Não há dúvidas, pelo menos
para mim, de que a cena stoner/doom que eclodiu no início dos anos 2000 é o que
de melhor aconteceu no rock n’ roll desde os anos 1990 com o grunge na cidade
de Seattle nos Estados Unidos. Lembrando que esta última teve grande
visibilidade com o lançamento do álbum do Nirvana, “Nevermind”, em 1991
culminando com o seu fim comercial quando seu vocalista, Kurt Cobain, foi
encontrado morto em 1994.
Já a cena stoner rock e doom
metal, bem como também o psych rock, vem crescendo e se saturando de tanta
banda que vem surgindo, ganhando vida, desde 2000 e que, mesmo sem tanta
popularidade e entrada nas rádios e televisões de massa, vem divulgando, graças
as redes sociais e o talento e fazendo turnês pelo mundo.
E a pelo menos 20 anos eu
venho acompanhando, de perto, e com afinco e verdadeiro entusiasmo, a caminhada
das bandas que vem ganhando notoriedade e credibilidade, bem como aquelas que
ainda, de forma obstinada e persistente, segue seu caminho para buscar um lugar
ao sol.
E entre essas bandas que vem
ganhando algum sucesso, reconhecimento pela sua arte, pela sua discografia, não
podemos negligenciar a alemã Kadavar, Radio Moscow, Wucan e tantas outras que
levariam horas e dias, ou melhor, páginas e páginas dessa humilde resenha caso
decidisse escrevê-las aqui. Algumas delas acompanhei shows, outras cada
material novo lançado, mas nunca as perdi de vista.
Mas tem uma banda, em
especial, que foi a grande responsável ou um das grandes responsáveis por ter
me apresentado ou pelo menos me estimulado a conhecer esse mundo, esse universo
vastíssimo e ainda, pasmem, inexplorado das bandas de stoner e doom metal que
povoa o mundo de um rock n’ roll que homenageia o passado, mas que traz uma
dose cavalar de contemporaneidade sonora extremamente arrojada e que vem, não
poderia deixar de ser, da Suécia e se chama WITCHCRAFT.
Ela me fez abrir os olhos
para um mundo, para um universo que não se limitava, ouso dizer, às grandes e
imaculadas bandas setentistas, pois era a nova e consistente safra do rock que
corroborou o que sempre acreditei apesar de alguns equivocados críticos dizerem
que o estilo morrera. Não! Não morreu, pode ter agonizado em alguns momentos,
sofrido umas tocaias, mas sempre se mostrou inoxidável e essa cena foi e tem
sido responsável por essa capacidade do rock se reinventar.
Hoje o Witchcraft goza de
alguma popularidade, goza de alguma fama principalmente na Europa, participando
de vários festivais, dos mais undergrounds aos mais mainstream mostrando que a
banda, a cada álbum que lançou, reviu seus conceitos sonoros, flertou com
algumas vertentes, mas sempre se mostrando relevantes e fortes a cada trabalho.
Mas hoje eu falarei dos
primórdios, do passado do Witchcraft, quando a banda era apenas um projeto que
denotava algo passageiro, com início, meio e fim, mas que dura mais de vinte
anos. E vamos viajar no tempo com uma sonoridade declaradamente “vintage” e que
procurou, com maestria, homenagear não apenas um estilo, uma vertente do rock,
que teve o pilar nos longínquos anos 1970, mas uma banda que foi e é sinônimo
de persistência e que ajudou, apesar de tudo, a construir a cena hard, a cena
doom metal, o occult rock: falo do Pentagram.
Mas o que tem a ver o Witchcraft
com o Pentagram? O que os une além do doom metal, do occult rock, do hard rock?
Talvez os mais jovens ou aqueles que passaram a conhecer o Witchcraft nos seus
trabalhos mais recentes, não se lembram da história que gira em torno do seu
primeiro e singular álbum, homônimo, de 2004.
E nessa época o Witchcraft
era uma banda totalmente “retrô” e o propósito dos seus integrantes à época era
recriar o psych-hard dos anos 1970, de bandas cujas sonoridades eram
revolucionárias e pouco ortodoxas já naquela época. E o responsável se chamava
Magnus Pelander, vocalista, guitarrista e principal compositor do Witchcraft
que a criou em 2000 na cidade de Örebro, com cerca de 120 mil habitantes e duas
horas a oeste da capital sueca, Estocolmo.
A intenção de Pelander era
criar um projeto para homenagear o frontman do Pentagram, o grande Bobby
Liebling e Roky Erickson icônico líder do 13th Floor Elevators. Para a
empreitada ele chamou seu amigo John Hoyles, na guitarra e os irmãos Ola no baixo
e Jens Henriksson na bateria. A banda estava pronta!
O single “No Angel or Demon”
com “You Bury Your Head” no lado B, já com o nome da banda de Witchcraft
(feitiçaria em inglês), foi lançado pelo pequeno selo independente “Primitive
Arts Records”, em 2002. Já com essas músicas a banda atingiu alguma
visibilidade e ainda com a oferta de contrato do selo de Londres “Rise Above
Records”, do líder da banda Napalm Death, Lee Dormian, Pelander ganhou um
estímulo para continuar a compor outras músicas.
