Nem tudo é o que parece ser ou
não julgue o livro pela capa. Certamente você já proferiu ou ainda ouviu esses
termos, essas frases que já caiu no dito popular alguma vez na sua vida.
Não se enganem meus caros
amigos leitores, tais frases também se aplicam na nossa famigerada e adorada
música marginal, o bom e velho rock n’ roll. Quantas vezes, em um primeiro
contato, olhamos para a capa de um álbum e não gostamos de que vemos, mas, quando
nos colocamos a ouvir nos surpreende por completo?
A banda que apresentarei hoje
é um exemplo clássico de que a imagem pode gerar rejeição, estranheza, mas ao
ouvir, traz aquele impacto catártico que te deixa gloriosamente surpreendido.
E eu a conheci por intermédio
de alguns abnegados amigos que também apreciam as obscuridades do rock em um
momento de celebração, de festa e regado a música que teimava em tocar na
vitrola.
Quando apresentaram a capa,
com músicos trajados de uma roupa extremamente espalhafatosa, coloridas, de
rostos pintados, parecendo ter surgido do movimento glam rock e logo pensei ser um álbum de glam metal de meados dos anos 1980 e fui taxativo: Não vou gostar!
Perguntei ao meu amigo que trouxe a novidade e ele disse: “Essa banda é alemã e se chama LILY e o seu álbum é de 1973! Aquilo me veio como uma bomba de injeção de ânimo para ouvir aquele álbum estranho e incomum. Afinal o meu “humor” mudou radicalmente quando ele falou se tratar de uma banda alemã do prolífico ano de 1973.
Nos colocamos a ouvir o
cinquentão álbum chamado “VCU – We See You”. Claro que os primeiros acordes
vieram travestidos de algum ceticismo quanto a sua qualidade, estava de coração
fechado, após ter visto a capa que me gerou certa rejeição, mas quando a música
começou a ganhar corpo percebi como era poderosa, intensa, diversa, complexa,
agressiva ela era.
Mas não quero, pelo menos por enquanto, tecer maiores comentários acerca do álbum agora, mas falar um pouco da história do Lily, que é bem representativa para a cena obscura de Frankfurt e de toda a Alemanha, porque a sua sonoridade não se diferenciava das bandas germânicas e europeias do início dos anos 1970 que combinavam jazz, prog rock, hard rock, do som áspero ao complexo.
Ainda assim trazia um pouco da aspereza do que os seus contemporâneos faziam e de acordo com alguns críticos musicais da época o primeiro e único trabalho do Lily estava à frente do seu tempo.
A história do Lily começa em 1968 quando o guitarrista Manfred Schmid e o baixista Wilfried Kirchmeier, que tocavam juntos desde 1965 em uma banda beat chamada “Mods”, decidiram criar uma banda que cantasse em alemão com um viés político radical. Uma missão difícil naqueles tempos bélicos de partidos e sistemas políticos bélicos e ultraconservadores.
Logo eles se juntaram ao saxofonista Hans-Werner Steinberg e ao vocalista Helmut Burghardt que estavam tocando em uma banda de soul music Pinchfeld Association, bem como ao baterista e percussionista Manfred Schlagmuller.
A banda, durante alguns anos,
por algum motivo desconhecido, permaneceu sem nome até que, em 1969, frustrado
com as perspectivas não realizadas o vocalista Burghardt acabou por sair da
banda, promovendo também algumas mudanças na concepção sonora da mesma. O que
era uma visão de mundo um tanto quanto criativa acabou focando em uma visão
puramente instrumental.
Mas eles ansiavam por um vocalista, algo estava faltando, até que os caras descobriram um potencial de canto que não tinha sido anteriormente reclamado, mas muito promissor, do baixista Kirchmeier.
Em 1970, após um longo ano de trabalho bem intenso, a banda já tinha as suas “demandas” bem definidas com Ulla Meinecke participando ativamente na tradução das letras de Manfred Schmid para o inglês e já tinha também, finalmente, um nome: “Monsun” e no final do ano de 1970, mais precisamente em dezembro, faria seu primeiro show.
O show foi intenso, forte, extremamente agitado e impressionou o público. No ano seguinte, em 1971, já era parte importante da cena progressiva de Frankfurt e na esteira de um frisson pela música do Monsun, na primavera de 1972, gravaram a sua primeira demo.
