A cena progressiva italiana
sempre foi muito forte, criativamente falando. Os anos 1970 na Itália foram
difíceis em seu cenário político, com climas extremamente polarizados e
intensos, beirando a violência. E muitas bandas assumiram seus lados, gerando nos
shows embates tensos e intensos. Por conta desse caos político-partidário,
algumas bandas sucumbiram, sendo impedidas de tocar, muitas delas sumindo do
mapa, por questões ligadas também ao escasso apoio por parte da indústria
fonográfica.
Mas sempre foi prolífica.
Grandes álbuns foram lançados! Grandes trabalhos, mesmo que localmente,
ganharam peso, relevância e influenciaram. Apesar desse clima polarizado, de
violência que a Itália vivia nos anos 1970, as bandas eram amigas, se falavam,
tocavam juntas. A cena era forte e rica, apesar de ter tido bandas que
conseguiram seguir com certa longevidade discográfica.
E assim, com o passar do
tempo, o rock progressivo italiano só ganhou força, sobretudo nos anos 1990 com
uma nova e contundente safra, de bandas novas, trazendo um novo frescor, mas
nunca deixando de lado o trabalho desbravador das pioneiras dos anos de 1970.
Esse período ganhou força a cada banda que surgia, o interesse do público
aumentou cada vez mais.
Algumas bandas antigas,
sentindo o frenesi e a relevância dos novos tempos, ressurgiam, mas não
trazendo apenas a nostalgia de seu tempo, mas gravando novos materiais, fazendo
da cena noventista e posteriores um caldo de gerações que se harmonizavam
maravilhosamente.
E dessa forma a Itália,
mesmo que localmente, revela, a meu ver, uma forte consistência em sua cena
que, a cada dia, se fortalece, com um público que se renova em todos os
aspectos, na faixa etária também. E ainda assim há uma horda de bandas, seja no
passado ou presente, que sucumbiram e não tiveram as suas obras em evidência.
Porém graças a abnegados fãs
armados das redes sociais e seus canais de comunicação que ganham o mundo em
uma fração de segundos, as bandas ganham luz, luz ao rock obscuro para essas
bandas! E há uma que descobri dessa forma, garimpando, buscando nas entranhas,
nos porões do rock n’ roll, parte dele esquecido, vilipendiado ou que tiveram
suas expectativas dilaceradas pela má sorte do ostracismo.
E a banda em questão vem da região italiana do Vêneto, terra de ótimos vinhos solares e frutados, e se chamava I COCAI. A banda foi formada em 1970 e tinha, inicialmente, em sua formação Amedeo Biasutti (Theo), Pierluigi Pandiani (Gigi Pandy) e Luigi Turin (Tury). Em seguida, juntaram-se: Steny (Stefano) e Paul (Paolo), irmãos de Amedeo Biasutti, enquanto Gigi e Tury são primos.
Sim, os integrantes usavam pseudônimos, apelidos, pois, à época, não tinham o interesse de aparecer, de revelar suas identidades. A ideia era que, como nenhuma banda veneziana havia sido bem-sucedida, pensaram que, com “nomes estrangeiros”, pudessem “internacionalizar” a sua música, rompendo o casulo do Vêneto, mas, nesse quesito, estavam errados.
Como toda banda sem apoio e
no seu início tocou em vários clubes, pequenos, horríveis na sua estrutura, salões
de dança, típico na época de transição das décadas de 1960 e 1970, que tocavam
os beats italianos que estavam na crista da moda, festivais e concursos e a
cada evento, cada um com sua peculiaridade, a banda mudava de nome, então o I
Cocai se revelou, na sua gênese, com vários nomes, tais como: Draps, New Draps,
Baronetti e finalmente Cocai que, em dialeto veneziano, significa “gaivotas”.
O nome Baronetti foi
instituído em 1975, participando inclusive de alguns festivais e shows no
Vêneto, ganhando alguma discreta repercussão e o nome I Cocai foi definido
pouco antes do lançamento de seu único álbum, lançado em 1977, chamado “Piccolo
Grande Vecchio Fiume”, seu único álbum, inclusive.
A cena musical nos anos 1960 era dominada pela música popular italiana, com um pouco do beat italiano, com levadas psicodélicas, em moda em centros como os Estados Unidos, por exemplo e o progressivo, ainda muito embrionário, já no início dos anos 1970, vivia em uma espécie de gueto, muito limitado em meio estudantis e intelectuais que ansiava por novidades.
E assim o I Cocai foi construindo a sua música e que
acabou reverberando no seu único álbum: música comercial e radiofônica da
Itália, com algumas distorções de guitarra que o prog rock absorveu, com
instrumentos de sopro, como flauta e hammond engatilhado e frenético.
