Muitas foram as bandas de folk
rock que surgiram nos anos dourados da psicodelia. E tingidos de música “flower
power” eram edificantes, esotéricas, mas não era como a seminal banda
inglesa COMUS. O Comus era diferente! Era sim uma banda de folk psicodélico e
de proto prog, mas era sombria, soturna.
O embrião do Comus começou com
o encontro de Roger Wootton e Glenn Goring, ambos, muito jovens, com 17 anos de
idade, no Ravensbourne College of Art em Bromley, Kent, em 1967. Os dois
tocavam guitarra e compartilhavam também o mesmo gosto pelo trabalho de John
Renbourn e Bert Jansch, que estavam formando o Pentagle naquela época e o
Velvet Underground.
Glenn e Roger logo, claro, se
identificaram e formaram uma forte amizade em torno das suas preferências
musicais e começaram, com isso, a tocar em clubes folclóricos locais, fazendo
covers de Velvet Underground, que à época não foram muito bem recebidos e, em
uma visita ao clube local em Beckenham, o “Arts Lab”, se tornaram amigos do
organizador, um certo David Bowie.
Isso era agosto de 1969, mais
precisamente em um 16 de agosto, que também foi o segundo dia do épico festival
de Woodstock, nos Estados Unidos, com apresentações igualmente épicas do naipe
de Santana, Sly and the Family Stone, The Who etc, o “Arts Lab” contava com uma
estrutura e músicos mais tímidos, simples como Bridget St. John, Keith Christas
e Toni Visconti, além do próprio Bowie que estava começando sua carreira e
imortalizou tal evento com a música chamada “Memory of a Free Festival”.
Mas não foram apenas essas as
bandas que tocaram no “Arts Lab”, uma se apresentou por lá e que, embora poucos
se lembram, os rapazes, que viriam a ser a espinha dorsal do Comus, também se
apresentou, porém, no dia seguinte em um pub chamado “Three Tuns”. E os poucos
testemunhos dão conta de que eles soavam como nenhuma outra banda no mundo! Bem
isso realmente é verdade! Em virtude dessa incomum sonoridade que apresentavam
os caras passaram a tocar com regularidade no “Arts Lab”.
Enquanto estavam em
Ravensbourne Glenn e Roger conheceram um tal Chris Youle, que mais tarde se
tornaria empresário do Comus e o violinista e estudante de mídia Coli Pearson,
o primeiro recrutado para uma nova banda que nascia, além dos já citados Glenn e
Roger.
Youle sugeriu o nome “Comus”.
Na mitologia grega “Comus” é um deus que representa a anarquia e o caos. É
também um poema escrito em 1643, por John Milton, celebrando a virtude da
castidade ao desenrolar a história de uma senhora que se perde na floresta e é
tentada pelo tortuoso personagem de “Comus” a se envolver em todos os tipos de
pecados terrenos. Apesar de estar presa em seu palácio e enfrentar feitiços
mágicos, a senhora defende sua posição moral e acaba sendo libertada por seus
irmãos.
Quando Chris Youle sugeriu o nome, este caiu como uma luva, afinal um grupo de estudantes de arte com ideias semelhantes estava formando uma banda folk, dando a banda que nascia uma identidade.
E falando em grupo, o baixista
Andy Hellaby foi a próxima pessoa a ingressar na banda, após uma abordagem de
Glenn e Roger no Beckenham Arts Lab, onde Hellaby tocava em outra banda. Pouco
depois a cantora e percussionista Bobbie Watson, de apenas 16 anos, também foi
convidada a participar, depois de ser ouvida harmonizando algumas músicas
durante uma visita à casa em Perth Road, Beckenham, onde Roger, Glenn, Andy e
Chris moravam.
O sexto e último membro da
banda original foi o flautista Michael Bammi Rose, que respondeu a um anúncio
colocado pelo Comus no “Melody Maker”. Ele vinha ensaiar na casa de Beckenham,
acompanhado por um contingente rastafári jamaicano de Brixton, que já incluía o
já lendário trombonista Rico.
O tempo de Mike com a banda
foi bastante curto e, ao sair, ele foi substituído por um amigo de Colin e
Bobbie chamado Rob Young. Embora o primeiro instrumento de Rob tenha sido o
piano, ele aprendeu flauta, oboé e bongô sozinho para tocar com Comus.
Então no início dos anos 1970
a formação clássica do Comus trazia Roger, Glenn, Colin, Andy, Bobbie e Rob. A
residência no Beckenham Arts Lab continuou dando ao Comus tempo para se
desenvolverem como banda e aprimorar seu “set” ao vivo. Daí o embrião do primeiro
álbum da banda, que seria lançado no ano seguinte, começou a ser formado, o
“First Utterance”, alvo da resenha de hoje.
Chris Youle começou, já como
empresário da banda, a trabalhar agendando shows, turnês e promoções em todo a
Inglaterra. E graças a esse trabalho o público rapidamente reconheceu a paixão,
a originalidade e a qualidade musical do Comus e a banda logo se tornaria uma
das favoritas do circuito universitário.
