sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Comus - First Utterance (1971)

 

Muitas foram as bandas de folk rock que surgiram nos anos dourados da psicodelia. E tingidos de música “flower power” eram edificantes, esotéricas, mas não era como a seminal banda inglesa COMUS. O Comus era diferente! Era sim uma banda de folk psicodélico e de proto prog, mas era sombria, soturna.

O embrião do Comus começou com o encontro de Roger Wootton e Glenn Goring, ambos, muito jovens, com 17 anos de idade, no Ravensbourne College of Art em Bromley, Kent, em 1967. Os dois tocavam guitarra e compartilhavam também o mesmo gosto pelo trabalho de John Renbourn e Bert Jansch, que estavam formando o Pentagle naquela época e o Velvet Underground.

Glenn e Roger logo, claro, se identificaram e formaram uma forte amizade em torno das suas preferências musicais e começaram, com isso, a tocar em clubes folclóricos locais, fazendo covers de Velvet Underground, que à época não foram muito bem recebidos e, em uma visita ao clube local em Beckenham, o “Arts Lab”, se tornaram amigos do organizador, um certo David Bowie.

Isso era agosto de 1969, mais precisamente em um 16 de agosto, que também foi o segundo dia do épico festival de Woodstock, nos Estados Unidos, com apresentações igualmente épicas do naipe de Santana, Sly and the Family Stone, The Who etc, o “Arts Lab” contava com uma estrutura e músicos mais tímidos, simples como Bridget St. John, Keith Christas e Toni Visconti, além do próprio Bowie que estava começando sua carreira e imortalizou tal evento com a música chamada “Memory of a Free Festival”.

Mas não foram apenas essas as bandas que tocaram no “Arts Lab”, uma se apresentou por lá e que, embora poucos se lembram, os rapazes, que viriam a ser a espinha dorsal do Comus, também se apresentou, porém, no dia seguinte em um pub chamado “Three Tuns”. E os poucos testemunhos dão conta de que eles soavam como nenhuma outra banda no mundo! Bem isso realmente é verdade! Em virtude dessa incomum sonoridade que apresentavam os caras passaram a tocar com regularidade no “Arts Lab”.

Enquanto estavam em Ravensbourne Glenn e Roger conheceram um tal Chris Youle, que mais tarde se tornaria empresário do Comus e o violinista e estudante de mídia Coli Pearson, o primeiro recrutado para uma nova banda que nascia, além dos já citados Glenn e Roger.

Youle sugeriu o nome “Comus”. Na mitologia grega “Comus” é um deus que representa a anarquia e o caos. É também um poema escrito em 1643, por John Milton, celebrando a virtude da castidade ao desenrolar a história de uma senhora que se perde na floresta e é tentada pelo tortuoso personagem de “Comus” a se envolver em todos os tipos de pecados terrenos. Apesar de estar presa em seu palácio e enfrentar feitiços mágicos, a senhora defende sua posição moral e acaba sendo libertada por seus irmãos.

Comus, o deus grego

A obra literária

Quando Chris Youle sugeriu o nome, este caiu como uma luva, afinal um grupo de estudantes de arte com ideias semelhantes estava formando uma banda folk, dando a banda que nascia uma identidade.

E falando em grupo, o baixista Andy Hellaby foi a próxima pessoa a ingressar na banda, após uma abordagem de Glenn e Roger no Beckenham Arts Lab, onde Hellaby tocava em outra banda. Pouco depois a cantora e percussionista Bobbie Watson, de apenas 16 anos, também foi convidada a participar, depois de ser ouvida harmonizando algumas músicas durante uma visita à casa em Perth Road, Beckenham, onde Roger, Glenn, Andy e Chris moravam.

O sexto e último membro da banda original foi o flautista Michael Bammi Rose, que respondeu a um anúncio colocado pelo Comus no “Melody Maker”. Ele vinha ensaiar na casa de Beckenham, acompanhado por um contingente rastafári jamaicano de Brixton, que já incluía o já lendário trombonista Rico.

O tempo de Mike com a banda foi bastante curto e, ao sair, ele foi substituído por um amigo de Colin e Bobbie chamado Rob Young. Embora o primeiro instrumento de Rob tenha sido o piano, ele aprendeu flauta, oboé e bongô sozinho para tocar com Comus.

Então no início dos anos 1970 a formação clássica do Comus trazia Roger, Glenn, Colin, Andy, Bobbie e Rob. A residência no Beckenham Arts Lab continuou dando ao Comus tempo para se desenvolverem como banda e aprimorar seu “set” ao vivo. Daí o embrião do primeiro álbum da banda, que seria lançado no ano seguinte, começou a ser formado, o “First Utterance”, alvo da resenha de hoje.


Comus, a banda

Chris Youle começou, já como empresário da banda, a trabalhar agendando shows, turnês e promoções em todo a Inglaterra. E graças a esse trabalho o público rapidamente reconheceu a paixão, a originalidade e a qualidade musical do Comus e a banda logo se tornaria uma das favoritas do circuito universitário.

