Final dos anos 1970. O rock n’
roll passava por um forte período de ebulição, de transição, de mudanças. O
rock progressivo se tornava cada vez mais indulgente, o punk ganhava o seu auge
comercial, o ‘faça você mesmo” traria os primórdios do rock e a cena hard rock,
com as suas bandas mais emblemáticas, perderia espaço por conta de seus músicos
imergidos no mundo das drogas ou em litígio com os seus companheiros de banda.
Os anos 1980 foi inaugurado
com a erupção do peso, da velocidade no rock n’ roll, tendo como protagonista a
cena inglesa chamada “New Wave of the British Heavy Metal”, espalhando-se em
vários cantos do mundo.
O heavy metal ganhava espaço
porque ganhava em atitude, rebeldia e agressividade nos comportamentos das
bandas e de seu público, encaminhando todos esses novos elementos às letras e
conceitos dos seus álbuns, apresentando características peculiares, de acordo
com as manifestações culturais de suas regiões e/ou países.
Evidente que essa cena bebeu
da fonte dos clássicos setentistas como Led Zeppelin, Deep Purple e principalmente
os primeiros trabalhos sombrios do Black Sabbath. As arestas começaram a ser
pavimentadas nos longínquos anos 1970, não esquecendo daquela banda que
levantou e criou o estilo, não apenas pelo aspecto sonoro, mas também estético:
o Judas Priest.
E longe do embrião dessa cena
pesada, mais precisamente em uma região chamada New Haven, em Connecticut, nos
Estados Unidos, surgiria uma banda que caiu no mais profundo e genuíno
ostracismo, trafegando pelas sombras marginais do rock n’ roll, um power trio
chamado LEGEND, em 1978, que, nos seus primórdios, se chamava “Judge”.
A tradução livre, “lenda”, talvez não se adeque a triste realidade e fim precoce desta banda que tingiu a sua música de uma forma tão peculiar e especial que sempre me faz surgir aquela maldita pergunta que parece me perturbar a cada momento: Por que essa banda não conquistou o mundo? Por que essa banda não atingiu o sucesso?
E para aqueles que consideram
a música pesada, em todas as suas vertentes, algo ruim, sem qualidade, se torna
urgente a audição do único trabalho da banda, lançado em 1979 chamado “Fröm The
Fjörds”, lançado pelo selo “Empire Records”, uma divisão da “Colussus
Enterprises”, com uma tiragem mais do que limitada, cerca de 500 cópias apenas
e vendidas rapidamente e hoje atingindo o status de banda “cult”, seus LPs e
relançamentos são disputados a tapas mesmo que os valores muito altos.
Porém antes, em 1978, foi
lançado uma demo chamada de “Before The Fjords”, que continha cinco faixas que
logo seriam agregadas ao seu álbum lançado um ano depois, que seria relançado
em CD, em 2019, com a reedição do álbum “Fröm The Fjörds”, quarenta anos após
seu lançamento original.
“Fröm The Fjörds” traz
elementos do já citado jovem, à época, do heavy metal, mas também de rock
progressivo dos anos 1970, além de variações que apresentam o jazz, o folk,
country music, o hard rock e o classic rock. Parte de seus músicos, mais
precisamente o baterista Raymond Frigon, trafegou em influências progressivas
antes de constituir a banda. Era o que o cara ouvia: Yes, Emerson, Lake &
Palmer, bandas jazz fusion como um todo e certamente essa predileção
“contaminou” a música do Legend.
Mas Fred Melillo, baixista e
Kevin Nugent, guitarrista e vocalista, também, de certa forma, compartilhavam
da mesma paixão pela música de Ray e tornar-se até improvável uma banda como
Legend ser uma referência do heavy metal estadunidense.
