Acho
pitoresco esses termos, essas nomenclaturas que se atribuem a uma banda ou sua
obra de arte, as suas condições perante a cena, perante ao mercado e no que
isso tudo pode impactar uma realidade em um determinado país ou a um estilo de
música, como no caso do rock n’ roll, por exemplo.
Uma
banda que lança um álbum e que passa despercebida, cai nos escombros do rock,
se torna empoeirada, no limbo do ostracismo, mas, com o passar dos anos se
torna cult, referência e tem seus álbuns, geralmente lançados de forma quase
que “artesanal”, em poucas tiragens, sendo disputados a tapas pelos caçadores
de raridades, ou ainda sendo vendidos em valores quase que inalcançáveis aos
bolsos dos pobres mortais.
Não
estou, caro e estimado leitor, questionando essas viradas da história, mas,
parando para refletir, torna-se, no mínimo, louco pensar que um trabalho
totalmente esquecido por tudo e por todos, depois de alguns anos, ter o valor
de seus álbuns altíssimo.
São
alguns fenômenos comerciais e sonoros que caberia uma profunda dissertação, mas
não vou entrar nos pormenores para não os deixar, amigos leitores, cansados,
tornando essa leitura deveras enfadonha. E a Alemanha dos anos 1970, com o seu
krautrock, movimento político, comportamental e musical completamente contracultural,
e mais à frente o prog rock, hard rock, trouxeram inúmeras bandas que ficaram à
margem do sucesso, do glamour do mainstream,
pelo simples fato de apresentar músicas pouco ortodoxas.
E uma
banda, em especial, adequa-se a esses requisitos com uma fidelidade espantosa e
promoveu uma música extremamente vanguardista e que, de uma forma, ajudar a
tecer a música alemã dos incríveis anos 1970. Falo do Gäa. Arrisco dizer que
essa banda sequer é comentada entre os próprios alemães apreciadores de rock,
mesmo com a sua afeição a cena rock daqueles tempos.
É underground, por isso é raro. É uma sonoridade que alucina, nos provoca a sair da famigerada e temida zona de conforto, nos torna mais eufóricos por perceber que a sua sonoridade é conduzida a um patamar onde a criatividade rege a mente e os instrumentos de seus músicos. O Gäa traz nuances extremamente surrealistas, uma obra de arte que nos entorpece, quase chega a ser abstrata.
Parece ser minimalista, experimental, lisérgico, mas descamba para o blues rock, para o hard rock, para o prog rock como que em um estalar de dedos, sem pestanejar. Não há uma obediência calcada em estereótipos, não há um carimbo que determina um estilo específico de música. Há sim, tudo. E falo tudo isso porque em seu debut, o “Auf Der Bahn Zum Uranus”, lançado em 1974, sintetiza fielmente o que foi a banda em sua curta trajetória no planeta da música.
Mas
para perder o costume vamos à história da banda, afinal a sua história se torna
o espelho do que produziu em seus álbuns, sobretudo para bandas como o Gäa que
deixa a liberdade da criatividade imperar.
“Gäa”
vem do nome da deusa grega da Terra e da Fertilidade, Gaia, e foi formada em
1973, em Saarbrücken, capital do menor estado do Sarre, que faz fronteira com
Luxemburgo e França. E quem esteve na fundação foram três amigos: Helmut Heisel,
na guitarra, Peter Bell, no baixo e Stefan Dörr, na bateria e que tocaram
juntos em uma banda chamada “The Phantoms” no colégio.
Era
uma banda praticamente amadora, de jovens músicos, que tocavam cover, mas que
logo se estabilizou em torno do guitarrista Werner Frey, que entrou no lugar de
Heisel que, quando se formou na escola, optou por cursar Direito, do baterista
Stefan, do vocalista e percussionista Werner Jungmann, do tecladista Günther Lackes
e do baixista e flautista Peter Bell.
Depois
de vários shows, estes amigos tiveram a oportunidade de entrar em estúdio, ainda
em 1973, quando a banda já estava de fato formada e determinada a gravar
músicas autorais, para gravar o álbum “Auf Der Bahn Zum Uranus” que foi lançado
um ano depois, em 1974, com uma tiragem, pasmem, de apenas 300 exemplares! Reza
a lenda que a quantidade de prensagens foi ainda menor, com cerca de 289 cópias!