Nessa mesma época o Comus fez um teste, aproveitando a popularidade que crescia, para a diretora canadense Lindsay Shonteff para escrever a trilha sonora de seu filme chamado “Permissive”. Lindsay ficou impressionada tanto com a música quanto com a maneira como Roger tocava e cantava, mesmo tendo cortado o dedo nas cordas de seu violão, respingando sangue de verdade enquanto tocava “Drip Drip”! Louco, não?

Em junho de 1970 Chris Youle garantiu um contrato de gravação com o selo “Pye/Dawn” depois que o Comus fez um show incrível no Purcell Rooms, parte do complexo Royal Festival Hall na South Bank, de Londres, apoiando, inclusive David Bowie que, na época estava gozando do sucesso de seu primeiro hit “Space Oddity”. E finalmente, em fevereiro de 1971, “First Utterance” foi lançado, precedido pelo single “Diana”, com capa original de Roger e Glenn.


Esse período a música folk e progressiva era procurada pelas grandes gravadoras. Achando difícil lidar com essas bandas como parte de suas agendas comerciais, as gravadoras criaram selos menores que se concentravam nas periferias. A “Pye” fundou o selo “Dawn”. O Comus assinou com a Dawn em outubro de 1970, sendo uma das primeiras do cast.

No início do ano de 1971, como dito, a banda entrou em estúdio. No entanto O Comus percebeu que, embora a gravadora estivesse feliz em contratá-los, eles não tinham nenhum entendimento da música e nenhum conhecimento de como gravá-los. O que não surpreende em se tratando de uma música extremamente vanguardista para o seu tempo.

O produtor que recebeu a missão de produzi-los foi Barry Murray, que até então se especializou em música pop e para a TV e trabalhou com Mungo Jerry, a banda de sucesso da gravadora. O Comus não era uma banda fácil de gravar e as técnicas tradicionais de sobreposição de faixas de ritmo e melodia não são boas nesse caso. Tudo de “First Utterance” teve de ser gravado ao vivo.

Se a música era de difícil assimilação para os fãs e para a indústria fonográfica a arte gráfica sintetizava essa estranheza no som. O desenho, à caneta, foi criado por Roger Wootton, que enquanto esteve na escola de artes foi fortemente influenciado pelos desenhos de Gerald Scarfe e MC Esher.

“First Utterance” trata de temas perturbadores como estupro, assassinato e doença mental e não se trata de um álbum majoritariamente de rock progressivo, mas de um trabalho calcado no folk rock, com nuances extremamente sombrias, um occult rock folk com um frisson de erotismo ou sadismo, fundamentado em violão, violino e a flauta. E apesar de ser encarado como um folk rock, logo algo solar e gentil, deixe suas visões pré-concebidas de lado, é algo lindamente aterrorizante, tenso e soturno.

 

O álbum é inaugurado pela faixa “Diana” que já se destaca pelo vocal melodioso de Wootton que logo são encorpados com os seus instrumentos de percussão tribais estranhos com o apoio etéreo de Bobbie Watson e o violão e violino pagão de Pearson. O tema bacanal da letra é evidente no tom da melodio e na entrega da faixa.

"Diana"

“The Herald” tem o mesmo tipo de sensação assustadora de “Diana”, com harpa sobre violão e flauta, mas logo se transforma em uma melodia calma e até agradável com o violino e o vocal agudo de Watson em total sinergia corroborando a condição da música, dando-lhe a textura necessária. O violão, a viola, o oboé e a flauta soam agradáveis e bem convergentes. Os vocais femininos me trazem a sensação de algo pop, meio sessentista, diria, mas de ótimo gosto.

"The Herald"

“Drip Drip” começa com um violão vibrante. O canto, meio perturbado de Wootton, se agita também nessa música e os bongôs também segue nessa toada, com toda a energia possível sendo a base, o sustentáculo para toda a proposta da música. A percussão nesta faixa me remete, mais uma vez, a algo tribal, algo africano e juntamente com o violão e o violão trazem algo meio feroz a música dando “adeus” a alegria e até sofisticação do folk praticado por outras bandas, digamos, mais ortodoxas do estilo.

"Drip Drip"

Segue com “Song to Comus” que começa com um belo violão e flauta repetitivos, com vocais lindamente bizarros interpretados por Wootton que lembra, em alguns momentos, com o Jethro Tull. A música segue uma linearidade, algo igual, mas novamente o violino e os bongôs são agradáveis e traz um caráter mais ousado à faixa. A letra corrobora a sua condição aterrorizante. Eis um trecho:

“Hymen caçador, mãos de aço, abra você e sua carne vermelha descasque, Procurador de dor, olhos de fogo perfuram seu ventre e empurram ainda mais alto, Comus estupro, Comus quebra, a virtude da doce jovem virgem toma, Carne nua, cabelos esvoaçantes, seus gritos de terror cortam o ar”.

"Song to Comus"

“The Bite” novamente usa vocais masculinos bem estranhos com os vocais femininos gorjeando ao fundo. Vocais bem executados, apesar de uma música mais curta e a letra é mórbida, falando sobre um mártir sendo enforcado.

