A transição das décadas de
1960 e 1970 para o rock n’ roll foi extremamente importante, porque tínhamos,
lá pelo ano de 1967, 1968 e 1969, o ápice do rock psicodélico e o surgimento de
algumas bandas que tinham o desejo de trazer uma música mais crua, pesada e
agressiva, fugindo do experimentalismo e do “beat” da psicodelia.
E quando os anos 1970 foram
descortinados o hard rock estava florescendo, juntamente com a versão, digamos,
mais sofisticada do psicodelismo, que era o prog rock. Eram períodos
embrionários, de tendências sonoras e fim de outras cenas e muitas bandas flertavam
com muitas sonoridades. Estereótipos à parte muitos álbuns que surgiram no
final da década de 1960 e início dos anos 1970, mesclavam o rock psych com o
hard e o prog.
Eram épocas que não se podia
pontuar um álbum como majoritariamente de hard, prog ou psych, as bandas
estavam delineando seu som, definindo sua sonoridade, aparando as suas arestas
sonoras e se permitiam, apenas, à liberdade criativa, sem se preocupar tanto
com os rótulos.
Caro leitor, avaliem, percebam
ao ouvir álbuns inaugurais de grandes e famosas bandas, por exemplo,
principalmente aquelas que gravaram seus primeiros álbuns nessa transição das
décadas e verão que são trabalhos distintos uns dos outros ou verão ainda que
essas vertentes sonoras estavam presentes em um só álbum!
E a banda que eu falarei hoje,
com o seu único álbum lançado, exatamente no fim de uma década, a de 1960 e o
início da outra, a década de 1970, no ano de 1970, trouxe, em seu trabalho,
nuances bem definidas de hard rock, de peso, de lisergia, de psicodelia e de rock
progressivo. Falo da dinamarquesa HAIR.
A banda foi formada na cidade
de Copenhague, capital da Dinamarca, no auge do rock psicodélico, 1967, mas sob
o nome de “Second Review”. Naquela época era um “power trio”, inspirando-se na
mais famosa banda de power trio” de todos os tempos, o Cream, e tinha, em sua
formação Benny Dyhr, na guitarra e vocal, Allan Sorensen, no baixo e vocal e
Peter Valentin Rolnes, na bateria e vocal. Esses músicos, todos muito
jovens, na faixa dos 20 anos de idade, fizeram vários shows por Copenhague e na
Nova Zelândia. Foi nessa época também que eles se juntariam ao crítico musical
e letrista Torben Bille.
O Second Review tocava
primordialmente uma espécie de “beat progressivo”, aquela música dançante e
chapante com viagens psicodélicas e progressivas, com muito experimentalismo.
Era basicamente o que se ouvia à época. A banda, por mesmo sendo dinamarquesa, se
inspirava na cena psicodélica norte-americana, com nuances britânicas.
Porém mudaria a sua sonoridade
quando Paddy Gythfeldt, vocalista, tecladista e vocalista, entrou para a banda,
tornando-se um quarteto. Mudaria também o nome da banda, passando a se chamar
“Hair”. Como o “antigo” Second Review a cena vigente na Dinamarca sofreram
influências do rock psicodélico dos Estados Unidos e da Inglaterra, mas com a
nova concepção sonora do agora Hair, a banda passou a destoar da cena local
praticando um som mais calcado no hard rock e na sofisticação do rock
progressivo que nascia para o mundo lá pelo ano de 1970, aproximadamente.
E com uma nova formação, um
novo nome e uma nova sonoridade, a banda partiu para o estúdio (não demorou
muito) para gravar seu debut. Este foi concebido, foi gravado no “Wifos
Studio”, entre abril e junho de 1970, com o nome de “Piece”.
O álbum, com isso atingiria o
status da produção de rock dinamarquesa mais cara até então. Estava ganhando
visibilidade. Para se ter uma noção do tamanho que a banda estava atingindo,
vieram, após o lançamento de “Piece”, mais quatro singles, um dos quais, “Happy
Child”, chegaria ao sétimo lugar das paradas dinamarquesas!
E falando de “Piece”, traz um
excelente heavy rock com pitadas generosas de rock psych, típico da virada da
década de 1960 e 1970, com toques perceptíveis de rock progressivo em algumas
faixas de seu álbum, com viradas de andamento rítmico de tirar o folego, com
peso na bateria, com batidas marcadas e pesadas, riffs pesados e grudentos de
guitarra, em alguns momentos bem lisérgicos e em uma salutar disputa com o
órgão Hammond, com destaque também para os vocais de Paddy Gythfeldt e tudo
cantando na língua inglesa. Não sou um entusiasta de comparações, mas remete ao
Blue Cheer, ao Iron Butterfly, Cream, entre outras bandas que aspiravam à
música pesada já no fim dos anos 1960.