Desde
o início de sua trajetória o Gäa se distanciou da cena cultura de Munique ou da
antiga Berlim Ocidental. Não tinham a “elegância” local, não se comparavam a
bandas como Can, Faust, Cluster ou ainda o Amon Düül. Talvez pelo fato da
banda, sem recursos para ter os equipamentos caros ou uma estrutura condizente
para construir sonoridades como dessas seminais bandas representantes do
krautrock, construiu a sua própria e arrojada sonoridade. Se tornaram únicos à
sua maneira, mesmo que diante de obstáculos e entraves de cunho estruturais.
"Auf
Der Bahn Zum Uranus" que, em tradução livre, significa “No caminho para
Urano”, talvez personifique bem a condição sonora de suas chapantes músicas,
porque, como disse, além de ser bem original, traz aquele apelo à space rock,
que arriscaria em dizer que pode ter sido um dos primeiros trabalhos lançados
na história.
E esse
tipo de música, pouco usual para a época, foi o que interessou Alfred Kerston,
dono da gravadora Kerston Records que decidiu contratar os caras imediatamente.
Mesmo com essa questão da música underground e que pouco se encaixa ao que
existia à época, a banda foi precoce, porque foi formada em 1973 e logo gravou
seu primeiro álbum em 1974.
E outro detalhe importante que é, no mínimo inusitado, é que a gravadora era focada principalmente no lançamento de singles e bandas pop e que sempre evitou desbravar músicos e bandas alternativas. Era um estúdio pouco equipado, não tinha a estrutura dos grandes estúdios da época e, claro que o Gäa seria submetido a esse cenário e gravaria seu primeiro álbum de forma muito artesanal e assim nasceu “Auf Der Bahn Zum Uranus”.
E além
da pouquíssima tiragem, ainda sofreram com alguns acidentes, porque parte da
edição foi destruída e apenas uma pequena parte, à época do lançamento, foi
vendida nos shows, sem nenhum tipo de divulgação por parte da gravadora, mas
também com esse número tão reduzido de cópias. O que fazer? E hoje é tido, por
muitos especialistas e colecionadores ávidos de vinis, como um dos LPs mais
raros do mundo!
Mas não se enganem, caros amigos leitores, que esse trabalho se resume a uma pegada space rock, mas traz texturas interessantes de blues rock, de hard rock, de psych rock, com altos tons de lisergia, com guitarras alucinantes, com levadas de prog rock com um caráter mais sujo e garage e uma discreta pegada experimental, afinal, quando se coloca tudo isso em um “caldeirão” sonoro, não pode ser esquecido o fator experimental para tentar definir esse clássico obscuro.
A
produção, para variar, fica aquém do que se espera, afinal, com a tímida
estrutura do estúdio a qual foi concebido, não poderia ser diferente, mas traz
certo “charme” ao produto final, dando-lhe identidade, trazendo também
composições ingênuas, simples, mas que sintetiza fielmente o rock em sua
gênese.
O Gäa, com o seu debut, demonstra uma tendência não conformista. Sente-se uma música sensível, cheia de melancolia, paixão, visceral, com tons até mesmo dramáticos, graças ao hard rock e até mesmo ao folk envolvidos. Ousaria dizer que ficaria no mesmo patamar de medalhões como Pink Floyd, Scorpions e até mesmo Jimi Hendrix. Basta observar, ouvir a guitarra de Werner Frey para corroborar tal questão, mas não se enganem, a sonoridade não se plagia. A formação da banda, em seu primeiro trabalho, trazia: Werner Frey na guitarra e vocal, Stefan Dorr na bateria e vocal, Werner Jungmann no vocal, Gunter Lackes nos teclados, órgão, piano e vocal e Peter Bell no baixo. Flauta e vocal.
O álbum começa, e muito bem, com a faixa “Uranus” que introduz com sons calmos, brandos, levando a um sermão falado em alemão. Há quem diga se tratar da sonda “Voyager” que estava indo para esses planetas gigantes gasosos distantes na década de 1970. E com isso a música se traveste em uma paisagem sonora cósmica, graças a um órgão soturno e sinfônico, revestido por um blues ácido e pesado, nebuloso, com uma guitarra lisérgica. A música interage com space rock, a calmaria que este propicia e o peso da lisergia capitaneada pela guitarra.
Segue
com a instrumental “Bossa Rustical”, de clima meio hispânico mesclada a aridez
da psicodelia trazendo variações com violão acústico de estilo folk e que a
bateria e o baixo dão sequência, atribuindo um pouco mais de ritmo. Eis que
surge a guitarra que traz consigo um pouco mais de peso, mas que logo
desaparece e a música termina em um vazio estranho.