Nessa mesma época o Comus fez um teste, aproveitando a popularidade que crescia, para a diretora canadense Lindsay Shonteff para escrever a trilha sonora de seu filme chamado “Permissive”. Lindsay ficou impressionada tanto com a música quanto com a maneira como Roger tocava e cantava, mesmo tendo cortado o dedo nas cordas de seu violão, respingando sangue de verdade enquanto tocava “Drip Drip”! Louco, não?
Em junho de 1970 Chris Youle garantiu um contrato de gravação com o selo “Pye/Dawn” depois que o Comus fez um show incrível no Purcell Rooms, parte do complexo Royal Festival Hall na South Bank, de Londres, apoiando, inclusive David Bowie que, na época estava gozando do sucesso de seu primeiro hit “Space Oddity”. E finalmente, em fevereiro de 1971, “First Utterance” foi lançado, precedido pelo single “Diana”, com capa original de Roger e Glenn.
Esse período a música folk e
progressiva era procurada pelas grandes gravadoras. Achando difícil lidar com
essas bandas como parte de suas agendas comerciais, as gravadoras criaram selos
menores que se concentravam nas periferias. A “Pye” fundou o selo “Dawn”. O
Comus assinou com a Dawn em outubro de 1970, sendo uma das primeiras do cast.
No início do ano de 1971, como
dito, a banda entrou em estúdio. No entanto O Comus percebeu que, embora a
gravadora estivesse feliz em contratá-los, eles não tinham nenhum entendimento
da música e nenhum conhecimento de como gravá-los. O que não surpreende em se
tratando de uma música extremamente vanguardista para o seu tempo.
O produtor que recebeu a
missão de produzi-los foi Barry Murray, que até então se especializou em música
pop e para a TV e trabalhou com Mungo Jerry, a banda de sucesso da gravadora. O
Comus não era uma banda fácil de gravar e as técnicas tradicionais de
sobreposição de faixas de ritmo e melodia não são boas nesse caso. Tudo de
“First Utterance” teve de ser gravado ao vivo.
Se a música era de difícil
assimilação para os fãs e para a indústria fonográfica a arte gráfica
sintetizava essa estranheza no som. O desenho, à caneta, foi criado por Roger
Wootton, que enquanto esteve na escola de artes foi fortemente influenciado pelos
desenhos de Gerald Scarfe e MC Esher.
“First Utterance” trata de
temas perturbadores como estupro, assassinato e doença mental e não se trata de
um álbum majoritariamente de rock progressivo, mas de um trabalho calcado no
folk rock, com nuances extremamente sombrias, um occult rock folk com um frisson
de erotismo ou sadismo, fundamentado em violão, violino e a flauta. E apesar de
ser encarado como um folk rock, logo algo solar e gentil, deixe suas visões
pré-concebidas de lado, é algo lindamente aterrorizante, tenso e soturno.
O álbum é inaugurado pela
faixa “Diana” que já se destaca pelo vocal melodioso de Wootton que logo são
encorpados com os seus instrumentos de percussão tribais estranhos com o apoio
etéreo de Bobbie Watson e o violão e violino pagão de Pearson. O tema bacanal
da letra é evidente no tom da melodio e na entrega da faixa.
“The Herald” tem o mesmo tipo
de sensação assustadora de “Diana”, com harpa sobre violão e flauta, mas logo
se transforma em uma melodia calma e até agradável com o violino e o vocal
agudo de Watson em total sinergia corroborando a condição da música, dando-lhe
a textura necessária. O violão, a viola, o oboé e a flauta soam agradáveis e
bem convergentes. Os vocais femininos me trazem a sensação de algo pop, meio
sessentista, diria, mas de ótimo gosto.
“Drip Drip” começa com um
violão vibrante. O canto, meio perturbado de Wootton, se agita também nessa
música e os bongôs também segue nessa toada, com toda a energia possível sendo
a base, o sustentáculo para toda a proposta da música. A percussão nesta faixa
me remete, mais uma vez, a algo tribal, algo africano e juntamente com o violão
e o violão trazem algo meio feroz a música dando “adeus” a alegria e até
sofisticação do folk praticado por outras bandas, digamos, mais ortodoxas do
estilo.
Segue com “Song to Comus” que
começa com um belo violão e flauta repetitivos, com vocais lindamente bizarros
interpretados por Wootton que lembra, em alguns momentos, com o Jethro Tull. A
música segue uma linearidade, algo igual, mas novamente o violino e os bongôs
são agradáveis e traz um caráter mais ousado à faixa. A letra corrobora a sua
condição aterrorizante. Eis um trecho:
“Hymen
caçador, mãos de aço, abra você e sua carne vermelha descasque, Procurador de
dor, olhos de fogo perfuram seu ventre e empurram ainda mais alto, Comus
estupro, Comus quebra, a virtude da doce jovem virgem toma, Carne nua, cabelos
esvoaçantes, seus gritos de terror cortam o ar”.
“The Bite” novamente usa
vocais masculinos bem estranhos com os vocais femininos gorjeando ao fundo.
Vocais bem executados, apesar de uma música mais curta e a letra é mórbida,
falando sobre um mártir sendo enforcado.
