quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Crash - Cassette (1978 - 2019)

 

Lamentavelmente estamos vivendo em um patamar de péssimo gosto musical. Embora seja temeroso dizer isso, haja vista que a percepção musical é particular, é de cada um, admitamos que certas sonoridades são no mínimo discutíveis em sua qualidade. Sons rasos, cheio de rótulos, estereotipados, plastificados, um verdadeiro cenário desolador, capitaneado por um mercado tendencioso que, perverso, incute na mente das pessoas que aquele som, aquela música, aquela cena é a viável para as suas vidas.

Mas nem tudo é tão desolador e perigoso assim! Atualmente temos presenciado alguns selos, undergrounds, claro, que abnegados que são, tem trazido à luz rocks obscuros, esquecidos pelo tempo, engavetado pelo preconceito e graças ao advento das redes sociais e pela grande rede, tem disseminado esses lançamentos de bandas que, independentemente de sua época, sequer tiveram seus materiais lançados oficialmente.

E esse punhado de gravadoras, espalhadas pelo mundo, tem cavado fundo, levando poeiras que, grossas e pesadas, apagam o brilho de muitas sonoridades incríveis, bandas que teriam projeção, que tinham tudo para seguir suas trajetórias, suas histórias personificadas em seus álbuns e são esquecidas pelo tempo, pelo homem. E finalmente tem a chance de existir e catapultar as suas músicas por intermédio dos LPs, dos CDs.

Joias raras, brutas pelo massacre do tempo, são lapidadas pelos lançamentos, pelos engajamentos (palavra da moda) de apreciadores da boa música. A internet é o trampolim de tudo que nele é injetado para as massas ouvirem. Bem pode parecer estranho aliar a audição das massas às bandas obscuras que apresento neste blog, mas o fato é que se não teve tanto acesso no passado, difícil, hoje, mesmo que não atinja tantas pessoas, o cenário é mais benevolente para atingir a mais ouvidos e corações.

Sem mais delongas vou apresentar uma banda, claro, obscura, que descobri recentemente, movido pelas minhas incursões ao mundo maravilhoso do desconhecido, do lado negro do rock n’ roll e da viagem que representa o desbravar. E foi a apresentação, confesso, que me chamou a atenção: jazz rock fusion e melhor, da Polônia, fugindo um pouco dos grandes “centros” do rock no mundo. Falo da banda CRASH.

E quando a gente fala da Polônia, entre outras coisas, nos anos 1970, entre outras coisas, fala também da Cortina de Ferro e das censuras que os países do Leste Europeu sofreram com o governo de Moscou, na antiga União Soviética, na Guerra Fria, com as disputas ideológicas entre capitalismo e socialismo, disputas armamentistas e tudo o mais.

E nesse ambiente beligerante o Crash desenvolveu sua sonoridade e ainda assim conseguiu evoluir seu som e adquirir alguma visibilidade na cena jazz rock da Polônia. A música de fato rompe fronteiras e dilacera qualquer cenário político distorcido, nocivo e destrutivo, independente se é ou não a Cortina de Ferro, o sistema neoliberalista ou qualquer coisa que seja.

O Crash, ao longo dos anos 1970, se tornou uma das mais interessantes bandas da sua vertente sonora e tocou em alguns festivais europeus ganhando prêmios e, consequentemente, reconhecimento de um público, embora pequeno, mas ávido pelo estilo que desenvolviam muito bem. A banda, naquela década, também se apresentou com músicos importantes, como Sonny Rollins, saxofonista icônico norte-americano, que fez sua carreira, produtiva, no jazz.

E essa evolução da sonoridade da banda, que a fez edificar alguma credibilidade na cena polonesa e até mesmo em alguns países pelas quais passaram, se deu pelas inúmeras mudanças na sua formação ao longo dos anos 1970. Mas o que poderia ser um risco para a descaracterização de sua sonoridade, os músicos que entraram entregaram características únicas no som da banda.

Mesmo com a sua caminhada sendo feita de acordo, com shows em festivais, com reconhecimento de sua música, a banda sofreu com o ostracismo, com o pouco apoio e gravou apenas um trabalho, entre 1977 e 1978, mais precisamente na primavera de 1978, chamado, por alguns de “Cassette”. Agora creio que você, caro leitor, deve estar se perguntando o porquê do nome “Cassette”.

O Crash gravou as músicas que compuseram esse trabalho, no estúdio de uma rádio polonesa, em Opole, e lançada, diria de forma “artesanal”, em uma fita cassete, uma dessas fitas de áudio, pelo selo Wifon. É também chamada de “Kakadu: The Lost Tapes (1977-1978) ”, mas esse nome se fortaleceu quando o álbum foi lançado, no formato LP, em 2019, mas acalme-se, aclamado leitor, isso eu falarei logo mais...



O Crash, oriundo da cidade de Breslau, quando gravou “Cassette” era formado por: Władysław Kwaśnicki, no alto saxofone e soprano saxofone, Andrzej Pluszcz no baixo, Stanisław Zybowski na guitarra, Zbigniew Lewandowski na bateria e percussão, Juliusz Mazur no piano, sintetizador (moog), com Zbigniew Czwojda no trompete e Władysław Gawroński no designer e produção de álbum.

