sábado, 12 de abril de 2025

Satan - Satan (1975 - 2016)

 

Julien Thomas era um pequeno francês de 4 anos de idade e já tinha contato com o rock n’ roll. As lembranças, embora antigas, estavam vivas em sua memória, das bandas e músicas que ouvia em casa ou até mesmo no banco de trás de carro de sua família. E uma banda, em especial, lhe marcou e muito. Esquecida, pouco conhecida, obscura na cena musical francesa. Era o SATAN!

Dentre tantas bandas que Julien, tão jovem, ouvia, o SATAN era a que mais ouvia em sua casa. E ele ganhou, na realidade os seus pais, o único álbum da banda, gravado em um K7 simples pelo tecladista Jérôme Lavigne, um dos membros da banda e que nela esteve de 1972 até 1976, ano em que foi extinta.

E foi com essa cópia que, décadas depois, o Satan viveria a sua redenção! Na década de 1990, aquele garotinho, que ouvia as músicas do Satan, entre outras bandas, no banco de trás do carro dos seus pais, tornou-se um estudante do ensino médio e descobriu as grandes bandas da cena progressiva mundial, como King Crimson, Magma, Genesis, Pink Floyd etc.

Mas o que estava na mente dele, era aquela banda, cujas músicas estavam gravadas naquele K7 simples, aquela banda de nome tenebroso, mas de uma sonoridade cativante e envolvente: Satan! Em uma galáxia musical, mais precisamente nos anos 1990, tomada por Gun’s N’ Roses, música eletrônica, grunge e a Eurodance, para um jovem avesso à essas sonoridades, a incompreensão reinava em sua percepção de música.

Se colocou a pesquisar sobre o Satan, buscou onde podia referências sobre ela em toda a parte: bibliotecas de mídias, enciclopédia do rock francês... Nada! Nada! A difusão da internet veio, talvez com ela Julien conseguisse buscar informações sobre a obscura banda, mas nada mudou. Não se tinha vestígios daquela sonoridade que embalou a sua infância por tanto tempo. Será que teria salvação para o Satan?

Chegou a óbvia conclusão de que teria que fazer o exaustivo trabalho sozinho de reparar uma injustiça histórica e trazer à luz o rock obscuro do Satan e tentar colocar a banda na história do rock francês. O que teria acontecido com os jovens músicos do Satan nos anos 1970? Ingenuidade, idealismo, a indústria fonográfica? O que o tornaram anônimos?

Fundada em 1968, por estudantes da école Normal du Mans sob o nome de “Heaven Road”, a começou, como tantas outras, tocando covers de Colosseum, The Who, Jethro Tull, Soft Machine entre outras que faziam sucesso na segunda metade dos anos 1960. Depois de um tempo decidiram compor material próprio, explorando camadas experimentais e atmosféricas, musicando poemas de Verlaine, Soleils, Couchants, por exemplo.

Depois de pouco mais três anos, os futuros e promissores funcionários públicos deixaram de lado suas carreiras emergentes como professores e as promessas de estabilidade no emprego para se dedicarem integralmente à música. Em uma França no auge das revoltas estudantis e dos movimentos sociais, parecia ser bem revolucionário sair da “École Normale”.

E assim o foi. Os jovens músicos, na faixa dos seus vinte anos, se estabeleceram em uma comunidade no interior de Sarthe e passaram a viver a utopia do rock n’ roll. Uma vida ditada pela moda, pela convicção, talvez não seja utopia...

Satan

Distante da civilização, em uma espécie de “bolha impermeável”, a banda desenvolve sua identidade, por um método peculiar de composição, com alicerce na “ilustração sonora”. E Macson, ao conceder uma entrevista, explicou esse processo:

"Sempre construímos nossas músicas a partir de um roteiro, um pouco como um filme. Primeiro escrevemos uma história e adaptamos músicas e textos para ela".

A banda tinha uma ambição latente e real de transmitir imagens e história por intermédio das músicas que compunham e ainda tinha outro detalhe importante, outra característica marcante que a banda tinha e que ficou exposta nas músicas que continham em seu único álbum: texturas sonoras, mas bastante simples e pouco se fazia isso na cena progressiva francesa! Talvez o Ange pudesse imprimir esse tipo de sonoridade, mas o único talvez.

Apesar das dificuldades financeiras da banda, da precária condição de vida e dos seus instrumentos musicais, eles, com muita persistência, começaram a conquistar uma reputação séria no palco e foi notado várias vezes durante as suas apresentações no Golf Drouot, um templo parisiense do pop e do rock. O Heaven Road, o antigo Satan, se tornou o “rei” do local, tornando-se o queridinho do dono da casa de show, Henri Leproux.

