Sabe aquelas percepções que
você tem e que parece não fazer sentido nenhum dentro de um contexto, digamos,
real, racional? Algo que percebe no universo da música e que não ter a mínima
sustentação?
Tudo bem caríssimos
leitores, eu explico, eu explico! Eu sempre tive a percepção de que bandas e
músicos, embora não sejam conhecidos, não tenha conquistado status de algo
dentro de sua cena, a desbravou de alguma forma, fez parte da sua história, de
sua construção e, inclusive, a ajudou a se popularizar ou minimamente se fazer
possível servindo de referência para outras bandas surgirem.
Mas como atribuir tal
façanha a bandas que sequer conquistou sucesso e fama? A história, a história
contada que sacramenta, que corrobora a sua importância, a sua colaboração para
o rock n’ roll! E não se enganem, a sua importância não se mensura apenas para
fama e os milhões de álbuns vendidos somente.
Fracasso e sucesso não se mensura pelo aspecto comercial apenas. Sucesso também é entendido e percebido quando uma banda subverte o tempo, ousa com sua música vanguardista e arrojada para o seu tempo e edifica um conceito que servirá de inspiração para o surgimento de outras tantas bandas posteriormente.
E uma banda brasileira, mais
precisamente da cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, creio se adequar a
esses quesitos, mesmo não sendo famosa, muito pelo contrário, extremamente
obscura, rara, mas que praticamente se tornou pioneira no rock n’ roll gaúcho
tão respeitado nos dias de hoje. Falo do VÔO LIVRE.
O Vôo Livre, quando ainda a
palavra “vôo” era acentuada, foi formada já no final dos anos 1970, mais
precisamente em 1979, em um período em que algumas vertentes do rock n’ roll
estavam em declínio comercial, tais como o hard rock e o rock progressivo,
dando lugar para o punk rock em uma abordagem mais suja e direta, entre outras
músicas mais pasteurizadas e “animadas” que não flertavam com o rock.
O cenário não era nem um
pouco favorável para o Vôo Livre que construiu a sua sonoridade com base
exatamente no hard e prog rock! Mais um entrave que fez com que a banda não
atingisse o sucesso comercial, caindo em um profundo ostracismo.
Mas falemos dos seus
primórdios, antes de dissecar o seu único álbum lançado em 1981, homônimo. O
Vôo Livre teve início a partir da reunião entre o guitarrista Luís Bento e o
baterista Luís Vieira. Os caras estavam entusiasmados para fazer algo novo,
queriam ousar para variar e formam a banda “Palha Mágica”, em 1979.
Mas precisavam, claro, como
toda banda em seu início, de compor material para quem sabe gravar um álbum e
cair na estrada para divulgar a sua arte. Pouco tempo depois o baixista Chico
Castro se junto à banda, completando a formação clássica de power trio.
Os ensaios se intensificaram e com isso foram se entrosando cada vez mais e as suas influências musicais se fizeram presentes, moldando a sonoridade da banda, construindo uma identidade e que variava do Deep Purple ao Genesis, Rush e até mesmo o King Crimson.
A banda flertava em várias vertentes dentro do rock deixando a sua criatividade aflorar sem amarras, o que lamentavelmente se torna um fator determinante para se tornar uma banda pouco conhecida, pois costumam não se adequar aos modismos da indústria fonográfica.
Eram vertentes que não
estavam mais na “moda”. O punk e o heavy metal oitentista, a década está
batendo na porta, estavam aflorando como as novas propostas sonoras do rock,
mas os jovens músicos decidem seguir as suas verdades na música, contra tudo e
todos.
Após alguns shows mais
restritos, modestos no circuito universitário de Pelotas e de regiões no
entorno, os caras resolvem partir para algo mais “ousado”. Ambicionavam tocar
na capital Porto Alegre. E aí decidem mudar o nome da banda, talvez inspirados
pelo novo momento: passaria a se chamar “Vôo Livre”. Afinal a banda estava
alçando novos e altos voos para conseguir um lugar ao sol no cenário rock
gaúcho, ainda embrionário.