Steinberg, o saxofonista,
passou seis meses na Índia em busca de novos horizontes filosóficos, novas
experiências de vida e inspiração musical, claro, sendo temporariamente
substituído pelo guitarrista Klaus Lehmann. Após o retorno de Steinberg Lehmann
não saiu encorpando ainda mais o quantitativo da banda, logo a sua qualidade
sonora também.
Tendo feito alguns belos shows
no “Zoom Club”, famosa casa de shows de Frankfurt, a banda atraiu a atenção de
Peter Hauke, que havia tocado na banda berlinense “The Rollicks”, além de ser
produtor do selo germânico “Bellaphon” e assinou contrato com o Monsun.
Em janeiro de 1973 a banda
ocupou o “Dierks Studios” por três dias para gravar e mixar o seu primeiro
trabalho, o seu primeiro álbum de estúdio, mas dois dias foram gastos com o
processo de gravação por motivos técnicos. Os vocais ficaram para o último dia
e foram gravados de acordo com a memória dos músicos em ritmo acelerado e sem
tomadas desnecessárias.
A cúpula do Bellaphon, com o
objetivo de impulsionar, comercialmente, o álbum da banda e levando em
consideração algumas tendências do rock n’ roll à época, decidiu “travestir” a
banda com uma roupagem glam rock que estava com alguma evidência,
principalmente pelo David Bowie, o New York Dolls etc, insistindo também que os
músicos mudassem o nome de Monsun para “Lily”.
Toda a estrutura cênica estava
montada: a banda vestindo roupas femininas extravagantes, emprestada de uma
boutique de moda de Frankfurt e usando uma quantidade incrível de cosméticos e
maquiagem, além, claro, do nome extremamente feminino: Lily. Mas ainda tinha a
ambiguidade, afinal a estética não correspondia com a sonoridade pesada e
arrojada para a época.
“VCU (We See You”) foi lançado
na primavera de 1973 pela filial “Bacillus”, com uma baixíssima tiragem de
1.000 cópias e foi atacado severamente pela crítica especializada pelo seu
marketing voltado para o glam rock em
contraste com a música pesada e progressiva que já tinha construído na cena de
Frankfurt.
O som de “VCU (We See You)” traz uma estrutura jazzística complexa, um rock progressivo áspero um tanto quanto áspero para quem está acostumado com bandas britânicas e o sinfônico das italianas. Tem um saxofone plugado, enérgico enfatizando no fuzz e wah-wah.
O seu estilo distinto e arrojado foge do “estereótipo” do krautrock, porque dispensa daquela natureza melódica e atmosférica dos teclados e mellotron, tendo a guitarra como protagonista. A banda que gravou este álbum tinha: Wilfried Kirchmeier no baixo, vocal e percussão, Manfred Schlagmuller na bateria e percussão, Hans-Werner Steinberg no saxofone, Manfred Josef Schmid na guitarra, Klaus Lehmann na guitarra, além da participação do icônico Dieter Dierks no mellotron e Armin Bannach no gongo.
O álbum é inaugurado com a
faixa “In Those Times” o que já de imediato percebo algo de “Canterbury Scene”
o que soa bastante estranho para uma banda alemã com um viés mais pesado. O
trabalho de saxofone, aliado às linhas de guitarra é de tirar o fôlego porque
traz à tona bons trabalhos de psych rock e progressivo. Temos cativantes solos
de guitarra que, embora não sejam bem elaborados, são diretos, vorazes e
solares, encaixando-se perfeitamente no contexto sonoro do Lily.
Na sequência vem “Which is
This” é bem semelhante a faixa de abertura, com uma pegada envolvente de psych
rock, hard rock e prog rock, já “Pinky Pigs” traz um “tempero” mais calcado no
blues rock, com uma nítida sensação de que está mais solta, despretensiosa,
também com uma pegada mais psicodélica, diferentemente da veia mais jazzy das duas primeiras faixas.
“Doctor Martin” consegue
fundir os elementos jazzísticos e de blues, além da pegada pesada, criando um
ambiente mais místico, exótico e arrojado que acaba tendo destaque de belos e pesados
riffs de guitarra, com o sax sempre entoando uma sinergia intensa.
Em “I’m Lying on my Belly
(Including Tango Atonale) traz uma sensação, digamos, familiar com a batida de
blues dos anos 1960, com uma boa performance de vocal entoando um inglês bem
convincente sem muitos sotaques alemães.