Se aproximaram do produtor Jacky Chalard, baixista da banda Dymasty Crisis, que na época abria para Michel Polnareff. Com um pé no show-biz, o Heaven Road seguiu o conselho de seus patrocinadores e decidiu adotar um nome francês para adequar ao mercado fonográfico local, mais comerciável à época, com a esperança de galgar degraus, buscar a fama. A lista submetida a eles se resumiu em dois nomes: “Sarah”, que parecia algo meio glam ou andrógeno e “Satan”. A segunda opção foi escolhida no verão de 1973. Macson, o guitarrista, argumentou o seguinte, em uma entrevista:

"Bem, nós gostamos e então, como na época havia Ange que estava indo bem, pensamos que isso poderia tornar possível fazer a troca".

Mas essa onda de surfar na notoriedade da banda carro-chefe da cena rock da França e torcer o nariz para ela e seu nome não seria, claro, bem recebida. Esse nome, em breve, seria uma bola de ferro acorrentada em seus pés. E o gerente que os acompanhou por alguns meses fez um grande alarde disso, fomentando sessões de fotos em cemitérios, por exemplo, para personificar esteticamente o nome sombrio da banda adotado recentemente. Fora outros detalhes sórdidos, como kits impressos descrevendo “o mestre do inferno se expressando através da violência”, entre outros detalhes subversivos.

Mas esse não era o desejo da banda de buscar sucesso, tanto que, com a saída de seu gerente, os jovens músicos insistiram mais nas noções de imaginação, devaneio e mistério, tema esses já presentes em suas composições. E com isso sua produção de palco muda também, com os caras subindo neste escuro, com apenas as lâmpadas dos amplificadores e seus pregos fosforescentes como fontes de luz. As “peças” são apresentadas como pinturas, apoiadas por projeção de vídeo. Eram verdadeiros shows multimídia antes de seu tempo. E com isso, de volta ao Golf Drouot, em dezembro de 1973, eles foram coroados com o curioso título de “melhor banda semiprofissional francesa”.

Apesar das satisfatórias incursões em Paris, o Satan decidiu manter-se a distância desse glamour e volta a se isolar em sua fazenda. Porém na primavera de 1974 eles embarcaram em uma turnê com a banda Caravan, que já gozava de uma pequena notoriedade no embrionário “underground” da época. Mas a turnê se tornou um fracasso para ambas as bandas. Em Orléans o show foi boicotado por uma história sombria de rivalidade entre os organizadores, ocasionando a interrupção da turnê e o retorno à Inglaterra do Caravan, além da volta do Satan à Sarthe.

Levados ao limite e sem fôlego, financeiramente falando, André “Macson” Beldent, guitarrista, Jerome Lavigne, tecladista, Christian Savigny, baterista e Richard Fontaine, baixista, os membros do Satan, criaram o “Ciel d'été”, um projeto paralelo que tinha a intenção primordial de trazer dinheiro. E surtiu efeito! O Ciel d'été foi tão bem-sucedido no oeste da França que os músicos acumularam dinheiro o bastante para comprar equipamentos e, um ano depois, fazer uma residência de um mês no “Studio 20”, em Angers. É nesse momento que o trabalho do Satan seria concebido.

Ciel D'Été antes e atualmente

Ciel D'Été - "Father of Night, Fight of Day"

Cinco dias por semana os músicos trabalharam incansavelmente, fazendo e refazendo tomadas até obter o resultado desejado. E finalmente com o rolo debaixo do braço, com as suas músicas prontas o Satan retorna à Paris para oferecer seu álbum para as gravadoras. Sem sucesso! Tentaram os relacionamentos que construíram, mas nada! Questionaram, indagaram para si mesmos se as pessoas que receberam as cópias de seu álbum realmente ouviram, mas logo se entediaram e, depois de mais três ou quatro recusas, ainda com o projeto “Ciel d'été”, a banda deu o seu último suspiro, em 1976.

O álbum que foi esquecido do Satan trazia um “prog rock envenenado”, repleto de recursos sonoros, com uma vibe jazzística e pegada pesada, lembrando, por vezes um hard rock. Um limiar entre peso, prog, simplicidade, envolto em um som orgânico e complexidade, devido a tamanha ousadia em trazer esses elementos e tirar deles uma massa sonora incandescente e solar.

O álbum é inaugurado com a faixa “Le Voyage” que tem como destaque as texturas de teclado que acompanham uma seção rítmica frenética e solar, com solos diretos e pesados de guitarra, tudo isso envolto uma atmosfera sideral, uma pegada space rock ao estilo Pink Floyd. Uma faixa viajante e estilosa.