A banda deu uma hibernada e
os demais músicos seguiram as suas vidas enquanto Pelander continuou a compor e
compor de forma voraz e intensa. Até que finalmente em 2004 “Witchcraft” ganhou
a luz, de uma forma tão original, tão “vintage”, tão autêntico. É evidente que
Magnus Pelander, com as suas letras, queria trazer à tona, dos escombros do
vilipêndio, o passado de bandas de hard psych dos anos 1970. Cabe aqui também
uma curiosidade sobre a capa do álbum. A imagem da capa do álbum foi uma versão
ligeiramente alterada da gravura “Merlin”, de Aubrey Beardsley, para a capa do
livro "Le Morte d'Arthur" (1485), de Sir Thomas Malory.
Lembro-me que quando ouvi “Witchcraft”
pela primeira vez e me deleitando de um passado que não vivi, de ter visto no
Witchcraft bandas como Black Sabbath, Blue Oyster Cult, Coven e evidente o
próprio Pentagram. Lembro-me também, apesar das redes sociais não serem tão
atuantes em 2004, um feedback não
muito agradável por parte dos especialistas de músicas e de alguns ouvintes e
até hoje esse álbum não figura entre os melhores do estilo ou é pouco lembrado
dizendo que é pouco original ou pior, uma cópia das bandas do passado.
Claro que os fãs do moderno doom metal e stoner rock torceram o nariz, talvez pelo simples fato de não estarem inteirados pela história desta vertente do rock e, sobretudo pela proposta e história da banda para com esse álbum, em especial. Ele vislumbra definitivamente a homenagear as bandas clássicas dos anos 1970.
Outro detalhe importante que convém lembrar no debut do Witchcraft e redução drástica da batida, acentuando os graves, enfatizando as guitarras solos cheia de riffs alucinados, lisérgicos e pesados com vocais entoando letras angustiadas e com fantasias macabras. Hoje nesta cena é praticamente impossível vermos bandas com essa proposta sonora. Lembremos que, dada as devidas proporções, o próprio Black Sabbath adotou essa vertente sonora em seu primeiro álbum não sendo tão pesado assim, com viés blueseiros e psicodélicos.
Então a formação do Witchcraft para o lançamento de seu primeiro álbum, de mesmo nome, em 2004 trazia nos vocais e guitarra Magnus Pelander, John Hoyles, na guitarra, agora com um novo baterista, Jonas Arnesén, no lugar de Jens Henriksson e seu irmão Mats Arnesén no baixo, no lugar de Ola Henriksson que também não seguiu na empreitada.
No álbum inaugural do Witchcraft
traz a versão de "Please Don't Forget Me", música composta por Bobby
Liebling, quando tinha 16 anos, na banda que é considerada como o
“Pré-Pentagram”, chamada Stone Bunny, de um álbum, único, lançado em 1970 de
nome “Nothing Left” e “Yes, I Do” que aparece na versão original do LP lançado
no Japão, apenas.
“Witchcraft” entrega
basicamente arranjos soltos, quase jazzy, com riffs de guitarra
maravilhosamente simples, porém muito efetivos e vocais dramáticos e sombrios
que lembram os de Ozzy Osbourne no Black Sabbath. Uma sonoridade densa, de
atmosfera densa, por vezes, pesado, lisérgicos, arrastado como um doom
primitivo, dos primórdios evocando Sabbath, evocando Pentagram. Enfim, o
primeiro álbum do Witchcraft engloba tudo o que havia de bom na cena proto doom
e hard rock dos anos 1970: estruturas minimalistas, riffs carregados de
reverberação, bateria descontraída, linhas de baixo intensas e vocais limpos e
assustadores.
O álbum é inaugurado com a
faixa título “Witchcraft” com uma bateria marcada e de poderosa batida com
riffs de guitarra alucinantes e aterradores em uma atmosfera garageira,
alternativa com uns vocais limpos e por vezes gritados, um tanto quanto
meticulosamente abafados. Do peso fica mais arrastado e sombrio, com o vocal
perigoso e uma bateria ao fundo com riffs ocasionais. Mudanças de ritmo mostram
o quanto são grandiosos.
Segue com “The Snake” um tanto quanto teatral que impõe a realidade de um proto doom, uma sonoridade arrastada, riffs pegajosos e pesados de guitarra, vocal mais despretensioso, que se revela arrogante e, por vezes, agressivo.
E eis que surge o clássico
obscuro do Stone Bunny “Please Don't Forget Me”, composto por Bobby Liebling,
que segue fielmente como na versão original, revelando o peso e a psicodelia
muito comum em um ano que foi tido como a fase de transição entre o psych rock
e o hard rock. E assim se mostra a música: um voluptuoso hard psych cheio de
vida e intensidade.
“Lady Winter” é pesado e nos
remete a outro projeto de Liebling chamado Bedemon, com uma sonoridade
cadenciada, com a “cozinha” muito bem entrosada, com a bateria batendo forte e
marcada e um baixo pulsante. O destaque também fica para o solo, simples, mas
pleno de guitarra.