É uma sonoridade diversificada
e por mais que possa aparentar, como disse, algo improvável, atípico, se mostra
sinérgico e poderoso e o trinômio peso/velocidade/agressividade se junta a
complexidade, porém entrega uma música extremamente orgânica, cheia de vida e
traz a luz o tema, até então pouco usual naqueles tempos na música pesada:
deuses, vikings, magos, batalhas épicas e tudo o mais, afinal o título de seu
álbum sugere esse tema. Bandas de hard rock como Rainbow, provavelmente trouxe
pioneirismo a esse estilo de música, comumente chamado de “power rock” ou “epic
rock”, “viking metal”, são tantas nomenclaturas...
Em algumas entrevistas, o
baterista Ray Frigon conta que a inspiração em mitos e lendas, usadas para a
construção do álbum, sejam elas históricas ou fabricadas, foram concebidas nas
suas influências pessoais, bem como a de Kevin e Fred. Dizia também que as suas
batidas de bateria foram baseadas mais em Gentle Giant, por exemplo, do que
qualquer coisa relacionada ao heavy metal.
Já que estamos esmiuçando a
história do Legend, cabe aqui uma curiosidade: “fiorde”, palavra que compõe o
nome do álbum da banda, do norueguês fjord,
é uma grande entrada de mar entre altas montanhas rochosas, originada por
erosão causada pelo gelo de antigo glaciar. Os fiordes situam-se principalmente
nas costas da Noruega, Groelândia, Chile e Nova Zelândia, onde são um dos
elementos geomorfológicos mais emblemáticos da paisagem.
Kevin e Fred se conheceram no
Centro Educacional de Artes em New Haven. Eles assistiam a poucas aulas por
dia, afinal a intenção, o ideal dos moleques eram tocar, a música corria no
sangue deles. Tanto que nas poucas aulas que assistiam, quando dela saiam,
pegavam o ônibus e passariam o resto do dia tocando música.
Eles tocavam em uma banda
cover chamada “Edge” e que tocava em todo o Nordeste, gozavam de alguma
popularidade nos pequenos “clubs” e
pubs espalhados por essas regiões no entorno de Connecticut. E nessas andanças,
de show em show, conheceram Ray Frigon e o baixista John Judge. Logo se
identificaram e daí surgiu a necessidade de criar uma banda e tocar música
autoral.
Mas as coisas não deram muito
certo com John e Fred Melillo foi convocado para a formação que seria a
criadora de “Fröm The Fjörds” que, para muitos especialistas em música pesada,
é o precursor do heavy metal norte americano apesar da sua obscuridade.
Ray nunca tinha se envolvido
em um projeto musical antes do Legend, bem como os demais caras que fundaram a
banda, como John e Fred. Ray chegou a participar de algumas audições, testes
para tocar em outras bandas, mas não deu certo e continuou a tocar bateria, que
muito gostava, em sua casa.
Conheceu John por intermédio
de um anúncio de jornal que Ray respondeu. John foi a casa de Ray e o viu tocar
e logo se entusiasmou em formar uma banda. John conhecia um tecladista e queria
fazer algo que se alinhasse ao Emerson, Lake & Palmer. Esse tecladista não
gostou muito e não voltou mais para as audições, foi quando John levou Kevin
até a casa de Ray e a partir dessa primeira reunião que o embrião do Legend
surgiu.
Ray logo escreveu todas as
letras e o que o incentivou foi a obra de Frank Frazetta. Comprou seus livros e
olhava fixamente as suas ilustrações e inventava uma letra ou história sobre o
que via. Raymond levava a linha melódica para Kevin, que organizava suas partes
e a peça em torna dessa linha básica. Ensaiavam na casa, mais precisamente no
porão, de Ray. Nessa época John ainda estava na banda. Era os primórdios do
Legend.
Os jovens músicos tocaram
apenas 4 vezes antes de gravar “Fröm The Fjörds”: duas vezes em um clube e duas
vezes outro. A receptividade do público foi boa, os clubes ficaram
razoavelmente cheios, a ponto de, em alguns momentos Ray e Kevin ter tido
discussões acaloradas por conta da desanimação de encontrar nesses clubes,
pouca gente, pensando até em acabar com o Legend, mas, entre uma briga e outra,
os shows aconteceram e o Legend seguiu até as gravações de seu álbum.
