formada por
trabalhadores normais! Sim! Operários, representantes comuns da classe
trabalhadora e músicos diurnos. Eram músicos pela manhã ou durante a madrugada,
pois durante o dia, dedicavam-se nos seus trabalhos formais. A banda era
formada por Jim Beach nos vocais, Don Swanson na guitarra principal, Curt
Swanson na bateria, Victor Hemme no baixo e Robert Meinel na guitarra rítmica.
Eles se conheceram nos anos
1960, por intermédio de vários outros conhecidos que tinham em Los Angeles.
Tiveram, como muitos músicos estado em outras bandas antes e formaram no final
daquela década o Fraction. Eles precisavam de algo novo, de algo que não
estivesse associado à “finada” psicodelia sessentista e por querer trazer algo
novo tinham, apesar das dificuldades de conciliar o trabalho regular, praticar
e praticar.
O Fraction tinha um pequeno
estúdio em um complexo industrial em North Hollywood e começavam a praticar às
vezes, às 4h30 da madrugada! As sessões de gravação do álbum foram gravadas de
forma semelhante e em tempo real. Foram apenas três horas em um “take”, nem overdubbing
ou quaisquer efeitos sonoros adicionais adicionados. Foi aquela famosa gravação
“old school”. É incrível o resultado e o impacto à música, ao rock à época e
para a posteridade, haja vista que o estilo é tido como o precursor do stoner
rock tão em voga atualmente em uma cena já saturada, inclusive.
A gravação de “Moon Blood”
aconteceu no Whitney's Studio em Glendale, na Califórnia, no início de 1971.
Com um orçamento baixo, restrito foram lançadas apenas com 200 cópias! 200
pessoas privilegiadas que tiveram a primeira prensagem dessa pepita sonora! Foi
lançado por um pequeno selo de música cristã chamado “Angelus”.
As letras, mencionadas como abstratas e complexas, são do vocalista Jim Beach que cita, como inspiração para a sua música bandas de proto punk como Love e o The Doors como sua favorita na cena vasta de Los Angeles. Inclusive tinha uma lenda que reinava naquelas bandas à época de que “Moon Blood” era o álbum que o The Doors gostaria de ter gravado. Bem se isso é verdade eu não sei mas nota-se influência da banda de Morrison & Cia no trabalho do Fraction.
Diria mais:
embora a questão cronológica dá conta de que o The Doors surgira antes do
Fraction, não deixam de ser músicos contemporâneos, com o segundo, ouso dizer,
mais arrojado flertando com um hard rock ainda embrionário. Além do Love Beach
sempre se inspirou em Bob Dylan, sobretudo pela forma como escrevia as letras
das músicas e em bandas de hard psych como The Yardbirds.
Mas não podemos deixar de
enaltecer o trabalho do guitarrista Don Swanson! O homem foi o responsável ou
um dos responsáveis, apesar da obscuridade de sua banda, diante do glamour da
cena de LA, de implementar uma modelo para o que é agora comumente conhecido
como “Stoner Rock” ou “Acid Punk” com solos avassaladores com muito “wah-wah”
com amplificadores elevados ao limite!
A guitarra de Swanson sempre
foi a força motriz por traz da criatividade inquieta e pouco convencional de
Beach na concepção das letras das músicas, definitivamente uma dupla dinâmica e
poderosa que, de forma arrojada, criou um conceito, um som novo, mas sem
padrões e com um leque incrível, cheio de versatilidade.
As contribuições dos outros
caras não devem ser subestimadas. O baterista Curt Swanson mantém as coisas em
constante ebulição, tudo ferve na sua bateria pesada e marcada, fazendo a
engrenagem sonora do Fraction levitar, tendo também no baixista Victor Hemme o
parceiro ideal. A “cozinha” fervilha!
Embora eu não seja um
entusiasta de comparações e os riscos que se incorre quando, de forma
patológica, se compara o tempo todo, bem como o seu único rebento, “Moon
Blood”, traz à tona bandas como The Stooges e MC5, mas não tão agudos, diria,
com um pouco da lisergia perdida nos anos 1960. As bandas marginais que, sem
nenhum tipo de apoio e sem nenhuma perspectiva digna de vida que influencia
diretamente na sonoridade da banda.
O Fraction tem como base
sonora o rock cristão (Christian Rock), mas com um viés sombrio, perigoso e
perturbador, fazendo da banda obscura e esquecida nos porões empoeirados e
sujos do rock n’ roll! Naquela época parecia se ter certa demanda cristã
narrada de uma forma, diria, pouco ortodoxa, seja no cinema, com os clássicos
bíblicos, no teatro e na música não foi diferente, produzindo, de alguma forma,
bandas como o Fraction.
