Julien Thomas era um pequeno
francês de 4 anos de idade e já tinha contato com o rock n’ roll. As
lembranças, embora antigas, estavam vivas em sua memória, das bandas e músicas
que ouvia em casa ou até mesmo no banco de trás de carro de sua família. E uma
banda, em especial, lhe marcou e muito. Esquecida, pouco conhecida, obscura na
cena musical francesa. Era o SATAN!
Dentre tantas bandas que
Julien, tão jovem, ouvia, o SATAN era a que mais ouvia em sua casa. E ele
ganhou, na realidade os seus pais, o único álbum da banda, gravado em um K7
simples pelo tecladista Jérôme Lavigne, um dos membros da banda e que nela
esteve de 1972 até 1976, ano em que foi extinta.
E foi com essa cópia que,
décadas depois, o Satan viveria a sua redenção! Na década de 1990, aquele
garotinho, que ouvia as músicas do Satan, entre outras bandas, no banco de trás
do carro dos seus pais, tornou-se um estudante do ensino médio e descobriu as
grandes bandas da cena progressiva mundial, como King Crimson, Magma, Genesis,
Pink Floyd etc.
Mas o que estava na mente dele,
era aquela banda, cujas músicas estavam gravadas naquele K7 simples, aquela
banda de nome tenebroso, mas de uma sonoridade cativante e envolvente: Satan!
Em uma galáxia musical, mais precisamente nos anos 1990, tomada por Gun’s N’
Roses, música eletrônica, grunge e a Eurodance, para um jovem avesso à essas
sonoridades, a incompreensão reinava em sua percepção de música.
Se colocou a pesquisar sobre o
Satan, buscou onde podia referências sobre ela em toda a parte: bibliotecas de
mídias, enciclopédia do rock francês... Nada! Nada! A difusão da internet veio,
talvez com ela Julien conseguisse buscar informações sobre a obscura banda, mas
nada mudou. Não se tinha vestígios daquela sonoridade que embalou a sua
infância por tanto tempo. Será que teria salvação para o Satan?
Chegou a óbvia conclusão de
que teria que fazer o exaustivo trabalho sozinho de reparar uma injustiça
histórica e trazer à luz o rock obscuro do Satan e tentar colocar a banda na
história do rock francês. O que teria acontecido com os jovens músicos do Satan
nos anos 1970? Ingenuidade, idealismo, a indústria fonográfica? O que o tornaram
anônimos?
Fundada em 1968, por
estudantes da école Normal du Mans sob o nome de “Heaven Road”, a começou, como
tantas outras, tocando covers de Colosseum, The Who, Jethro Tull, Soft Machine
entre outras que faziam sucesso na segunda metade dos anos 1960. Depois de um
tempo decidiram compor material próprio, explorando camadas experimentais e
atmosféricas, musicando poemas de Verlaine, Soleils, Couchants, por exemplo.
Depois de pouco mais três
anos, os futuros e promissores funcionários públicos deixaram de lado suas
carreiras emergentes como professores e as promessas de estabilidade no emprego
para se dedicarem integralmente à música. Em uma França no auge das revoltas
estudantis e dos movimentos sociais, parecia ser bem revolucionário sair da
“École Normale”.
E assim o foi. Os jovens
músicos, na faixa dos seus vinte anos, se estabeleceram em uma comunidade no
interior de Sarthe e passaram a viver a utopia do rock n’ roll. Uma vida ditada
pela moda, pela convicção, talvez não seja utopia...
Distante da civilização, em
uma espécie de “bolha impermeável”, a banda desenvolve sua identidade, por um
método peculiar de composição, com alicerce na “ilustração sonora”. E Macson,
ao conceder uma entrevista, explicou esse processo:
"Sempre
construímos nossas músicas a partir de um roteiro, um pouco como um filme.
Primeiro escrevemos uma história e adaptamos músicas e textos para ela".