“Fröm The Fjörds” foi gravado
graças a um empréstimo feito pelos pais de Ray, para financiar as gravações do
trabalho dos jovens músicos. O álbum foi feito por US$ 6.000,00. Kevin conhecia
um estúdio de 8 pistas em New Haven e lá foram. Era a primeira experiência de
gravação desses três garotos. Claro que os entraves aconteceram no processo de
gravação, mas seguiram fortes. A maioria das músicas demorou apenas uma ou duas
tomadas, afinal não tinham tanta grana para os custos do estúdio, precisavam
fazer logo tudo.
O conceito da capa foi dado pelo Ray Frigon a um jovem artista grego de nome Ioannis. Ele conseguiu realizar o trabalho e após alguns ajustes enviou a sua arte final, não sendo, segundo o Legend, uma boa representação do original. Os detalhes nítidos não foram, segundo a banda, capturados, ficando ainda em preto e branco para sobrar mais dinheiro para imprimir o maior número possível de cópias do álbum, conseguindo cerca de 500 cópias. O artista que concebeu a capa tinha feito uma versão colorida, mas, por conta da decisão da banda em investir mais dinheiro na prensagem do álbum, guardou a arte. Talvez quando a banda assinasse com alguma grande gravadora, pudesse usar a versão em cores.
O álbum é inaugurado pela
faixa “The Destroyer” e o peso desemboca em ótimos riffs de guitarra, com
vocais fortes, limpos, de grande alcance. Mas a seção rítmica também dá o tom,
corroborando o peso, algo cadenciado, é verdade, mas pleno, intenso.
“The Wizard's Vengeance” traz
a introdução de riffs frenéticos de guitarra que entrega algo mais dançante,
apesar do evidente peso da música. Mais uma vez a “cozinha” dá a textura
rítmica, conduzindo a uma veia mais hard rock setentista a faixa. Mas a
guitarra definitivamente dá o tom heavy rock.
“The Golden Bell” muda o
ambiente do álbum, algo sombrio, folclórico, pagão toma conta da música. Uma
faixa mais complexa, com veias mais progressivas, com algumas viradas rítmicas
e arrisco em dizer que discretas e rápidas pegadas jazzísticas na bateria. Vale
ressaltar que, mais uma vez, a sinergia entre baixo e bateria se faz presente.
“The Confrontation” retoma ao
hard rock e entrega algo mais comercial, radiofônico, diria. Talvez essa faixa
se encacharia em qualquer álbum do Van Halen, por exemplo. É uma faixa
instrumental muito bem elaborada, mostrando uma sinergia de seus músicos.
“R.A.R.Z”, que significa “'rock
and roll zole” (“Zole” é uma gíria britânica para “buraco”), começa meio bluesy, mas apenas começa, porque logo
irrompe em um bélico heavy metal capitaneado pela bateria pesada e marcada,
logo endossado pela guitarra e seus riffs pegajosos.
Segue com “Against the Gods”
que traz o hard rock com sustentáculo da faixa, cadenciada entre peso e uma
viagem meio psicodélica, lisérgica, com solos limpos e avassaladores de
guitarra.
“The Iron Horse” é talvez uma
das mais complexas faixas a começar pela introdução jazzística da bateria,
mostrando destreza do instrumento, aliás a faixa é predominantemente
instrumental e vai revelando as mudanças de ritmo, tendo o destaque da bateria
e as suas viradas sensacionais, sem contar com o solo com mais de três minutos,
o que é incomum.
E fecha dignamente com a faixa
título, “From the Fjords” repleto de viradas de tempo, de ritmo, caracterizando
um perfeito e poderoso hard prog. O destaque fica para os riffs de guitarra e a
bateria explodindo em peso e competência. No terceiro minuto a música abranda e
ganha uma textura psicodélica e sombria, algo até com improvisações, com a
“cozinha” ganhando destaque. Mas logo explode em intensidade de som com o
característico peso da banda.