A sociedade, nos anos 1970,
a italiana, estava mudando, a política partidária polarizada e intensa
influenciava na música e nas suas letras, grandes movimentos de pensamento
afloraram e a música progressiva ganhou corpo e o I Cocai sentiu o turbilhão
dessas mudanças, embora a concretização de sua arte tenha surgido, se
materializado em seu álbum, tardiamente, apenas em 1977, sete anos depois de
seu nascimento para o mundo da música italiana.
A banda, ao longo desse tempo, apesar dos entraves, fez alguns shows e participaram de alguns eventos como o "Musica Jeans", em 1974, "Rosa d'oro", em 1975, "Cantaveneto 76", em 1976 com resultados pouco afáveis, digamos, sem aquele feedback por parte do público, afinal a suas apresentações eram, para variar, pouco ortodoxas.
Quanto aos shows a banda fez a sua primeira apresentação no Teatro Arsenale, em Veneza, tocando na Praça de São
Marcos dias depois do show da banda de Paul MacCartney, o Wings e mais para
frente, em 1975, no teatro Rondanini (Villa Del Conte) tiveram melhor
receptividade, talvez pelo fato de ser um evento “solo” e com interessados mais
bem definidos. Esses shows se tornaram corriqueiros após o lançamento de seu
álbum e até, por alguns momentos, as rádios FM tocavam as suas músicas talvez
levadas por um momento de visibilidade do estilo.
A gravação de “Piccolo
Grande Vecchio Fiume”sucederam-se com dias quentes da revolta estudantil, com
climas políticos de muita tensão, sobretudo na região da Bolonha, onde partiram
para gravar seu álbum. A cidade estava vigiada pela polícia e com confrontos em
todos os cantos da cidade. Chegaram ao estúdio “Fonit Cetra” e contaram com a
grande colaboração do técnico de som Maurizio Biancani, que mais tarde se
tornaria um dos melhores da Itália e isso se reflete na qualidade do som da
banda e do disco, em si.
E se depararam com um
problema, pelo menos o I Cocai considerou isso como um entrave a ser superado.
A banda teve que se isolar para gravar as suas partes (Studer 32) e eles, acostumados
com a proximidade, com os shows e o calor humano das bandas amigas e o público,
tiveram que superar isso e não deixar que o mesmo impactar no resultado final
do álbum. Reza a lenda que precisaram de beber aguardente de mel para encontrar
a concentração, o calor e a ênfase necessária para imprimir tal sentimento em
estúdio. Sempre difícil superar o palco!
No entanto, parece que se
saíram bem, afinal o resultado foi satisfatório, pois registraram as suas
músicas em 48 horas o que levaria meses, tendo em conta a complexidade de suas
músicas, porém levou um dia para mixar o que não permitiu cuidar com mais
afinco e detalhes dos timbres e ainda assim os custos foram altos, pesados.
O Cocai tinha um empresário
à época do lançamento de seu álbum, talvez um pouco antes, mas era muito
antiquado para a música que a banda fazia e atrofiado, culturalmente falando e
depois disso a banda decidiu se desfazer dele e seguiu se autoproduzindo. Os
obstáculos não residiram apenas no quesito empresarial, mas artístico também,
com relação ao vocal principal. A voz foi considerada “impópria” para o rock,
pois era melódica demais, até porque o Theo Byty, o vocalista principal tocava
à noite, para complementar a renda, covers de Deep Purple, Rolling Stones,
Beatles, King Crimson, Clapton etc, mas, “por sorte”, dominava também o
instrumento, pois tocava guitarra e teclados.
As letras foram escritas por
Flávio Zanin (Flanin), que era professor de história da arte e dono do Estúdio
Prisma (Studio Prisma) que supervisionou o trabalho da arte gráfica do álbum,
uma aquarela com “grãos de café e, para variar, foi um trabalho conceitual,
cujo tema contava a juventude de uma criança (o próprio Flanin) que havia vivenciado
a tragédia de Vajont. Deste "pequeno rio velho" (o Piave) que, numa
hora maldita, varreu aldeias inteiras e matou 1750 pessoas. Assim, o impacto
emocional em definir um tema tão trágico para a música foi considerável.
“Piccolo Grande Vecchio
Fiume”, quando concebido tinha a seguinte formação: Theo Byty (Amedeo Biasutti)
nos vocais principais, guitarra e Moog, Stheny (Stefano Biasutti) nos teclados,
Paul Blaise (Paolo Biasutti) no baixo, congas e vocais, Gigi Pandy (Pierluigi
Pandiani) na segunda guitarra, flauta e vocais e Tury (Luigi Turin) na bateria
e percussão. A faixa “La Mie Storie” teve a participação de outro baterista, de
nome Massimo Iannantuono, que foi, nos anos 1980, o baterista da banda Blues
Society de Guido Toffoletti.