A banda tinha uma ambição
latente e real de transmitir imagens e história por intermédio das músicas que
compunham e ainda tinha outro detalhe importante, outra característica marcante
que a banda tinha e que ficou exposta nas músicas que continham em seu único
álbum: texturas sonoras, mas bastante simples e pouco se fazia isso na cena
progressiva francesa! Talvez o Ange pudesse imprimir esse tipo de sonoridade,
mas o único talvez.
Apesar das dificuldades
financeiras da banda, da precária condição de vida e dos seus instrumentos
musicais, eles, com muita persistência, começaram a conquistar uma reputação
séria no palco e foi notado várias vezes durante as suas apresentações no Golf
Drouot, um templo parisiense do pop e do rock. O Heaven Road, o antigo Satan,
se tornou o “rei” do local, tornando-se o queridinho do dono da casa de show,
Henri Leproux.
Se aproximaram do produtor
Jacky Chalard, baixista da banda Dymasty Crisis, que na época abria para Michel
Polnareff. Com um pé no show-biz, o Heaven Road seguiu o conselho de seus
patrocinadores e decidiu adotar um nome francês para adequar ao mercado
fonográfico local, mais comerciável à época, com a esperança de galgar degraus,
buscar a fama. A lista submetida a eles se resumiu em dois nomes: “Sarah”, que
parecia algo meio glam ou andrógeno e “Satan”. A segunda opção foi escolhida no
verão de 1973. Macson, o guitarrista, argumentou o seguinte, em uma entrevista:
"Bem,
nós gostamos e então, como na época havia Ange que estava indo bem, pensamos
que isso poderia tornar possível fazer a troca".
Mas essa onda de surfar na
notoriedade da banda carro-chefe da cena rock da França e torcer o nariz para
ela e seu nome não seria, claro, bem recebida. Esse nome, em breve, seria uma
bola de ferro acorrentada em seus pés. E o gerente que os acompanhou por alguns
meses fez um grande alarde disso, fomentando sessões de fotos em cemitérios,
por exemplo, para personificar esteticamente o nome sombrio da banda adotado
recentemente. Fora outros detalhes sórdidos, como kits impressos descrevendo “o
mestre do inferno se expressando através da violência”, entre outros detalhes
subversivos.
Mas esse não era o desejo da
banda de buscar sucesso, tanto que, com a saída de seu gerente, os jovens
músicos insistiram mais nas noções de imaginação, devaneio e mistério, tema
esses já presentes em suas composições. E com isso sua produção de palco muda
também, com os caras subindo neste escuro, com apenas as lâmpadas dos
amplificadores e seus pregos fosforescentes como fontes de luz. As “peças” são
apresentadas como pinturas, apoiadas por projeção de vídeo. Eram verdadeiros
shows multimídia antes de seu tempo. E com isso, de volta ao Golf Drouot, em
dezembro de 1973, eles foram coroados com o curioso título de “melhor banda
semiprofissional francesa”.
Apesar das satisfatórias incursões em Paris, o Satan decidiu manter-se a distância desse glamour e volta a se isolar em sua fazenda. Porém na primavera de 1974 eles embarcaram em uma turnê com a banda Caravan, que já gozava de uma pequena notoriedade no embrionário “underground” da época. Mas a turnê se tornou um fracasso para ambas as bandas. Em Orléans o show foi boicotado por uma história sombria de rivalidade entre os organizadores, ocasionando a interrupção da turnê e o retorno à Inglaterra do Caravan, além da volta do Satan à Sarthe.
Levados ao limite e sem
fôlego, financeiramente falando, André “Macson” Beldent, guitarrista, Jerome
Lavigne, tecladista, Christian Savigny, baterista e Richard Fontaine, baixista,
os membros do Satan, criaram o “Ciel d'été”, um projeto paralelo que tinha a
intenção primordial de trazer dinheiro. E surtiu efeito! O Ciel d'été foi tão bem-sucedido
no oeste da França que os músicos acumularam dinheiro o bastante para comprar
equipamentos e, um ano depois, fazer uma residência de um mês no “Studio 20”,
em Angers. É nesse momento que o trabalho do Satan seria concebido.