Reza a lenda que o Legend
tinha material para gravar cerca de cinco ou seis álbuns, afinal os shows eram
muito longos, durando cerca de duas horas ou até duas horas e meia e, com
músicos, apesar de jovens, esbanjavam competência e tudo fluía e eram muitos
shows. E diante desse turbilhão criativo, Ray chegou a pensar na possibilidade
de ter, simultaneamente, três bandas para trabalhar esse material: uma banda de
rock progressivo, outra de jazz fusion e, claro, o Legend. Todas bandas
gravariam esse material e faria shows.
Mas a banda estava fadada a
ter um fim precoce. O legend não ia bem, apesar dos shows, do lançamento do
álbum. Ray estava infeliz e também estava se convertendo ao cristianismo. Ele
estava se sentindo só, a fase de gravação do álbum o estava afetando, sugando
suas energias. E antes mesmo da concepção do álbum Ray já estava extremamente
infeliz. A banda estava sofrendo com o sofrimento de Ray. Kevin e Fred não
entendia o que acontecia, principalmente Kevin que se preocupava com seu melhor
amigo.
E não demorou muito para Ray
chamar Kevin para comunicar-lhe que estaria fora da banda, dizendo da sua
conversão aos estudos bíblicos e seguiu. Claro Kevin foi pego de surpresa,
tentou convencê-lo do contrário, mas foi inútil. Sem Ray seria complicado
seguir. Mas Kevin acabou, dentro das suas possibilidades, promovendo a
distribuição de “From the Fjords”. Tentaram colocar outro baterista no lugar,
mas não durou muito tempo e o término precoce da banda se deu em 1979 ou 1980,
mais ou menos.
Mas os problemas não findaram
juntamente com o Legend. O empréstimo do álbum precisava ser pago e foi nesse
momento que a tensão se fez entre Ray e Kevin. Ray foi obrigado a vender sua
bateria e teve que trabalhar lavando louças em restaurantes para pagar
integralmente o empréstimo. Kevin Nugent tocou em um punhado de bandas, mas
morreria em 1983 enquanto dormia. Fred Melillo ainda toca, mas dedica-se a
ensinar música e Ray Frigon, o baterista, ainda segue no mundo da música
também.
Eles não queriam estrelado,
glamour e fama. Queriam apenas tocar, nada mais do que isso. Queriam apenas
trazer um pouco de conforto para os seus pais e tocar a sua música,
extremamente arrojada e pouco classificável para o seu público.
Muitos pedidos surgiram para o
relançamento do álbum em vinil e CD. Mas a banda se mostrou relutante quanto a
isso e reza a lenda que as fitas do álbum ficou com o irmão de Kevin, Al.
Muitas gravadoras queriam lançar esse trabalho, mas o paradeiro das fitas era
incerto. Mas não teve lançamento oficial, mas as versões piratas inundam o
mercado, são muitos e vendidos por US$ 100 ou até mais. E não terá lançamento
oficial, pois, apesar das especulações de onde as fitas másters estejam, o fato
é que não foram encontradas.
Mas para a alegria de todos nós, fãs da banda, “Fröm The Fjörds” foi resgatado pelo selo grego “Cult Rock Classic”, em 2019, quando o álbum completou quarenta anos de lançamento, sendo remasterizado e recebendo edições de luxo em LP e CD, ou seja, finalmente sendo reverenciado pela sua qualidade sonora e relevância histórica.
A banda:
Kevin Nugent na guitarra e
vocal principal
Raymond E. Frigon na bateria
Fred Melillo no baixo
Faixas:
1 - The Destroyer
2 - The Wizard's Vengeance
3 - The Golden Bell
4 - The Confrontation
5 - R.A.R.Z.
6 - Against the Gods
7 - The Iron Horse
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