terça-feira, 29 de outubro de 2024

Eneide - Uomini Umili Popoli Liberi (1972 - 1990)


Será que podemos considerar as bandas que lançam apenas um álbum, que são muitas espalhadas por esse mundo, de ruins? O que ocasiona a precocidade desses momentos? Quais são os fatores? É predominantemente incompetência das bandas de gerir a sua música e carreira? Ou apenas um azar comercial que impede de a banda seguir com a sua trajetória musical?

Cada banda traz uma realidade diferente e cabe a este reles e humilde blog trazer o máximo possível dessas histórias que definitivamente são ricas e que são verdadeiros exemplos de amor à sua música, de reverência a sua verdade sonora, mesmo que o fracasso comercial venha à tona, muitas vezes, de forma visceral.

E, para variar, vou trazer uma história de uma banda italiana que gravou apenas um álbum e ainda com um agravante: não foi lançado no ano de sua gravação e, por anos, hibernou esquecida nos porões do rock n’ roll assumindo a condição de obscuridades. Falo da banda ENEIDE.

Os primórdios da banda se deu na cidade de Pádua, no início dos anos 1970 e tinha o nome de “Sensazioni” e os integrantes dessa embrionária banda eram muito jovens, adolescentes, diria, e estavam na faixa dos 14 anos de idade! Tinha na formação o baixista e líder do projeto Romeo Pegoraro, o baterista Diego Moreno e o cantor e guitarrista Gianluigi Cavaliere.

Adriano Pegoraro, que era guitarrista, flautista e saxofonista, era amigo de Romeo e fazia parte de uma banda chamada “Dragoni” (sua música foi influência da futura Eneide), foi convencido a fazer parte do Sensazioni, dispensando o guitarrista Gabriele Trevisan e efetivando um tecladista chamado Antonio Venturini.

A banda estava formada, mas o nome mudou para “Eneide Pop 70” e começou a tocar em clubes locais, lugares pequenos, acanhados e de estrutura simples, tocando covers de bandas italianas e estrangeiras, como Led Zeppelin, Vanilla Fudge, King Crimson etc. além de tocar algum material autoral que já possuíam. Os problemas com a rotatividade de integrantes começaram a dar problemas e o teclacista Antonio Venturini foi o primeiro a sair do Eneide Pop. Ele não convenceu nos teclados. Decidiram procurar por outro músico efetivaram um tecladista mais conhecido chamado Carlo Barnini, que era da banda “Stato d’Animo”.

A partir daí parecia que a sorte começava a sorrir para os meninos do Eneide Pop, quando em 1972 um empresário de nome Luciano Tosetto, encarregado de organizar turnês de grandes bandas na Itália viu o Eneide Pop tocar em um show local e os convidou para participar de alguns festivais que estavam em voga na Itália àquela época.

Os jovens músicos do Eneide chegaram a tocar, nesses festivais, com bandas do naipe do Premiata Forneria Marconi, Banco del Mutuo Soccorso, Delirium, Formula 3 e muitas outras. Nova mudança ocorreu no nome da banda, encurtando para apenas “Eneide” e, nesse momento, ocorreu o ápice desses jovens músicos, tocando ao lado dos já figurões da música progressiva mundial, os ingleses Genesis e Atomic Rooster e dando suporte ao Van der Graaf Generator em seis datas de sua turnê pela Itália. Sem dúvida um momento importante para mostrar o seu trabalho autoral que já era a intenção principal da banda, deixando de lado os covers de bandas famosas.

O Eneide, nesta época, contava com a seguinte formação: Gianluigi Cavaliere, nos vocais e guitarra, Adriano Pegoraro, na guitarra, flauta e vocal, Carlo Barnini, teclados e vocal, Romeo Pegoraro, no baixo e vocal e o baterista Moreno Diego Polato. Com essas apresentações em festivais italianos e sendo suporte para bandas como Genesis, Atomic Rooster e Van der Graaf Generator e as suas intensas apresentações na cena undergroud de Pádova e Veneza, em 1972 Maurizio salvadori e Luciano Tosetto, da agência de show milanesa, Trident, perceberam que a banda tinha potencial e os contrataram.

Eneide

A Trident era uma produtora de shows, mas queria se aventurar como gravadora e o Eneide talvez tenha sido uma das primeiras bandas a ser contratada por jovem selo de Milão. A popularidade adquirida graças a esses shows e as intensas apresentações em clubes locais fizeram com que a Trident não apenas o contratasse, mas que gravassem um álbum.

A banda já tinha música autoral o suficiente para gravar o seu debut e estavam, evidentemente, animados com a possibilidade de trazer à vida o seu primeiro trabalho, ainda muito jovens, na faixa dos 16 e 17 anos! Muito jovens e já com um currículo invejável. Então, em 1972, entre os meses de setembro e novembro entraram em estúdio para realizar seus sonhos: gravar o seu primeiro álbum.