O álbum é inaugurado por ”Milioni d'ani fa” que abre com ruídos, destruições, um momento certamente de tensão em
virtude do trágico tema e logo aparece uma textura sombria e densa de teclados,
me remetendo ao krautrock germânico, depois vem a bateria que cautelosamente
vai encorpando a música, mas com as teclas em segundo plano, mas bem evidentes,
com o vocal, baixo, discreto, quase sussurrante. Sem dúvida a faixa sintetiza a
teor trágico do tema. E assim segue, sem maiores novidades até trazer algo mais
radiofônico, as variâncias rítmicas se torna mais vivo nesse momento.
“La Mie Storie” chega basicamente da mesma forma com o protagonismo dos teclados em uma atmosfera densa e até, por vezes, contemplativa, com a bateria, ao fundo, trazendo vivacidade ao som, com a flauta remetendo a um distante folk rock. A música carrega o underground do prog rock com pitadas psicodélicas lembrando o Floyd com guitarras mais distorcidas.
“Dirò No!” começa mais solar, algo mais radiofônico, comercial, trazendo aquela música popular italiana, meio “macarrônica” dos anos 1960, mas melancólica, com um vibe um tanto quanto dramática.
“Piccolo Grande Vecchio Fiume" é solar, solos de guitarra altos, bem dedilhados, simples, mas altivos, com bateria seguindo o ritmo, ditando a dinâmica da faixa e o que ela entrega: energia e um viés comercial, evocando um pouco, mais uma vez, da música popular italiana dos anos 1960. Em alguns momentos traz um pouco da viajante “floydiana” com guitarras mais contemplativas e bem trabalhadas.
Segue com “Ti Amo Davvero” com a proposta mais voltada para o rock progressivo com uma introdução um tanto quanto introspectiva, os teclados corroborando essa textura, com um vocal límpido, intenso, com um nível alto de dramaticidade, típico da cultura musical da Itália.
“Le Mele Mature” continua na
seara progressiva enaltecendo um pouco do prog sinfônico remetendo um pouco ao
space rock, com uma pegada viajante e contemplativa. Sem sombra de dúvida uma
das melhores faixas do álbum.
E o nome da última faixa já
denuncia o seu belíssimo desfecho com “Conclusione” trazendo também aquela aura
sinfônica e toda a sua altivez com os teclados entregando uma textura arrojada
e complexa com as guitarras, em solos mais trabalhos, confirma essa atmosfera
intensa e poderosa.
A dissolução do I Cocai foi
determinada por vários motivos e em primeiro lugar deve-se colocar a história
musical dos seus integrantes. Tury e Gigi Pandy são frutos de uma formação rock
projetada, calcada em experimentação e pesquisa contínua enquanto os irmãos
Biasutti vieram de experiências melódicas e sendo donos de empresas, decidiram
se dedicar aos seus negócios, ao comércio, administrando lojas, hotéis e
restaurantes. E depois pela incompreensão da sua música pela conservadora
indústria fonográfica.
Tury e Gigi decidiram seguir na empreitada musical, Tury com muitas formações de músico de estúdio e até hoje ele está no mercado fonográfico, no mundo da música. Em 1979 Gigi gravou um álbum chamado “Irone”, onde todas as faixas foram escritas inteiramente por ele, bem como arranjadas e cantadas, assistidas por músicos importantes, incluindo o próprio Tury. Atualmente Gigi Pandy é cozinheiro em Veneza. “Piccolo Grande Vecchio Fiume” foi lançado, em 1977, em sua versão original em LP pelo selo “Style” e relançado, em formato CD, em 1994, pelo emblemático selo “Mellow” com a mesma arte gráfica.
A banda:
Theo Byty (Amedeo Biasutti)
nos vocais, guitarra e moog
Gigi Pandy (Pierluigi
Pandiani) na guitarra, flauta e vocais
Stheny (Stefano Biasutti)
nos teclados
Paul Blaise (Paolo Biasutti)
no baixo, percussão e vocais
Tury (Luigi Turin) na
bateria
Com:
Massimo Iannantuono na
bateria na faixa “La Mie Storie”
Faixas:
1 - Milioni d'ani fa
2 - La mie storie
3 - Diro no!
4 - Piccolo grande vecchio
fiume
5 - Ti amo davvero
6 - Le Mele Mature
7 - Conclusione
Nenhum comentário:
Postar um comentário