Mas faltava grana para esse
voo alto. Luis Bento, o guitarrista, bancou praticamente sozinho com todos os
custos de seu sonho e dos seus companheiros de banda. Todos os seus recursos,
sem pestanejar foram investidos para esse momento importante do Vôo Livre.
No ano seguinte, em meados de 1980, o Vôo Livre atrai rapidamente a atenção do público local mais ligados às correntes de rock progressivo e fusion, bem como do hard rock, que, mesmo diante de um cenário adverso, ainda mantinha interesse em composições mais ousadas e de textura sonora mais trabalhada. A banda se ancorou nesse público que a aceitou, certamente porque não tinha uma cena encorpada desse estilo na capital gaúcha. Entendem o que falei no início desse texto?
Desde sua primeira aparição
o Vôo Livre apresentou uma bela estrutura profissional de alto nível, com
equipamentos modernos, P.A. próprio e, até mesmo, uma equipe de produção. Mas
eles não queriam ficar apenas nos shows, precisavam logo gravar um álbum.
E diante dessa nova etapa, o
Vôo Livre estabelece uma parceria com o recém-criado selo independente “Pialo”,
do guitarrista Fernando Bohrer, e começam a trabalhar no disco, que viria a ser
lançado em agosto de 1981. A formação, além do power trio que formou a banda, trazia, como participação especial,
o tecladista Paulo Dorfman que tocou na faixa “Pôr do Sol”.
Acompanhado de muitas
apresentações e até mesmo uma pequena excursão de lançamento, o novo álbum, o
seu debut “Vôo Livre”, surpreendeu tanto o público quanto a crítica, tomando o
rock gaúcho de assalto, elevando-o. Esse trabalho do Vôo Livre é considerado
por muitos o primeiro no gênero totalmente gravado e produzido em Porto Alegre.
“Vôo Livre” entrega
elementos de música progressiva, com mudanças rítmicas evidentes e o peso do hard
rock, com algumas “nuances” de rock experimental, se configurando como um álbum
extremamente ousado e versátil para a sua época no Brasil, que tinha no “Rock
Brasil” como algo mais interessante e que estava florescendo nessa época em
Brasília e no Rio de Janeiro, por exemplo com viés da new wave britânica.
O álbum é inaugurado com a
faixa “Hey” e tem na estrutura sonora uma “cozinha” extremamente entrosada, com
baixo pulsante e pesado e bateria bem marcada, com a veia hard rock sendo
representada por riffs de guitarra com alguma distorção e um vocal bem
melodioso e de bom alcance. A faixa tem a predominância do hard rock sendo mais
direta.
A sequência traz a faixa
“Visão” que já traz a proposta mais progressiva lembrando bandas icônicas como
O Terço, por exemplo. A introdução traz uma atmosfera mais branda, com teclados
mais viajantes e guitarras mais contemplativas. O vocal é mais dramático, diria
até melancólico em alguns momentos, embora a letra traga algo solar em sua
mensagem. Um belo prog rock em pleno anos 1980.
E falando em temas e vibes mais viajantes, a próxima faixa se
chama “Viagem”, mas já traz uma abordagem mais pesada, com o baixo mais
pulsante e vibrante, com solos incendiários de guitarra. A música é
instrumental e tem no hard rock a sua ideia central, com algumas mudanças
rítmicas bem arrojadas trazendo algo como metal progressivo, dada a velocidade
da faixa. Fantástico!
Segue com a faixa “Chuva
Forte” que já inicia com solos de guitarra mais diretos que logo abre alas para
riffs mais pesados e um baixo pulsante e poderoso com uma pegada hard
predominando novamente, com algo bem heavy rock dada a velocidade que é
imprimida na faixa. Hard n’ heavy de excelente qualidade!
