Este reles e humilde blog
tem me revelado, juntamente com os meus garimpos, o que hoje tem sido óbvio,
muito óbvio: de que o rock n’ roll é universal, diversificado e ainda selvagem,
intocável em alguns rincões do planeta.
É pensar em demasia limitado
achar que países como Inglaterra, Estados Unidos, Itália e Alemanha, por
exemplo, sejam o centro desta música de que tanto amamos e em nenhum outro
lugar existir nada que possa ser devidamente valorizado pela sua qualidade
sonora.
São tantas bandas esquecidas,
raras, com seus álbuns por alguns subjugados pelo simples fato de não se
adequarem à importantes mercados consumidores da música ou a “formatos” sonoros
“fora de moda”.
“Fora de moda”, descolados
do tempo é outro tema difícil dentro do “show business”. Essa eterna questão de
o tempo “julgar” a música e de que precisamos nos adequar às novas tendências
de música é outra conversa perigosa construída pelo marketing perverso da
indústria fonográfica. Por que aquela música que você se identifica não pode estar
presente em seus dias?
E a banda de hoje se desloca
de um tempo em que o rock progressivo não estava mais em alta, mas, ainda
assim, valorizando as suas verdades sonoras, decidiu, a duras penas, seguir e gravar
um álbum no fim da década de 1970 na fria Finlândia. Vejam o cenário totalmente
adverso: gravar um álbum de prog rock no final dos anos 1970, na Finlândia.
Era o punk em voga, música
rápida e simples, de poucos acordes, era a época da disco music, da música das pistas de dança, animadinhas. Não tinha
mais espaço para as músicas trabalhadas, conceituais e tudo que o valha. Mas
convenhamos, o prog rock sempre foi marginalizado com exceção de alguns
figurões que conseguiram se transformar em “bandas de arena” elevando um pouco
o nome da cena.
Mas voltando a Finlândia, a
banda KAAMOS foi formada em Turku, sudoeste da Finlândia, pelo guitarrista
Peter Strelmann e o tecladista e organista Ilkka Poijärvi. O nome “kaamos”, de
origem finlandesa, significa “a noite polar quando o sol nunca nasce”, algo
extremamente comum naquele país escandinavo.
Os membros originais
consistiam na formação de quatro músicos: além do guitarrista Strelmann e o
tecladista Poijärvi, trazia Eero Valkonen, na bateria, Eero Muntarkarma no
baixo e o vocalista americano Jimmy Lewman. O organista Ilkka Pojärvi logo
abandonaria a banda, bem como Lewman que sairia no ano seguinte à formação da
banda, em 1974.
Este último foi substituído pelo guitarrista Ilpo Murtojarvi e pelo cantor/baterista Johnny Gustafsson. O verão de 1975 vê a saída de Strelmann, que se juntou ao Exército, e foi substituído pelo tecladista Kyosti Laihi.
O tecladista Kyösti Laihi,
que era membro do “Pepe & Paradise” e também da banda Hellmann's Youth
Society, quando chegou no Kaamos defendeu ardorosamente que a banda deveria
tocar rock progressivo ao estilo Camel, Yes e Genesis, afinal, no início da
década de 1970, quando o Kaamos foi formado, era o auge do estilo e também
trazia a experiência por ser um músico que havia tocado em várias bandas
locais.
Mas a banda sofreu muito com
as intensas e constantes mudanças em seu line up, era um entra e sai direto de
músicos e isso quase desintegrou o Kaamos, principalmente após a saída de um de
seus membros fundadores, o guitarrista Peter Strelmann. Então Laihi, que parece
ter assumido o comando da banda, recrutou Ilpo Murtojärvi, que foi guitarrista
e compositor por um tempo da banda “Karma”. Pediu a ele que escrevesse uma
música para a banda.
No final eles se
estabeleceram em um quarteto, como no início, formado por Kösti Laihi, nos
teclados, Ilpo Murtojärvi, na guitarra e Jonny Gustafsson na bateria e vocal e Jakke
Leivo, no baixo, ambos ex-integrantes de uma banda de orientação “pop” chamado
“The Islanders.Ing”.
Neste momento do Kaamos já
não tinha nenhum membro da formação original, o que era um desafio e tanto
manter as arestas sonoras da banda, sem uma referência de sua história. Então
decidiram cair na estrada para se apresentar, divulgar a sua música.