“What I Am” segue
basicamente a mesma proposta da faixa anterior: bateria pesada, riffs de
guitarra trazendo uma textura sombria e indulgente, sendo corroborada pelo
vocal perigoso e docemente louco de Pelander, com um baixo pesadão e muito
vivaz.
“Schyssta Logner” já bate
com o pé na porta, riffs arrogantes e lisérgicos, poderosos e tocados muito
alto, seguindo com a bateria na mesma levada, com alguma cadência sendo
capitaneada pelo vocal mais rasgado.
“No Angel or Demon”, que foi
o primeiro single da banda e uma das mais antigas composta por Magnus Pelander
realmente sintetiza a proposta “retrô” do Witchcraft e que traz o hard rock
mais abrangente, sonoramente falando, com algo mais jazzy, mais bluesy também.
Uma sonoridade mais bem elaborada.
“I Want You to Know” abre
com riffs mais pegajosos, mais pesados, a bateria segue em uma jornada que
encorpa a sonoridade e que, em uma salutar disputa com a guitarra, faz da
música mais plena e viva. Solos de guitarra preenchem espaços de forma simples
e direta, mas efetivas.
“It's So Easy” começa
particularmente solar, intensa, vivaz e plena e o destaque fica para o vocal
que eleva toda essa condição, cantado de forma límpida e alta, com grande
alcance, por vezes, gritado. Nessa faixa temos uma síntese fiel da influência
de bandas como Pentagram e Bedemon.
“You Bury Your Head” começa
avassaladora com os pratos da bateria explodindo em intensidade e
agressividade, irrompendo logo em algo mais cadenciado trazendo à tona o doom
metal, sendo tocada de forma pegajosa e arrastada.
E fecha com “Her Sisters
They Were Weak” é maravilhosamente obscura, minismalista e arrisco dizer que
traz alguns elementos progressivos, pois se torna contemplativa e com algumas
mudanças de ritmo. É pesada, é densa, é sombria, é aterrorizante. Uma das
grandes faixas do álbum e que o finaliza perfeitamente.
Embora tenha sido lançada
apenas no LP na versão japonesa, convém falar um pouco da faixa “Yes, I Do”,
também de Bobby Liebling, que é extremamente pesada, com riffs ultrajantes e
solos de guitarra curtos e grossos que torna a faixa pesada e intensa.
Reza a lenda que
“Witchcraft” foi gravado em um porão. Se isso de fato aconteceu, tenho certeza
que não foi por uma circunstância de uma eventual falta de dinheiro, de pouca
verba. Não, não foi. Certamente foi para manter a aura que o álbum entrega e ao
ouvi-lo é notório que era como se o mesmo tivesse sido gravado há quase
cinquenta anos atrás, afinal essa era a vibe, essa era a intenção, afinal
trata-se de uma homenagem às bandas esquecidas, muitas delas, que compunham a
cena occult rock nos primórdios dos anos 1970.
“Witchcraft” traz
instrumentos tocados de forma nebulosa, está além das superproduções e
gravações com mega estrutura tecnológica que já tinha à disposição de muitas
bandas no início dos anos 2000. A bateria soando distante e oca, as guitarras
difusas e arrastadas, o baixo, por vezes pulsante, é discreto e sombrio.
“”Witchcraft” parece surgido de uma época distante e antiga, de tempos perdidos
e esquecidos, empoeirados.
Quase vinte depois de seu
lançamento o Witchcraft lançaria outros álbuns, mas sem o “charme” de seu
debut, mas não me entendam mal, caros leitores, a banda foi encorpando,
trafegando por outros estilos, do hard rock ao heavy metal, mas vejo como
evidente esse aperfeiçoamento sonoro nos lançamentos posteriores, mostrando que
a banda não pararia no tempo se revelando madura, grandiosa.
Nada será como antes e ver
uma banda como o Witchcraft, em plenos anos 2000, voltar em um tempo esquecido
e até desprezado por alguns “conservadores” do rock n’ roll, e gravar um álbum
que homenageia bandas do naipe de Black Sabbath, Coven, Pentagram, Bedemon e
tantas outras do estilo, é levar ao jovem e, as vezes, perdido fã de rock uma
fatia essencial da história desse estilo que parece que fazem questão de enterrar.
Músicas essas que foram também produzidas por músicos jovens mostrando que o
discurso funesto de algumas figuras destrutivas que trafegam no universo do
rock, que insistem em dizer que o rock morreu. Não morreu para o Witchcraft.
A banda:
Magnus Pelander nos vocais e
guitarra
John Hoyles na guitarra
Jonas Arnesén na bateria
Mats Arnesén no baixo
Ola Henriksson baixo (Em “No
Angel or Demon”)
Faixas:
1 - Witchcraft
2 - The Snake
3 - Please Don't Forget Me
4 - Lady Winter
5 - What I Am
6 - Schyssta lögner
7 - No Angel or Demon
8 - I Want You to Know
9 - It's So Easy
10 - You Bury Your Head
11 - Her Sisters They Were Weak
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