“PZ4429” começa meio jazzy com alguns recursos jazzísticos tendendo
para algo um tanto quanto para as improvisações, ao estilo “Jam Sections”. Logo descamba para o
blues rock, corroborando a sua condição de improvisação, com a criatividade e
talento aflorados.
E fecha com a faixa “Pôr do
Sol” que já entrega uma abordagem mais comercial, uma pegada mais radiofônica,
mas que não deprecia a sua estrutura sonora. Guitarra mais dançante, vocal mais
melodioso, letras mais edificantes e hippies.
Depois dessa extensa, tensa
e cansativa turnê, com muito trabalho para promover o seu primeiro álbum, os
músicos da banda começaram a sentir o desgaste. O ritmo intenso acaba pesando
no aspecto emocional e alguns desentendimentos afloraram. Resolveram
interromper as atividades justamente logo após o show comemorativo chamado “Um
Ano na Estrada”.
O álbum seria chamado de
“Memórias”, teria material de arquivo registrado entre maio e agosto de 1981,
com novas composições, trazendo propostas mais modernas e algumas influências
eletrônicas e experimentais, tendo como base, como alicerce o rock progressivo.
Mas o mercado fonográfico não estava dando a mínima para o rock progressivo e outras vertentes mais experimentais (na realidade nunca apoiou) e o projeto do Vôo Livre com o seu segundo álbum, “Memórias”, com o perdão da famigerada analogia, não alçou voo.
As gravações sequer chegaram
a ser finalizadas. Reza a lenda de que as faixas só existem as bases, e mesmo
as músicas em estágio mais avançado carecem de uma mixagem adequada, fazendo
com que não haja condições de se lançar hoje esse registro na íntegra, na forma
de um álbum inédito e completo.
O que nos restar é esperar que a banda se reúna e consiga algum selo para bancar esse lançamento, caso ainda exista. Haja vista que atualmente temos alguns bons relançamentos que estavam perdidos no fundo do baú do rock.
Mesmo com a boa receptividade da imprensa especializada e dos pequenos, mas ávido público com o debut “Vôo Livre”, além de alguns boatos sobre reuniões, a separação do trio se revelou definitiva e seus integrantes parecem ter seguido caminhos bem distintos, dispersando-se em diferentes cidades. Tudo indica não terem mais contato entre si.
Em 2011 o raro álbum homônimo da banda, foi relançado, transcritas das fitas masters originais e cuidadosamente restauradas e remasterizadas no formato digital por Lelo Nazario, trazendo três bônus especiais: duas faixas inéditas que são “Vôo Livre” e “Chamada a Cobrar”, resgatadas e selecionadas dentre as fitas das gravações inacabadas de “Memórias”, mais uma faixa que se chama “Tempo Futuro”.
A faixa “Tempo Futuro” foi incluída
originalmente na eclética coletânea de nome “Porto Alegre/Rock”, que foi
lançada em 1985 pela parceria dos selos Musi’sul/Pialo e que reunia músicos e
bandas remanescentes dos anos 1970, como a banda Byzarro e o exímio e saudoso
cantor Fughetti Luz da grande banda Bixo da Seda e do pioneiro Liverpool a
novas bandas, até então, do rock gaúcho.
Um clássico obscuro, perdido
no tempo, mas que resiste bravamente, por ser, mesmo diante de entraves
comerciais e modistas, uma referência para a história do rock n’ roll gaúcho
tão enaltecido nos dias de hoje, por ser um centro desta vertente em todo o
Brasil. Altamente recomendado!
A banda:
Chico Castro no baixo,
teclados e vocal
Luís Vieira na bateria,
sindrum e vocal
Luís Bento na guitarra, efeitos e vocal
Com participação especial:
Paulo Dorfman nos teclados
na faixa “Pôr do Sol”
Faixas:
1 - Hey
2 - Visão
3 - Viagem
4 - Chuva Forte
5 - PZ4429
6 - Pôr Do Sol
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