De Turku, a cidade natal do
Kaamos, até a capital, Helsinque, tocaram em clubes, apresentaram suas músicas
autorais que adicionavam blues, funk e folk à música clássica, era o prog rock
e a sua capacidade de se híbrido, como o rock na sua gênese.
Em 1975 o Kaamos gravou uma
fita demo e negociou com várias gravadoras para gravar um álbum oficialmente,
mas era meados dos anos 1970, o rock progressivo não estava na crista da onda,
afinal o punk e a new wave, entre
outras músicas de cunho mais radiofônico e comercial eram as pepitas de ouro da
indústria fonográfica, então as portas se fechavam. Mas a luz no fim do túnel
se fez e veio da sua terra natal, Turku.
A M&T Productions,
gravadora fundada em 1975 pelos irmãos Matti e Teppo Ruohonen, descobriram o
Kaamos que era da mesma região. Uniram o útil e o agradável, já que a jovem
gravadora estava precisando de novas bandas ao seu cast e o Kaamos estava precisando de gravadora, a banda então
assinou contrato em 1976 gravando o seu primeiro e único trabalho, no início de
1977, chamado “Deeds and Talks”.
“Deeds and Talks” é um álbum
majoritariamente de rock progressivo, com forte viés sinfônico, baseado em
várias texturas de teclados e guitarras líricas, solos bem trabalhados de
guitarra, até em demasia, o que, pelo menos para este que vos fala, é muito
prazeroso, o que o torna um álbum especial, incluindo ainda lindas passagens de
sintetizadores de movimentos interessantes, bem agitados, em uma mescla bem
interessante entre o progressivo britânico com nuances do típico folk rock
escandinavo, outro fator extremamente interessante para mim.
É percebido no debut do Kaamos uma guitarra bluesy, mas suaves, que nos traz à
lembrança de bandas como Camel, com melodias enérgicas que me lembra Wigmam
tardio, diria. Embora “Deeds and Talks” não seja um álbum inovador, ele merece
uma audição pelo fato de entregar exatamente essa miscelânea de vertentes
sonoras que construíram o hibridismo progressivo no fim dos anos 1960 e que se
constatou em seu apogeu entre 1971 e 1974, mais ou menos.
O álbum é inaugurado com a
faixa “Strife” que é centrada em guitarras de blues, com solos diretos, porém
bem trabalhados, límpidos e bem executados, com teclados que traz uma textura
graciosa e com uma bela performance de flauta. Essa performance meio blues e o
vocal do baterista, embora não seja um primor, me fez lembrar os primeiros
tempos do Bad Company meio “nórdico”! Loucura, não?
“Are You Turning” segue
cheia de senso melódico que tece notas de teclados bem nostálgica, algo
viajante e contemplativo, diria. A guitarra é potente, enérgica, solar, com
solos diretos, mas empolgantes. Os vocais, dessa vez, são bem agradáveis, bem
melodiosos, algo típico dos países escandinavos, sabe? Não saberia dizer sob o
aspecto técnico e/ou comportamental, mas é algo que me parece óbvio.
A próxima faixa, “Delightful”
é especial pois tem uma participação efetiva e competente, sob o aspecto
instrumental, de todos os músicos, com destaque para uma bateria delicada, bem
executada, no auge de sua simplicidade, e teclados contemplativos. Há alguns
compassos deliciosamente estranhos e casuais, com elementos evidentes de jazz
rock e vocais ao estilo Ian Anderson, do Jethro Tull. Bela música!
“Barocchi” traz também uma
faixa instrumental muito bem executada, com uma pegada clássica, com um groove
brilhante e bem contagiante, com o pleno uso do Moog. Na segunda metade o solo
de guitarra se desenvolve muito bem, em uma versão rock, bem como do órgão.
“Isabelle Dandelion” é uma
balada bem melancólica, dramática, diria soturna, ao som de violão e piano em
plena e total sinergia sonora e os vocais pungentes de Gustafson são
verdadeiramente emocionantes.
Segue com “Moment (Now)” que
imprime uma pegada mais jazz rock com teclados lindos e solares com guitarras
mais poderosas, elásticas e até pesadas. As harmonias vocais e, mais uma vez, o
todo instrumental são fantásticos. As guitarras se mostram afiadas, os teclados
flutuantes, com o fusion protagonizando.
“When Shall We Know” entrega
uma atmosfera mais funky, algo dançante, em uma miscelânea com o blues e,
claro, o rock progressivo, sendo soberbamente introduzido, sem soar
“deslocado”. O piano é tanto quanto enérgico e o conjunto da obra tem um
sentido de AOR.