Cinco dias por semana os
músicos trabalharam incansavelmente, fazendo e refazendo tomadas até obter o
resultado desejado. E finalmente com o rolo debaixo do braço, com as suas
músicas prontas o Satan retorna à Paris para oferecer seu álbum para as
gravadoras. Sem sucesso! Tentaram os relacionamentos que construíram, mas nada!
Questionaram, indagaram para si mesmos se as pessoas que receberam as cópias de
seu álbum realmente ouviram, mas logo se entediaram e, depois de mais três ou
quatro recusas, ainda com o projeto “Ciel d'été”, a banda deu o seu último
suspiro, em 1976.
O álbum que foi esquecido do
Satan trazia um “prog rock envenenado”, repleto de recursos sonoros, com uma
vibe jazzística e pegada pesada, lembrando, por vezes um hard rock. Um limiar
entre peso, prog, simplicidade, envolto em um som orgânico e complexidade,
devido a tamanha ousadia em trazer esses elementos e tirar deles uma massa
sonora incandescente e solar.
O álbum é inaugurado com a
faixa “Le Voyage” que tem como destaque as texturas de teclado que acompanham
uma seção rítmica frenética e solar, com solos diretos e pesados de guitarra,
tudo isso envolto uma atmosfera sideral, uma pegada space rock ao estilo Pink
Floyd. Uma faixa viajante e estilosa.
Segue com a faixa “OS” que
inicia com um vocal falado, mas logo entrega um teclado sombrio e depois mais
sinfônico, mostrando uma incrível versatilidade em um curto espaço de tempo na
música. As viradas rítmicas não param por aí: percebe-se uma vibe jazzística,
uma pegada mais hard, depois contemplativa, algo pastoral, depois fica mais
experimental e soturno. O vocal retorna com risadas doentias e paranoicas.
Definitivamente é uma faixa sombria e estranha.
“Le Robot” começa com riffs
mais pesados de guitarra com teclados tendendo para o progressivo sinfônico e
que me remeteu imediatamente ao krautrock e o rock progressivo britânico. Pode
parecer uma “mistura” improvável, mas essa é a percepção. O vocal entra e uma
pegada mais viajante e estranha se faz ouvida. Essa proposta mais viajante se
une aos riffs mais pesados de guitarra e formam um contraste envolvente e
intrigante, ao mesmo tempo. Uma das melhores faixas do álbum.
“La Nuit Des Temps”, a faixa
mais longa do álbum, começa com um ruído meio sideral e sombrio, mas logo fica
solar e deslumbrante com um lindo e límpido solo de guitarra, mas não por muito
tempo. Os teclados tornam a música mais experimental e minimalista, com a
“cozinha” rítmica ditando o humor da música. Bateria delicada e bem executada,
baixo pulsante. Entre momentos mais soturnos e solares, a música se revela
versátil e cheia de mudanças de tempo. Excelente!
E fecha com a faixa “L’Aigle”
que inicia com uma pegada folk, ao estilo pagão de ser, uma pegada celta, com
uma atmosfera sombria e ameaçadora, mas logo é “encorpada” com o progressivo
sinfônico e depois algo mais psicodélico, um beat que nos remete aos anos 1960.
Inacreditável como a versatilidade aliado à simplicidade se faz presente nesta
e nas demais músicas do único álbum do Satan.
Voltando a Julien e já adulto
ele relatou, também em entrevista que concedeu, que o Satan tomou o caminho ao
contrário:
"...porque
quando uma banda chamava a atenção, a gravadora primeiro a confiava a um
diretor artístico que orientava o trabalho, que procedia com uma espécie de
formatação para que fosse mais assim ou aquilo, para que pudesse ser tocada no
rádio, etc. Eles gravaram primeiro, era arriscado. E então, talvez devamos
reconhecer uma falta de combatividade da parte deles, em comparação com uma
indústria que já havia feito o suco desse tipo. Basicamente, havia o Ange que
vendia muito e então todas as gravadoras tinham sua banda progressiva como
Magma ou Mona Lisa..., mas atrás deles, as portas estavam fechadas. Você também
tem que lembrar que bandas como Magma ou Gong estavam morrendo de fome na
época! Comercialmente, o gênero estava em declínio e Satan chegou no final da
onda, no momento em que o negócio estava começando a mudar para a onda
rock/punk que veria o surgimento de artistas como Little Bob, Bijou,
Starshooter, Téléphone, Asphalt Jungle... A cena estava mudando e eles
realmente chegaram à dobradiça”.