E fecha com “Eyes Look From
the Mount of Flash” que é bem distinta da faixa anterior diante de uma
envolvente diversidade. É uma faixa em que a banda expande, de forma evidente,
suas influências psicodélicas e progressivas com algumas incursões no space rock. É nítida as mudanças de
compasso, as variações rítmicas corroborando a linha progressiva dessa faixa.
Além das críticas pesadas que
o Lily recebeu no aspecto estético, a gravadora não fez muita coisa para salvar
também o álbum da banda do fracasso comercial. Os músicos tiveram que ir para
Londres para tentar vender a sua já escassa circulação nas agências e clubes,
fazendo alguns shows, mas sem sucesso. A aventura falhou miseravelmente.
Ainda no ano de 1973, após o colapso dos planos do Lily para o avanço comercial de seu álbum de estreia, o estado emocional e psicológico de Manfred Schmid mudou muito e para pior. A sua criatividade artística, tão vívida dentro da banda, tornou-se imprevisível e até mesmo caótica, sendo muito difícil de trabalhar com ele.
No final das contas Manfred
foi demitido do Lily após um acesso de loucura destruindo a bateria de
Schlagmuller e toda a sala de ensaio juntamente com todo o equipamento de som.
O fato de Manfred ter sido expulso da banda que fundou foi um golpe duro ao seu
já combalido estado mental. Ele vendeu a sua guitarra e se afastou-se da música
não tocando mais profissionalmente.
Seu estado mental esmigalhado
foi piorando cada vez mais, seu “alienismo” progrediu permanentemente e em
meados dos anos 1990 ele morreu em circunstâncias misteriosas. Seu corpo foi
encontrado em um parque florestal da cidade de Frankfurt.
O guitarrista e tecladista
Bjorn Scherer-Mohr foi convidado para preencher a vaga, mas mesmo com o seu
grande potencial criativo, não conseguiu substituir Manfred Schmid. Em agosto
de 1974, depois de não corresponder às expectativas, decidiu sair do Lily.
Apesar dos obstáculos que a
banda passou, desde a morte de Schmid e também o fracasso comercial de seu debut, conseguiram gravam gravar uma
nova fita demo com cerca de seis músicas na primavera de 1974 para um segundo
álbum e a intenção era trazer uma espécie de reviravolta criativa com elementos
mais mainstream na sua música, algo
mais voltado para o teatral ou cômico, mas a gravadora “Bellaphon” não esperava
o afastamento da banda devido aos problemas já mencionados, decidiram
descarta-los, dando preferência a bandas mais novas e que, na percepção da
gravadora, eram mais promissoras.
O descaso da indústria
fonográfica, o desalento com as frustrações que surgiram e o grave problema com
um dos faróis do Lily, o Manfred, a banda continuou a deslizar cada vez mais
pela inclinação criativa e os seus shows tiveram uma gradativa redução de público.
Em 2002 o abnegado selo
underground “Garden of Delights”, da Alemanha, relançou o álbum em CD, completo
com um livreto de 32 páginas e outras quatro faixas bônus, que foram gravadas
em 1972, sem Klaus Lehmann, no estúdio de gravação da escola de engenharia de
som em Detmold. O último show do Lily aconteceu em abril de 1976.
O Lily perdeu para sempre a
sua fantástica identidade musical que foi extremamente arrojada e
revolucionária para o seu tempo, quando se rendeu aos estereótipos estéticos
que a gravadora e seus produtores lhe impuseram, fora algumas tragédias
particulares que fizeram com que desmoronasse a espinha dorsal da banda, a
começar pelo inquieto e criativo Manfred Schmid. E assim acionaram o botão
vermelho da autodestruição desaparecendo para sempre da cena musical alemã.
A banda:
Wilfried Kirchmeier no baixo,
vocal, percussão e sintetizadores
Manfred Schlagmüller na
bateria, percussão
Hans-Werner Steinberg no
saxofone
Manfred-Josef Schmid na
guitarra
Klaus Lehmann na guitarra
Com:
Dieter Dierks no mellotron
Armin Bannach no gongo
Faixas:
1 - In Those Times
2 - Which Is This
3 - Pinky Pigs
4 - Doctor Martin
5 - I'm Lying on my Belly (Including “Tango Atonale”)
6 - Eyes Look from the Mount of Flash
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