O álbum é excelentemente encerrado com a faixa “Suit-Case” que, como o nome já sugere, trata-se de uma grande e instigante “peça” de rock progressivo que dura mais de oito minutos e tem um lindo e potente arranjo de teclado que me remeteu aos grandes e interessantes momentos do Greenslade, banda a que tenho adoração. Ele se torna, em alguns momentos, experimental, com “quedas” para improvisações, apresentando elementos de complexidade e cheio de emoções.
“Deeds and Talks” é assim:
um rock progressivo com forte viés sinfônico com um senso de melodia nórdica,
tendo como alicerce teclados do rock progressivo britânico e guitarras
incandescentes de blues e funk, com viagens jazzísticas. Ou seja, traz a
plenitude da versatilidade.
O álbum ganhou alguma
notoriedade, algum elogio por parte dos críticos musicais da Finlândia, sendo
considerado como o melhor momento do rock progressivo daquele país desde a
fundação do Wigwam, inclusive, porém a resposta do mercado foi tímida, morna,
provavelmente por ter sido concebido por um selo pequeno e que ainda estava
engatinhando, além das novas predileções da indústria fonográfica pelo punk
rock e new wave, sendo as vendas decepcionantes.
Mas apesar de todos esses
entraves o Kaamos continuou a se apresentar localmente, em sua terra natal,
Turku, mas não resistiu a esses reveses e se separou em 1980. Sentiram falta,
em decorrência desse cenário totalmente contra, de um público interessado e
substancial para assisti-los também nas apresentações.
O tecladista Kyösti Laihi
formou o Boulevard com Erki Korhonen. Em 1989 sofreu uma esclerose múltipla,
mas que não o impediu de continuar ativo nesta mesma banda até os anos 2000.
Como compositor escreveu várias músicas para vários cantores e, em 2002, gravou
a música "Eteenpäin" com a Seitzema Seinaflua Bergesta Band.
O baterista e vocalista
Johnny Gustafson se juntou a um grupo de dança “Bogart Company”, que se tornou
sucesso e a mais tarde se reuniu a banda Bluebird. Depois disso, ele seguiu uma
carreira solo, mas morreu em 9 de outubro de 2021.
O baixista Jakke Leivo se
tornou um pioneiro no ensino do baixo na Finlândia e desde então tem sido
professor titular do instrumento no no Helsinki Conservatory of Pop and Jazz,
no Departamento de Educação Musical da Sibelius Academy e no Helsinki
University of Applied Sciences Stadia.
O guitarrista Ilpo
Murtojärvi formou o grupo new wave Pasi & Mishin no início dos anos 1980,
tocando com os renomados guitarristas Anna Hansky, Aneli Thurliston e Joel
Harikainen. Mais tarde, ele se tornou músico de estúdio e atuou como professor
de guitarra pop e jazz no Conservatório de Turku. Em 2015, ele foi indicado
como o melhor artista pela Turku Jazz Association em reconhecimento às suas
realizações na composição e ensino de jazz.
Com um movimento de
ressurgimento do rock na Finlândia “Deeds And Talks” foi “reavaliado” e
entendido como um clássico do rock progressivo obscuro, ganhando uma reedição,
limitada em vinil, em janeiro de 2016 pelo selo “Rocket Company”. Mas antes, em
2010, este álbum foi relançado em CD pela mesma gravadora.
“Deeds and Talks”, do
Kaamos, apesar do seu infortúnio, se revela grandioso, mesmo não trazendo
nenhum elemento de vanguardismo em seu som, mas feito com sinceridade,
competência, sem se deixar rotular por uma vertente ou estilo. A prova
contundente da qualidade do trabalho foi a carreira dos seus músicos pós
Kaamos, extremamente prolífica, bem-sucedida, corroborando a importância deste
álbum para a história do rock n’ roll finlandês e quiçá europeu, onde o prog
rock reina absoluto.
A banda:
Johnny Gustafsson nos
vocais, bateria e percussão
Kyösti Laihi nos teclados,
moog e sintetizadores e backing vocals.
Ilpo Murtojärvi na guitarra
e backing vocasl
Jakke Leivo no baixo
Faixas:
1 - Strife
2 - Are You Turning
3 - Delightful
4 - Barokki
5 - Isabelle Dandelion
6 - Moment (Now)
7 - When Shall We Know
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