“Bitten” é um instrumental
curto e atmosférico com linda execução de violino e talvez violoncelo e se
torna uma espécie de passagem para a última e excelente faixa chamada “The
Prisoner”, que fala, na primeira pessoa, sobre um esquizofrênico paranoico. É
sombria, perturbadora e como sempre, em destaque, o violão e o violino, inicia
a faixa, mas começa discreta, ao fundo e em seguida se torna mais otimista e
até agradável por um tempo, mas a melodia diminui. O dedilhar de violão e do violino são novamente a base da música, como todo o álbum.
Uma combinação de
circunstâncias fez com que “First Utterance”, que teve a prensagem de 10.000
cópias, não conseguisse sucesso comercial e, embora o Comus continuasse em
turnê pela Inglaterra, pelo Reino Unido, inclusive, parecia que o ímpeto da
banda começou a diminuir.
Rob Young foi o primeiro a sair em julho de 1971 e, embora tenha sido substituído à altura por Lindsay Cooper, o Comus se separou em 1972, quando Chris Youle foi para a Polydor Records na Alemanha. Porém poucas semanas antes de deixar a Inglaterra e ir para a Alemanha, Chris Youle tentou garantir um segundo contrato de álbum para o Comus com o selo “Pye” para gravar o lendário, mas lamentavelmente nunca gravado “Malgaard Suite”.
Três dos membros originais da banda, Roger, Andy e Bobbie, no entanto, decidiram se reunir novamente em 1974, a pedido do até então recém-formado selo “Virgin” para finalmente gravar o seu segundo álbum, “To Keep From Crying”. Mais uma vez o sucesso comercial não veio e o Comus se desfez. Após o fim do Comus, os membros da banda fizeram várias trilhas para filmes subsequentes para Shonteff, como “Zapper's Blade of Vengeance” em 1973 e “Spy Story”, em 1975.
Em 1995, “First Utterance” foi relançado no Reino Unido no formato CD e outros lançamentos se seguiram na Itália e no Japão, culminando no lançamento de um CD duplo em 2005 com os dois álbuns de estúdio e algumas outras faixas. Na verdade, tudo que o Comus gravou nos anos 1970 foi reunido nestes CDs. Em comemoração a esse lançamento o empresário Chris Youle conseguiu reunir todos os membros originais do Comus no final daquele verão. Alguns não se viam há mais de trinta anos!
A internet e alguns veículos
de comunicação disponíveis na grande rede ajudou e muito a disseminar a
história do Comus e muito ajudada também pelo guitarrista e vocalista sueco Mikael
Åkerfeldt, com sua muito respeitada banda de metal Opeth, que frequentemente fazia referências e
dedicatórias ao Comus nos shows do Opeth. Mikael era obcecado pela banda há
muitos anos, chegando a nomear um dos álbuns do Opeth como “My Arms, Your
Hearse”, uma citação da letra da música “Drip Drip” do Comus.
E foi assim que, na primavera
de 2007, Glenn Goring recebeu um e-mail do grande amigo e promotor de shows de
Mikael, Stefan Dimle, outro fã dedicado do Comus da Suécia. A formação clássica
de “First Utterance” foi persuadida e entusiasmada de volta a uma reformulação
totalmente inesperada, diante de todas essas movimentações, embora Rob Young
tenha decidido não prosseguir para a fase de ensaio.
O marido de Bobbie Watson, Jon
Seagroatt, foi convocado para ocupar o lugar de Rob Young e, em um curioso eco
da introdução do próprio Rob no Comus, Jon aprendeu sozinho a tocar flauta e
percussão especialmente para acompanhar a banda. Chris Youle e o gerente de
turnê original da banda, Will Wittingham, também retornaram para ocupar seus
cargos anteriores na Comus.
O Comus tocou ao vivo novamente pela primeira vez em trinta e quatro anos no Melloboat Festival de Stefan Dimle, em 9 de março de 2008 gerando um DVD registrando sua atuação eletrizante no festival. Você pode ouvir o álbum, lançado naquele mesmo ano de 2008, aqui pelo site do "bandcamp".
Em 2012, mais de quarenta anos depois do lançamento de “First Utterance”, o Comus lançaria o seu terceiro álbum de estúdio, “Out of the Coma” e que pode ser ouvida aqui. E neste álbum foi incluída a faixa histórica e esquecida da banda, “The Maalgard Suite”, uma versão ao vivo registrada em 1972. Um clássico do folk obscuro que, por ser uma música marginalizada, será sempre lembrada por ser arrojada e um soco na cara daqueles fãs de rock conservadores.
A banda:
Roger Wootton nos vocais e
guitarra acústica
Glenn Göring nos slides,
guitarra acústica, guitarra elétrica, vocais e “hand drums”
Colin Pearson no violino e
viola
Rob Young na flauta, oboe e
“hand drums”
Andy Hellaby no baixo, “slide
bass” e vocais
Bobbie Watson na percussão e
vocais
Com:
Gordon Caxon na bateria
(faixas 8 e 10)
Faixas:
1 - Diana
2 - The Herald
3 - Drip Drip
4 - Song to Comus
5 - The Bite
6 - Bitten
7 - The Prisoner
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