"The Bite"

“Bitten” é um instrumental curto e atmosférico com linda execução de violino e talvez violoncelo e se torna uma espécie de passagem para a última e excelente faixa chamada “The Prisoner”, que fala, na primeira pessoa, sobre um esquizofrênico paranoico. É sombria, perturbadora e como sempre, em destaque, o violão e o violino, inicia a faixa, mas começa discreta, ao fundo e em seguida se torna mais otimista e até agradável por um tempo, mas a melodia diminui. O dedilhar de violão e do violino são novamente a base da música, como todo o álbum.

"The Prisoner"

Uma combinação de circunstâncias fez com que “First Utterance”, que teve a prensagem de 10.000 cópias, não conseguisse sucesso comercial e, embora o Comus continuasse em turnê pela Inglaterra, pelo Reino Unido, inclusive, parecia que o ímpeto da banda começou a diminuir.

Rob Young foi o primeiro a sair em julho de 1971 e, embora tenha sido substituído à altura por Lindsay Cooper, o Comus se separou em 1972, quando Chris Youle foi para a Polydor Records na Alemanha. Porém poucas semanas antes de deixar a Inglaterra e ir para a Alemanha, Chris Youle tentou garantir um segundo contrato de álbum para o Comus com o selo “Pye” para gravar o lendário, mas lamentavelmente nunca gravado “Malgaard Suite”.

Três dos membros originais da banda, Roger, Andy e Bobbie, no entanto, decidiram se reunir novamente em 1974, a pedido do até então recém-formado selo “Virgin” para finalmente gravar o seu segundo álbum, “To Keep From Crying”. Mais uma vez o sucesso comercial não veio e o Comus se desfez. Após o fim do Comus, os membros da banda fizeram várias trilhas para filmes subsequentes para Shonteff, como “Zapper's Blade of Vengeance” em 1973 e “Spy Story”, em 1975.

"To Keep From Crying" (1975)

Em 1995, “First Utterance” foi relançado no Reino Unido no formato CD e outros lançamentos se seguiram na Itália e no Japão, culminando no lançamento de um CD duplo em 2005 com os dois álbuns de estúdio e algumas outras faixas. Na verdade, tudo que o Comus gravou nos anos 1970 foi reunido nestes CDs. Em comemoração a esse lançamento o empresário Chris Youle conseguiu reunir todos os membros originais do Comus no final daquele verão. Alguns não se viam há mais de trinta anos!

A internet e alguns veículos de comunicação disponíveis na grande rede ajudou e muito a disseminar a história do Comus e muito ajudada também pelo guitarrista e vocalista sueco Mikael Åkerfeldt, com sua muito respeitada banda de metal  Opeth, que frequentemente fazia referências e dedicatórias ao Comus nos shows do Opeth. Mikael era obcecado pela banda há muitos anos, chegando a nomear um dos álbuns do Opeth como “My Arms, Your Hearse”, uma citação da letra da música “Drip Drip” do Comus.

Mikael Åkerfeldt

E foi assim que, na primavera de 2007, Glenn Goring recebeu um e-mail do grande amigo e promotor de shows de Mikael, Stefan Dimle, outro fã dedicado do Comus da Suécia. A formação clássica de “First Utterance” foi persuadida e entusiasmada de volta a uma reformulação totalmente inesperada, diante de todas essas movimentações, embora Rob Young tenha decidido não prosseguir para a fase de ensaio.

O marido de Bobbie Watson, Jon Seagroatt, foi convocado para ocupar o lugar de Rob Young e, em um curioso eco da introdução do próprio Rob no Comus, Jon aprendeu sozinho a tocar flauta e percussão especialmente para acompanhar a banda. Chris Youle e o gerente de turnê original da banda, Will Wittingham, também retornaram para ocupar seus cargos anteriores na Comus.

O Comus tocou ao vivo novamente pela primeira vez em trinta e quatro anos no Melloboat Festival de Stefan Dimle, em 9 de março de 2008 gerando um DVD registrando sua atuação eletrizante no festival. Você pode ouvir o álbum, lançado naquele mesmo ano de 2008, aqui pelo site do "bandcamp".

Em 2012, mais de quarenta anos depois do lançamento de “First Utterance”, o Comus lançaria o seu terceiro álbum de estúdio, “Out of the Coma” e que pode ser ouvida aquiE neste álbum foi incluída a faixa histórica e esquecida da banda, “The Maalgard Suite”, uma versão ao vivo registrada em 1972. Um clássico do folk obscuro que, por ser uma música marginalizada, será sempre lembrada por ser arrojada e um soco na cara daqueles fãs de rock conservadores. 




A banda:

Roger Wootton nos vocais e guitarra acústica

Glenn Göring nos slides, guitarra acústica, guitarra elétrica, vocais e “hand drums”

Colin Pearson no violino e viola

Rob Young na flauta, oboe e “hand drums”

Andy Hellaby no baixo, “slide bass” e vocais

Bobbie Watson na percussão e vocais

 

Com:

Gordon Caxon na bateria (faixas 8 e 10)

 

Faixas:

1 - Diana

2 - The Herald

3 - Drip Drip

4 - Song to Comus

5 - The Bite

6 - Bitten

7 - The Prisoner 



"First Utterance" (1971











 




































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