Eu sou um apreciador de
projetos, desses supergrupos que nascem no rock n’ roll. É a oportunidade de
muitos músicos se permitirem ousar em suas carreiras, alçar voos distintos, sob
o aspecto sonoro, claro.
E esse conceito de projetos
de bandas não são de hoje, embora tenha tido uma ebulição nesses últimos anos.
Podemos exemplificar com talvez uma das melhores que surgiram neste universo: o
Cream. Seus músicos, quando se juntaram para formá-la, tinham já carreiras
razoavelmente estabelecidas e gozavam de certa experiência e credibilidade no
show business.
E a que eu falarei hoje vem
de um dos maiores mercados consumidores do universo do rock n’ roll: Falo do
Japão! Independentemente das questões culturais ou coisa que o valha, o público
nipônico sempre apreciou a diversidade que o estilo proporciona: sempre
viajaram entre os acordes do prog rock, do hard rock, do heavy rock e a banda
que escolhi vem dos empoeirados anos 1970, mas que, com a sonoridade que
edificou é perfeitamente cabível, “harmonizável” com as tendências e cenas
atuais que estão se estabelecendo em contemporâneos dias. A banda é SPEED, GLUE
& SHINKI.
O Speed, Glue & Shinki,
como todas as outras que se enquadram no requisito de supergrupos, foi
concebida a partir da dissolução da banda FoodBrain, quando o guitarrista
Shinki Chen decidiu debandar da banda após o lançamento do álbum de psych jazz
chamado “A Social Gathering”. O cara era conhecido como o “Hendrix japonês” e,
evidentemente já gozava de certa credibilidade no meio musical.
Já que Chen era conhecido
como um exímio guitarrista naquela época, no início dos anos 1970, claro que
teria interesse de algum magnata da música em querer colocá-lo em algum
audacioso projeto e não demorou em acontecer. O selo “Atlantic Records”
japonesa, com a supervisão do produtor Ikuzo Orita, decide formar uma banda com
Chen no front.
Embora Shinki Chen fosse uma
figura marcada na cena rock japonesa o que uniu o mesmo a Orita foi um trabalho
anterior, um álbum solo de Chen chamado “Shinki Chen and Friends” apresentando
outros músicos importantes da cena como George Yanagi e Masayoki Kabe.
Atualmente esse trabalho é tido como clássico, como “cult” e faz parte da série
“Naked Line”, da Universal Music de reedições remasterizadas digitalmente
legítimas. E depois desse trabalho Orita assumiria a divisão japonesa da
Atlantic Records, acontecendo o convite ao Shinki Chen para a concepção desse
projeto.
Então convocaram para a
empreitada o companheiro de Chen no seu trabalho solo, o baixista franco-chinês
Masayoshi “Glue” Kabe e o baterista filipino Joey “Speed” Smith e assim a banda
foi formada em 1970. Cabe uma curiosidade. Smith foi descoberto por Shinki
enquanto tocava em um shopping center. Ele atraiu a atenção dos demais músicos
pelo talento, claro, na bateria e também por seu visual um tanto quanto
“exótico”.
Masayoshi Kabe, antes desse
projeto musical, bem como Joey Smith começaram a sua carreira como músicos de
rua e bandas pequenas e pouco conhecidas, consumindo, de forma desbravada,
anfetaminas e outras drogas psicodélicas.
O nome da banda veio dos
apelidos dos seus músicos e reza a lenda que é oriundo também da apreciação e
uso de anfetaminas e demais psicotrópicos pelos músicos e talvez faça sentido
pois o apelido do baixista Masayoki Kabe, “Glue”, em tradução livre significa
“cola”. Inclusive era viciado em “Marusan Pro Bond”, um produto usado em unhas.
Eram os anos 1970, os experimentos psicodélicos também se estendiam aos usos
das drogas e não apenas às músicas.
Há quem diga que ambos se
complementavam, as drogas influenciavam inclusive no processo de composição das
músicas e com o Speed, Glue & Shinki não foi diferente, vide o título da
primeira faixa do seu primeiro álbum, intitulado “Eve”, de 1971: “Mr. Walking
Drugstore Man”, sem contar com guitarras ácidas, lisérgicas e altamente pesada
que também seguia basicamente o que se praticava em termos de cena ao redor do
mundo na transição das décadas de 1960 e 1970.