De acordo com o baterista da
banda, Christian “Kicks” Sauvigny, que mais tarde faria carreira como produtor
e programador musical no rádio (Chérie FM, Europe 2, Nostalgie...), o “máster”
original do álbum foi colocado em segurança em um cofre de banco. O que resta
saber é: Em qual banco? Em qual cidade? Ninguém sabe, ninguém soube de
absolutamente nada! O carretel, com as gravações da música nunca ressurgiu. Os
demais membros da banda não tinham mais uma cópia, nem mesmo o Studio 20, em
Angers, onde foram gravadas as músicas, não tinha nada arquivado.
O baterista Savigny tinha uma
cópia, a única conhecida, até então. Foi ele quem falou sobre o Satan pela
primeira vez para Serge Vincendet, dono da loja de discos e gravadora de Paris,
a Monster Melodies, especializada nesse tipo de pequenos “tesouros” perdidos,
obscuros. Mas a fita estava em condições precárias, praticamente destruídas.
Mas é nesse momento que entra
na história Julien. Julien, com seu antigo K7, agora digitalizado no estúdio,
feito no início dos anos 2000, tentou se aproximar de algumas marcas
especializadas, principalmente na França e na Itália. Mas o risco financeiro parecia
demais para ele, afinal uma banda virtualmente desconhecida da qual ninguém
tinha ouvido falar. Uma coisa levando a outra e o encontro finalmente
aconteceu, em outubro de 2015, entre Julien, aquele ex-adolescente fã de Satan
e o chefe da Monster Melodies.
A famosa cópia que o menino
Julien ouvia na casa dos pais, no banco de trás de seu carro foi usada para a
gravação do álbum no formato vinil. Com uma tiragem de 1.000 cópias, o LP do
Satan, homônimo, que apresenta cinco das sete faixas gravadas em 1975, foi
distribuído em lugares distantes da França, como Espanha, Alemanha, Holanda,
Itália e até mesmo os Estados Unidos.
A persistência e os encontros
fizeram com que algo, totalmente perdido e improvável para ganhar a luz, veio a
vida quarenta anos depois de sua concepção. Um belo consolo para o fundador do
Satan, o guitarrista André “Macson” Beldent que, até hoje, ainda vive uma vida
intensa de rock n’ roll, no auge dos seus quase 75 anos de idade, com sua banda
de blues tocando todo fim de semana em bares.
Como esperar um efeito positivo, no que tange ao seu lançamento, quarenta anos depois, de uma música que pouco se encaixaria atualmente, mas que ganhou, mesmo que tardiamente a sua redenção tardia, embora a banda jamais iria tirar proveito de seu verdadeiro valor sonoro. Richard “Sam” Fontaine se afastou da música e as últimas informações que pude obter, buscando na web sobre a banda, é de que estaria muito doente. Quanto o tecladista Jérôme Lavigne, seu fim foi trágico. O mesmo se suicidaria em 1987, alguns anos após ter entregado a cópia, o K7, ao jovem Julien que possibilitou livrar o Satan do “purgatório” e do esquecimento eterno.
Se você quiser ouvir o álbum
na íntegra com mais duas faixas que não entraram no lançamento pelo selo
Monster Melodies, clique aqui. Há também um show da banda, de 1974, que pode
ser ouvido aqui. Há reportagens também do Satan, afinal esse é o canal do YouTube
de Julien Thomas.
A banda:
André “Macson” Beldent na
guitarra
Jérôme Lavigne nos teclados
Christian Savigny na bateria
Richard “Sam” Fontaine no baixo
e vocal
Faixas:
1 - Le Voyage
2 - O.S.
3 - Le Robot
4 - La Nuit Des Temps
5 - L'aigle
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