Tudo correu bem, todos os trâmites de gravação tiveram sua sequência realizada sem maiores problemas. Mas por uma razão misteriosa, estranha mesmo, o álbum, intitulado “Uomini Umili Popoli Liberi”, não foi lançado naquele ano. Reza a lenda que a empreitada da jovem gravadora Trident não vingou, simplesmente faliu.

Porém, à época da sua fundação, sempre foi produtora de shows, quatro bandas foram contratadas para lançar seu álbum no jovem selo da Trident. Foram eles: o primeiro do Dedalus, homônimo, o “Time of Change”, do The Trip e o debut do Semiramis “Dedicato a Frazz”. Todos foram lançados oficialmente, mas não o álbum do Eneide. Simplesmente as cópias não foram impressas, apesar de as matrizes já terem sido prontas há algum tempo, o que torna a situação ainda mais estranha.

Independentemente do que aconteceu, o que teria ocasionado com o engavetamento do trabalho inaugural do Eneide, o fato foi que esse lamentável ocorrido, foi um duro golpe para promover a banda e acabou obrigando os jovens músicos a se refugiar em outro lugar. Primeiro abriu as datas do cantor Maurizio Arcieri (na época ainda em fase melódica), tocando as suas músicas e um set com o material do Eneide e depois se tornando sua banda de apoio até que, em 1974, o Eneide se dissolveu completamente, saindo de cena de forma melancólica, abrupta e triste. Muitos também atribuem esse precoce fim, não apenas em decorrência do não lançamento de seu álbum por conta da falência da Trident, em 1975, mas a incompetência da própria banda, de gerir-se. Mas quem irá saber?

Mas aqui não é o fim, afinal, precisamos falar de “Uomini Umili Popoli Liberi” e da sua qualidade sonora que é, sim, inquestionável para àquela época mágica do rock progressivo italiano, sobretudo na primeira metade dos anos 1970. Porém cabe ressaltar que o único trabalho do Eneide não continha elementos progressivos de forma majoritária. 

As faixas, com duração, em média de 4 minutos de duração, tinham estruturas básicas, que variava de uma mistura de baladas acústicas, além de pegadas psicodélicas e de blues. Os instrumentos dominantes no álbum são os teclados e a guitarra, embora a flauta também tenha destaque, sem contar com o vocalista principal que tinha um tom áspero e grave, mas cantando com sentimento e aquele toque de dramaticidade típico dos cantores italianos.

“Uomini Umili Popoli Liberi” traz jams de rock estilo “garage” com toques bem suculentos e enérgicos, com ritmos até agressivos, bastante convencionais, flertando, como disse, com o classic rock, prog rock e hard rock. Diria que, embora seja um álbum básico, traz um leque de opções sonoras o tornando um trabalho versátil e diversificado que pode atingir a todos os ouvintes com suas predileções musicais. Mas ainda tem algo a apresentar, sobretudo nos momentos mais suaves, com o uso do violoncelo e flauta realçando esse momento. 

Mas não se enganem, prezados leitores, que há essa separação de ambientes no som do único álbum do Eneide, é possível ouvir, entre as dez faixas do trabalho, riffs pesados de guitarra, melodias de teclados e intervenções preciosas de flauta. Trata-se de um álbum muito maduro, levando em consideração que os músicos eram muito jovens à época.

A faixa inaugural é “Cantico Alle Stelle-Traccia 1” que começa um tanto quanto pastoral quando os vocais se juntam, trazendo também alguns sons do violino. Trata-se de uma abertura melódica, diria sinfônica, simples. Na segunda parte da música o hammond ganha destaque levando a música a territórios mais próximo do rock progressivo.

"Cantico Alle Stelle-Tracia I"

Segue com “Il Male” que é uma faixa decididamente mais enérgica que a anterior. A bateria e os teclados são liderados por vocais agressivos e poderosos, com alto alcance, inclusive. Essa condição entrega uma faixa mais voltada para o hard rock, quando é interrompido ou melhor, suavizado pelo uso da flauta que lembra um pouco a banda Delirium. Guitarras e sintetizadores são os destaques nessa faixa, com a bateria trazendo o ritmo, conduzindo-o.

"Il Male"

“Non Voglio Catene” é a música que mais se aproxima dos estilos progressivos que eram executados à época e a única que ultrapassa os 5 minutos de duração. A composição é excelente e traz o moog e o violão em evidência, trazendo um viés mais acústico, até que, em determinado momento, o hammond se torna mais enérgico, tornando-se mais agradável.

"Non Voglio Catene"

“Canto della Rassegnazione” é uma balada curta, com vocais mais suaves, quase frágeis, diria, com sons delicados de violinos e uma flauta que termina a faixa. É seguida pela música “Oppressione e Disperazione” que traz versões mais duras e pesadas de blues rock ditadas pelo entrelaçamento do hammond e da guitarra. A bateria é o tempero que entrega a música o peso e quando mesclada ao órgão e a guitarra essa máxima é corroborada. Excelente faixa!