“Eve”, alvo do texto de
hoje, traz um trabalho extremamente orgânico e visceral de rock psicodélico,
com nuances bem evidentes de blues rock e também de um eloquente hard rock e
pitadas avant-garde de um heavy rock envolvente e instigante. A impressão que
se tem ao ouvi-lo é de um álbum totalmente despretensioso sem floreios e
indulgências na sua produção/concepção.
“Eve”, quando lançado, gerou
críticas mistas, bem divididas, e as críticas negativas deram conta de um álbum
“americanizado”, totalmente descaracterizado, não trazendo nada de novo e com
as características tão pesadas e viscerais gerou uma rejeição por ser
exatamente pouco ortodoxo. Mas “Eve” é um produto do seu tempo, simplesmente, e
não um mais do mesmo, uma réplica e atualmente ganhou o status de desbravadores
do estilo no Japão.
O álbum começa com “Mr.
Walking Drugstore Man” e revela um estupendo blues rock poderoso, travestido de
um visceral hard rock sobre uma bateria trovejante e solta, enquanto os
“lamentos” da guitarra dá o tom pesado e arrogante à música, com linhas de
baixo extremamente swingantes dentando um rock pesado e indulgente.
Segue com “Big Headed Woman”
que também imprime um blues distorcido e sujo que entra em uma incrível
convergência com o bumbo possante da bateria, sucedendo-se em algo bem
desenvolvido, bem coeso mesmo. A guitarra entra com muita lisergia e distorção
transformando a faixa em um exibicionismo psicodélico.
“Stoned Out of My Mind” é
bem peculiar e traz uma versão de proto stoner com a predominância do mais puro
e genuíno hard rock setentista. A “cozinha” bem entrosada, guitarra trazendo o
tempero do peso e baixo vivo, latente e pulsante traz uma atmosfera subversiva
e perigosa.
“Ode to the Bad People” é o canto dos cisnes para o
hard rock! Batidas pegajosas e pesadas de baixo, guitarra ostensiva
e agressiva, com viés lisérgico, mostrando uma banda no seu momento mais
poderoso e intenso que flerta no hard psych com maestria, personificando o seu
tempo.
“M Glue” traz também o
destaque no baixo, com batidas lisérgicas, em um clima extremamente
mesmerizante ao ouvinte, com riffs de guitarras pesados, com bateria marcada,
mostrando que, por mais que o viés instrumental seja sujo e despretensioso,
mostra uma sinergia entre seus músicos, fazendo da sonoridade singular.
“Keep It Cool” é uma
verdadeira e beligerante bomba sonora que explode com os solos de guitarra
chorões de Chen que entre uma escala e outra vai alternando, mostrando
alternâncias rítmicas.
E fecha com “Someday We’ll
All Fall” que inverte totalmente a proposta sonora da banda, com uma versão
acústica, uma balada rock que remete a caminhos psicodélicos, entregando ao
ouvinte uma viagem sem precedentes.
Joey Smith voltou para as
Filipinas e formou o power trio Juan de La Cruz Band, Masayoshi Kabe ganharia
fama com a banda Pink Cloud, enquanto Shinki Chen se aposentou do mundo da
música.
A banda gravaria o seu
segundo álbum, em 1972, autointitulado. Trouxe também um pouco do peso e da
visceralidade do seu antecessor, porém não tão inspirado quanto o debut. Mas a banda não conseguiu, com os dois
trabalhos, atingir êxito comercial, decretando o fim da banda logo após o
lançamento do segundo álbum.
“Eve” é um álbum autodestrutivo,
com uma produção crua, nua e totalmente despojada quanto o nome da banda. É
animalesco, bárbaro com apenas guitarra, baixo, vocal e bateria, nada mais. A
produção é seca, contundente e caótica, tudo isso sob o verniz das drogas, se
tornando este trabalho um agente desafiador dos modos e bons costumes, uma
música literalmente subversiva. Assim é Speed, Glue & Shinki.
A banda:
Shinki Chen na guitarra
Masayoshi Kabe no baixo
Joey Smith na bateria e
vocal
Faixas:
1 - Mr. Walking Drugstore Man
2 - Big Headed Woman
3 - Stoned Out of My Mind
4 - Ode to the Bad People
5 - M Glue
6 - Keep It Cool
7 - Someday We'll All Fall Down
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