E para não fugir do assunto
“cristão” o nome do álbum, claro, é baseado em uma passagem bíblica de Joel
(2:31) que diz:
“"O
sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e terrível
dia do Senhor."
Então sem mais delongas
vamos ao que interessa: ao álbum, faixa por faixa! Este é inaugurado por
“Sanc-Divided” que traz guitarras bem despojadas, potentes, cheia de recursos
definindo um clima intenso, forte, mas sombrio e intimista, ao mesmo tempo. A
música cresce, ganha corpo e depois vem um turbilhão de fuzz impiedoso, mas
reduz o ritmo. Uma música cheia de alternância rítmicas.
“Come Out of Her” traz o destaque vocal de Beach bem rosnante, perigoso e indulgente com um extrema competência e alcance. E que logo é incrementado com um solo linfo de wah-wah que leva o ouvinte a uma onda psicodélica até o fim da música!
Na sequência tem "Eye Of The
Hurricane” que é, sem sombras de dúvidas, o ápice do álbum, mágica do seu
início ao fim, com os seus nove minutos de duração. Traz uma jam
pós-apocalíptica com um excelente trabalho de guitarra com complexidade, mas
orgânica e de muita, mas muita intensidade.
“Sons Come to Birth” é a
balada do álbum que tem toda a dinâmica perfeitamente definida. Os tons
psicodélicos aparecem em cada riff de guitarra, mesclado a uma pegada mais
ácida, lisérgica. O baixo conduz a um groove que prepara a música para algumas
boas e inspiradas improvisações.
E fecha com “This Bird (Sky
High) traz uma seção de poesia meio que falada ao estilo, adivinhem, Jim
Morrison, do The Doors, mas que culmina com uma explosão de rock n’ roll de
altos decibéis, envoltos em riffs de guitarra e solos de guitarra com força
total, com vocais lamentosos e roucos.
Com o lançamento do álbum “Moon
Blood”, em 1971, o sucesso e o reconhecimento pelo excelente trabalho não foram
devidos, decretando o fim do Fraction. A banda se separou logo em seguida,
voltando os músicos as suas rotinas de trabalhadores comuns e formais.
Mas depois de vários bootlegs
ao longo dos anos, em 1999, “Moon Blood” ganhou uma reedição no formato CD pela
primeira vez e apresentou três faixas bônus inéditas: “Prisms”, “Dawning Light”
e “Intercessor’s Blues” ganhando uma reverberação da força já atestada nos
primórdios da história do lançamento do álbum há quase quarenta anos atrás.
Em 2010 ganha mais uma
reedição, pelo selo “Mexican Summer”, mas dessa vez no formato LP e também em
CD, sendo que o primeiro teve, em sua linha de montagem, na sua produção, feito
à mão, um a um, dando, ainda mais, importância para esse momento de resgate de
uma banda vilipendiada e esquecida pela indústria fonográfica.
Essa reedição traz de volta à luz o Fraction que, certamente, no seu surgimento no fim dos anos 1960 e início dos anos 1970 sequer vingou quando da concepção de “Monn Blood”.
Não
tenha dúvida que, com essas reedições e com o advento da tecnologia da
informação, com sites e redes sociais, encurtando a comunicação, sem dúvida
colocou a música da banda de Los Angeles um pouco mais em evidência, o que não
acontecera em sua época e ao longo de mais de quarenta anos, fazendo desses
álbuns um centro de verdadeira disputa entre colecionadores que estariam
dispostos a pagar a bagatela de até US$ 2.000,00 por um exemplar.
Um exemplo de uma banda que,
apesar de ostracismo, do esquecimento, e do tempo implacável, mostrou-se
resistente e relevante pelo seu pioneirismo diante do tamanho de uma sonoridade
que insiste em não envelhecer, mostrando-se cristalina, poderosa e vital aos
que amam, de forma incondicional, o rock n’ roll. Infelizmente, o guitarrista
Don Swanson faleceu em maio de 2013.
A banda:
Vic Hemme no baixo
Bob Meinel na guitarra base
Don Swanson na guitarra
principal
Curt Swanson na bateria
Jim
Beach nos vocais
Faixas:
1 - Sanc-Divided
2 - Come Out Of Her
3 - Eye Of The Hurricane
4 - Sons Come To Birth
5 - This Bird (Sky High)
ótima resenha! Bom conhecer
ResponderExcluirAmigo João Luiz eu agradeço pelo comentário elogioso, agradeço por ter lido também. Fico alegre por ter curtido a banda! Har rock e lisergia,combinação perfeita.
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