“Tanz
Mit Dem Mond” que começa com pianos acústicos bem dramáticos e guitarra bem
amplificada, soprando isso tudo, criando um “campo sonoro” bem agradável e
pungente, diria. É a faixa enriquecida com belas melodias feitas por várias
camadas vocais que são tão bem ecoadas que nos faz viajar.
“Mutter
Erde” trazem melodias repletas de humores rítmicos, idas e vindas, variações
sonoras, nos fazem chegar à conclusão de que a sonoridade não tem rótulos
definidos e fechando isso tudo vem uma textura psicodélica cheia de groove.
Definitivamente tem uma dinâmica fantástica, sendo um dos maiores destaques do
álbum. “Welt Im Dunkel” é uma música mística, estranha, exotérica, talvez traz
algum tipo de adoração, ritual, lembrando as músicas do seminal Black Widow e
até mesmo Coven. Há uma “pitada” de occult rock nessa faixa.
E
fecha com a faixa título, “Gaa” que começa, fantasticamente, com batidas de
blues na seção rítmica, que se entrelaçam a guitarras pesadas e lisérgicas e
que explode em uma verdadeira jam section.
Há alguns toques leves de flauta, lembrando algo mais voltado para o beat,
descambando para algo mais experimental e totalmente underground.
A
gravação, a produção do álbum de fato está aquém do que esperamos, claro, as
condições pelas quais a banda trabalhou não eram favoráveis para uma gravação
de qualidade, mas ainda assim, ao ouvi-lo, percebe-se o quão é cativante e
agradável de ouvir esse único trabalho do Gäa. Além dos reveses que foi ter gravado
esse álbum, sofreram com a perda de grande parte das cópias que, tudo indica
ter sido criminosa, pois reza a lenda também que foram jogadas em uma lata de
lixo no fundo de um quintal até mesmo com as fitas originais.
No
início de 1975 foi gravado, desta vez em melhores condições, no estúdio
“Leico”, de Michael Leistenschneider em Schmelz, o segundo álbum da banda
chamado “Alraunes Alptraum”, que pode ser ouvido aqui, que não foi concluído, sendo lançado, somente em
1998, pelo selo “Garden of Delights”, porque a banda decidiu se separar,
naquele mesmo ano, deixando-o inacabado. Há informações de que o Gäa teria se
separado em 1978.
Werner Frey seguiu Peter Bell até Tombstone, Günter Lackes juntou-se ao Blackbirds, onde até hoje toca com a banda, Helmut Heisel passou por várias bandas e está no Saartana desde 1991 junto com Stefan Dörr, que gravou um álbum solo em 1998. Werner Jungmann e Bello não atuam mais como músicos. Werner Frey agora trabalha como professor, Günter Lackes como bancário, Helmut Heisel como dono de terras, Stefan Dörr como empreiteiro de transporte, Werner Jungmann no serviço médico e Bello como funcionário público.
A
conexão amigável entre eles ainda existe e é muito forte, tanto que, durante a
década de 1980, os ex-membros do Gäa ocasionalmente se reuniram para tocar em
pequenos clubes à noite e chegaram a gravar algum material autoral, mas não
foram lançados oficialmente.
“Auf
Der Bahn Zum Uranus” teve algumas reedições. A primeira foi em 1992 pelo selo
Ohrwaschl, no formato CD, bem como em 2007, também em CD, pela gravadora
“Orange”. Mais tarde, em 2015, foi reeditado pelo icônico selo “Garden of
Delights”. Apesar do profundo ostracismo pelo qual o Gäa foi submetido a banda
trouxe à tona um trabalho arrojado, importante, poderoso e extremamente
versátil, não se adequando a rótulos, estilos, nada. Foi um álbum que absorveu,
com êxito, todas as cenas musicais que borbulhavam na Alemanha no final dos
anos 1960 e nos anos 1970.
A
banda:
Werner
Frey na guitarra e vocal
Stefan
Dorr na bateria e vocal
Werner
Jungmann no vocal e congas
Gunter
Lackes no órgão, piano e vocal
Peter
Bell no baixo, flauta e vocal
Faixas:
1 - Uranus
2 - Bossa
Rustical
3 - Tanz
Mit Dem Mond
4 - Mutter
Erde
5 - Welt
Im Dunkel
6 - GAA
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