"Oppressione e Disperazione"

“Ecce Omo” apresenta, no início, a bateria, forte e altiva, com sintetizadores e a guitarra no início. Os teclados dominam a faixa, logo depois a flauta entra e a mesma, juntamente com a guitarra, se entrelaçam. Um bom exemplo de hard prog! "Uomini Umili Popoli Liberi" começa com melodias vocais, mas logo vocais ásperos se juntam, com a flauta se junta com peças de hard rock promovendo um contraste entre suavidade e peso, talvez um bom exemplo de hard prog também.

"Uomini Umili Popoli Liberi"

“Viaggia Cosmico” que inicialmente nos conduz a uma audição ao estilo space rock, graças aos teclados e logo depois vem uma balada lenta, onde o vocal é apoiado por violão e um violino. Bela faixa! Na mesma sintonia vem a curta “Un Mondo Nuovo”, uma balada acústica com nuances de violino e flauta, mas que não é tão incisiva e não deixa muito impacto. O álbum fecha com "Cantico Alle Stelle -Traccia II", que é realmente uma reprise da faixa de abertura.

"Un Mondo Nuovo"

A primeira edição oficial de "Uomini Umili Popoli Liberi" finalmente foi lançada em 1990 pelo selo privado LPG em uma edição limitadíssima de apenas 500 cópias e cerca da metade foi autografada pelo guitarrista Gianluigi Cavaliere, uma verdadeira raridade aos fãs da banda e de raridades como um todo. Esse exemplar veio com capa “gatefold” contendo a letra e etiqueta cinza/marrom com escrita branca, trazendo uma imagem da banda se apresentando. Enquanto uma segunda impressão, com aproximadamente o mesmo número da primeira edição, tem capa única e etiqueta azul clara, também neste caso com alguns exemplares numerados e autografados.

E esse lançamento, quase vinte anos depois, aconteceu porque Cavaliere guardou as fitas à época do não lançamento do Eneide em 1972 e também do interesse de um amigo que, após o lançamento oficial, tiveram a oportunidade de divulgar o álbum com a ajuda do selo icônico “Black Widow”, de Gênova.

Teve um relançamento, em CD, de 2011, pelo selo “AMS”, onde há duas faixas adicionais inéditas, retiradas do projeto de 1995, intitulado “Oblomov’s Dream” quando a banda tentou se reunir. Estavam nesse projeto, além do guitarrista Gianluigi Cavaliere, Romeo Pegoraro e Diego Polato e a ideia era lançar um novo álbum, mas os compromissos profissionais não possibilitaram concluir as gravações e pararam no meio do caminho. Eles ainda possuem essas fitas, quem sabe um dia podemos presenciar um novo álbum do Eneide. A mesma gravadora relançou o álbum, em vinil, com capa “gatefold”, mas sem as duas faixas extras da edição em CD.

O guitarrista Cavaliere permaneceu no cenário musical como instrumentista e produtor e ainda toca com o baixista Romei Pegoraro em uma banda chamada Chantango, que mescla diferentes estilos de música e poesia com o tango. Romeo toca baixo como concertista profissional no “Maggio Musicale Fiorentino”. O baterista Diego Polato toca em várias bandas de rock progressivo, assim como seu filho e o guitarrista Adriano Pegogaro também continua seguindo com sua carreira de músico. O único que deixou a música foi o tecladista Carlo Barnini que atualmente é veterinário.

Cavaliere conheceu, em 1994, Peter Hammill e David Jackson, ambos da formação clássica do Van der Graaf Generator e conversaram sobre a possibilidade de Jackson tocar no que seria o segundo álbum do Eneide, o “Oblomov’s Dream”, mas não foi para frente, não fazendo mais nada, porém mantém, até hoje, contato com esses dois icônicos músicos da história do prog rock.

Fracassos, precocidade na sua história, falta de uma gestão de carreira.... Muitos podem ser os fatores para uma ruptura na longevidade ou não de uma banda, o fato é que o único trabalho do Eneide, embora não traga nada de revolucionário para a história do rock progressivo italiano deixa uma marca importante naquela época de desbravamento da música, mostrando-se essencial por se tratar de um álbum que entregou uma interessante diversidade sonora.




A banda:

Carlo Barnini nos teclados, minimoog e backing vocals

Gianluigi Cavaliere nos vocais principais, gutarra elétrica e acústica

Adriano Pegoraro na guitarra, flauta e backing vocals

Romeo Pegoraro no baixo e backing vocals

Mereno Diego Polato na bateria

 

Faixas:

1 - Cantico alle Stelle - Traccia I

2 - Il Male

3 - Non Voglio Catene

4 - Canto della Rassegnazione

5 - Oppressione e Disperazione

6 - Ecce Omo

7 - Uomini Umili Popoli Liberi

8 - Viaggia Cosmico

9 - Un Mondo Nuovo

10 - Cantico alle Stelle - Traccia II 



"Uomini Umili Popoli Liberi" (1972 - 1990)










































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