O álbum, como já denunciado, é uma incrível fusão entre jazz, rock n’ roll e rock progressivo, pinceladas com uma pegada de funk com viés dançante extremamente competente, sofisticado e orgânico. Percussão envolvente e solar, som penetrante do trompete, do saxofone, com riffs de guitarra intrigantes, por vezes pesado, com solos dedilhados que trazem à tona o jazz. Um típico jazz rock, mas muito inspirado, mostrando que a banda estava no seu auge criativo por desenvolver um som, ao mesmo tempo acessível e complexo.

O álbum é avassaladoramente inaugurado com a faixa “Koncowka Banderoli” que, no auge dos seus mais de nove minutos de duração já inicia com a bateria percussiva e marcada mostrando personalidade e peso, isso mesclado a uma pegada meio funk e soul e um dedilhado de guitarra que dá o tempero necessário para toda essa miscelânea sonora. Sim! Uma mistura que traz vários “humores” ao som dessa faixa, corroborando a sofisticação progressiva repleta de viradas, de mudanças rítmicas. Não podemos negligenciar o jazz rock com profundo destaque graças ao saxofone. Música impecável!

"Koncowka Banderoli"

“Kakadu” entra na sequência com riff de guitarra mais discreto, bem rudimentar, mas que se torna um portão de entrada para o jazz rock mais maduro e evidente, com uma vibe bem peculiar e animada que se configura com um piano solar e tocado de forma enérgica e frenética, diria. O Saxofone surge com dosagens potentes e diretas que “rivaliza” com o piano e que entrega, mais uma vez, aquelas “viradas” de ritmo mostrando a pegada progressiva ao som.

"Kakadu"

“Nocna Zabawa” começa mais animada, a guitarra, com seus dedilhados, é responsável por isso, juntamente com o baixo, que traz de volta a pegada mais funk e soul. Uma faixa com muito “balanço” e groove. Instrumentos de corda e de sopro em uma incrível simbiose sonora e ainda com direito a solos de bateria, cheio de viradas e de moog.

"Nocna Zabawa"

“Baraqua” traz de volta, sobretudo na sua introdução, o jazz, com destaque para o saxofone tocado de uma forma bem viajante e até mesmo lisérgica, algo de psicodélico incrementa a música. É uma pegada mais experimental no seu início, mas que irrompe para algo mais dançante e animado. A bateria encorpa a faixa, deixa ela mais pesada, em alguns momentos. Uma faixa cheia de “recursos sonoros”. “Trzy Po Cztery” começa inusitada! Algo como um progressivo sinfônico mesclado ao jazz rock, com riffs de guitarras um pouco mais altivo, sax em um tom mais alto, com solos de tirar o fôlego e um rock progressivo mais vivo e pleno, faz dessa música mais arrojada e intensa.

E fecha com a faixa “Akelei” que começa mais experimental e intimista, com bateria tocada de forma mais discreta e saxofone igualmente discreto. Mas surpreende por trazer, logo em seguida, algo mais “latino”, com percussão mais acentuada e que me fez lembrar até de bossa nova e samba rock, pasmem. Os apitos, ao fundo, parecem confirmar essa impressão.

Lamentavelmente o Crash não teve uma longeva vida e teve apenas esse registro que, ao ser gravado em fitas cassete, ficou escondida, esquecida nos escombros empoeirados do rock e nos arquivos do estúdio daquela rádio onde foram as faixas concebidas. A propósito a banda se reuniu com a cantora Grażyna Łobaszewska e lançou, em 1979, um álbum chamado “Senna opowieść Jana B.”, cujo álbum pode ser ouvido aqui. Traz, basicamente, uma sonoridade similar ao álbum que gravaram um ano antes, o “Cassette”. Porém depois disso nada mais gravaram e sumiram da cena musical polonesa.

Mas para a alegria dos apreciadores do jazz rock, do prog rock, em janeiro de 2019, o álbum foi remasterizado a partir das fitas originais encontradas nos arquivos da rádio polonesa em Opole e copiados, com precisão, sendo lançadas, no formato “LP”, com uma limitadíssima prensagem de 500 cópias, pelo selo Sound by Sound. Nesse lançamento de 2019 quatro gravações adicionais feitas por músicos em Opole, entre 1977 e 1987, foram adicionadas à lista de faixas. Há um livreto que apresenta um ensaio abrangente de Barnaba Siegel discutindo a história da banda e algumas fotos exclusivas de Wojciech Zawadzki.

Outro relançamento aconteceu em 2020, agora no formato “CD”, pelo selo GAD Records também aconteceu, brindando novamente os fãs de jazz rock que não tiveram a oportunidade de adquirir a versão em LP lançada um ano antes. Lançamentos assim para os colecionadores são oportunidades únicas para se ter, em sua estante, uma pérola da música, do rock polonês dos anos 1970, uma pérola mais do que recomendada do jazz rock.





A banda:

Władysław Kwaśnicki, no alto saxofone e soprano saxofone,

Andrzej Pluszcz no baixo,

Stanisław Zybowski na guitarra,

Zbigniew Lewandowski na bateria e percussão,

Juliusz Mazur no piano, sintetizador (moog)

Zbigniew Czwojda no trompete

 

Faixas:

1 - Koncowka Banderoli

2 - Kakadu

3 - Nocna Zabawa

4 - Baraqua

5 - Trzy Po Cztery

6 - Akelei



"Cassette" (1978) ou "Kakadu - Lost Tapes (1977-1978) - 2019"








 






















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