O álbum é inaugurado pela
faixa “Coming Through” e já se apresenta animada, com riffs de guitarra mais
dançantes, ao estilo soul music, que logo dá lugar a um órgão mais
austero e bateria com batida cadenciada. Porém o hard rock, na metade da faixa,
ganha destaque com a bateria em outra levada, mais pesada, agressiva, com os
teclados ainda ditando o ritmo.
“Supermouth” entrega a pegada
hard logo no início. Batida forte da bateria, riffs pesados e pegajosos de
guitarra. Baixo pulsante. Não podemos negligenciar o trabalho da cozinha, da
seção rítmica desta faixa excepcional. Os teclados são animados, cheios de
energia.
“Dream Song” começa com
dedilhados de violão, uma atmosfera acústica, diria pastoral, mas logo irrompe
em riffs pesados de guitarra e retorna com a sonoridade mais suave e viajante,
agora com solos, embora curtos, mas bonitos de guitarra. Nessa faixa as
mudanças de andamento rítmicos ditam as regras. A pegada hard e prog se fazem
presentes, além de pitadas psicodélicas. É um som encorpado, orgânico e
sofisticado. Sem dúvida uma das melhores músicas do álbum.
“Everything's Under Control”
começa como um trovão, uma hecatombe de riffs pesados e lisérgicos de guitarra,
com bateria dura, pesada e marcada. O vocal no megafone me remete às músicas do
rock dos anos 1960, porém com uma pegada mais incisiva e agressiva. Mas não
deixa de ter uma pegada pop, um hard rock um pouco mais cadenciado.
“Pleasant Street” mostra
vocais à capela e dedilhados doces de piano iniciam a música, mas por pouco
tempo, porque ela logo explode com uma bateria pesada e rápida que a deixa rude
e agressiva, corroborando com riffs de guitarra. Mas o destaque realmente
centraliza na batida, quase que contínua, pesada da bateria.
E fecha, com chave de ouro,
com “Piece (Of My Heart)”, que já entrega, na sua introdução um solo direto, mas
bem elaborado de guitarra com uma camada de teclados que traz uma pegada
psicodélica. A realidade é que eles rivalizam salutarmente entregando um hard
psych na medida, na dosagem perfeita. Uma vibe ao estilo Jefferson Airplane.
Solos de guitarra, ao longo da faixa, são ouvidos com mais destreza e emoção e,
com isso, a música vai assumindo contornos de hard rock. Essa música foi
popularizada por Janis Joplin.
A banda, após o lançamento de
“Piece”, não teve uma longa vida. Chegou a gravar mais singles, cerca de quatro
músicas, como disse, mas se desfez em 1971. O tempo de vida muito curto e
precoce, lamentavelmente, levando-se em consideração o talento de seus músicos,
com uma sonoridade muito espirituosa, bem executada. Eram promissores e ficaram
apenas em um único álbum. Eles chegaram a se reunir novamente para gravar as
seções do segundo álbum, mas se separariam, em seguida.
Em 1972, o baixista Allan Sorensen e o baterista Peter Valentim se juntariam novamente para formar a banda RiverHorse. A título de curiosidade a origem e a inspiração para o nome da nova banda partiu de uma piada infantil dinamarquesa, que é: “O cavalo do rio tem algo ruim, então não entre”. Peter, que era baterista no Hair, queria mudar para o baixo no RiverHorse e Allan, que tocava baixo, migrou para a guitarra, como começou na sua carreira.
A banda foi muito ativa, entre
1972 e 1976, gravando cerca de 100 músicas, mas tiveram dificuldades para emplacar
ofertas de gravadoras dinamarquesas, que optavam por bandas que cantassem no
idioma local e em 1976 o RiverHorse sairia de cena. Mas voltaria em 1981 e
desde então está na ativa até os dias atuais, produzindo álbuns, fazendo shows
pela Dinamarca.
Em 2004 o selo Walhalla
Records faria o primeiro relançamento, no formato CD, de “Piece”, trazendo os
singles que foram lançados após o lançamento deste álbum. Teria também um
relançamento, também em CD, pelo selo Frost Records, licenciado pela EMI-Medley
Records. Há um livreto de 16 páginas escrito pelo crítico de rock dinamarquês
Torben Bille, contando a história da banda e da época. Há, porém, um
relançamento mais recente, de 2019, pela gravadora Mayfair, que vem com um LP
bônus de 25 minutos de seus singles.
A banda:
Paddy Gythfeldt no Órgão,
Guitarra, Vocal Principal
Benny Dyhr na Guitarra, vocal
Allan Sorensen no Baixo, vocal
Peter Valentin Rolnes na Bateria,
Percussão, vocal
Faixas:
1 - Coming Through
2 - Supermouth
3 - Dream Song
4 - Everything's Under Control
5 - Pleasant Street
6 - Piece (Of My Heart)