"Le Voyage"

Segue com a faixa “OS” que inicia com um vocal falado, mas logo entrega um teclado sombrio e depois mais sinfônico, mostrando uma incrível versatilidade em um curto espaço de tempo na música. As viradas rítmicas não param por aí: percebe-se uma vibe jazzística, uma pegada mais hard, depois contemplativa, algo pastoral, depois fica mais experimental e soturno. O vocal retorna com risadas doentias e paranoicas. Definitivamente é uma faixa sombria e estranha.

“Le Robot” começa com riffs mais pesados de guitarra com teclados tendendo para o progressivo sinfônico e que me remeteu imediatamente ao krautrock e o rock progressivo britânico. Pode parecer uma “mistura” improvável, mas essa é a percepção. O vocal entra e uma pegada mais viajante e estranha se faz ouvida. Essa proposta mais viajante se une aos riffs mais pesados de guitarra e formam um contraste envolvente e intrigante, ao mesmo tempo. Uma das melhores faixas do álbum.

"Le Robot"

“La Nuit Des Temps”, a faixa mais longa do álbum, começa com um ruído meio sideral e sombrio, mas logo fica solar e deslumbrante com um lindo e límpido solo de guitarra, mas não por muito tempo. Os teclados tornam a música mais experimental e minimalista, com a “cozinha” rítmica ditando o humor da música. Bateria delicada e bem executada, baixo pulsante. Entre momentos mais soturnos e solares, a música se revela versátil e cheia de mudanças de tempo. Excelente!

"Las Nuits des Temps"

E fecha com a faixa “L’Aigle” que inicia com uma pegada folk, ao estilo pagão de ser, uma pegada celta, com uma atmosfera sombria e ameaçadora, mas logo é “encorpada” com o progressivo sinfônico e depois algo mais psicodélico, um beat que nos remete aos anos 1960. Inacreditável como a versatilidade aliado à simplicidade se faz presente nesta e nas demais músicas do único álbum do Satan.

"L'Aigle"

Voltando a Julien e já adulto ele relatou, também em entrevista que concedeu, que o Satan tomou o caminho ao contrário:

"...porque quando uma banda chamava a atenção, a gravadora primeiro a confiava a um diretor artístico que orientava o trabalho, que procedia com uma espécie de formatação para que fosse mais assim ou aquilo, para que pudesse ser tocada no rádio, etc. Eles gravaram primeiro, era arriscado. E então, talvez devamos reconhecer uma falta de combatividade da parte deles, em comparação com uma indústria que já havia feito o suco desse tipo. Basicamente, havia o Ange que vendia muito e então todas as gravadoras tinham sua banda progressiva como Magma ou Mona Lisa..., mas atrás deles, as portas estavam fechadas. Você também tem que lembrar que bandas como Magma ou Gong estavam morrendo de fome na época! Comercialmente, o gênero estava em declínio e Satan chegou no final da onda, no momento em que o negócio estava começando a mudar para a onda rock/punk que veria o surgimento de artistas como Little Bob, Bijou, Starshooter, Téléphone, Asphalt Jungle... A cena estava mudando e eles realmente chegaram à dobradiça”.

De acordo com o baterista da banda, Christian “Kicks” Sauvigny, que mais tarde faria carreira como produtor e programador musical no rádio (Chérie FM, Europe 2, Nostalgie...), o “máster” original do álbum foi colocado em segurança em um cofre de banco. O que resta saber é: Em qual banco? Em qual cidade? Ninguém sabe, ninguém soube de absolutamente nada! O carretel, com as gravações da música nunca ressurgiu. Os demais membros da banda não tinham mais uma cópia, nem mesmo o Studio 20, em Angers, onde foram gravadas as músicas, não tinha nada arquivado.

O baterista Savigny tinha uma cópia, a única conhecida, até então. Foi ele quem falou sobre o Satan pela primeira vez para Serge Vincendet, dono da loja de discos e gravadora de Paris, a Monster Melodies, especializada nesse tipo de pequenos “tesouros” perdidos, obscuros. Mas a fita estava em condições precárias, praticamente destruídas.

Mas é nesse momento que entra na história Julien. Julien, com seu antigo K7, agora digitalizado no estúdio, feito no início dos anos 2000, tentou se aproximar de algumas marcas especializadas, principalmente na França e na Itália. Mas o risco financeiro parecia demais para ele, afinal uma banda virtualmente desconhecida da qual ninguém tinha ouvido falar. Uma coisa levando a outra e o encontro finalmente aconteceu, em outubro de 2015, entre Julien, aquele ex-adolescente fã de Satan e o chefe da Monster Melodies.

A famosa cópia que o menino Julien ouvia na casa dos pais, no banco de trás de seu carro foi usada para a gravação do álbum no formato vinil. Com uma tiragem de 1.000 cópias, o LP do Satan, homônimo, que apresenta cinco das sete faixas gravadas em 1975, foi distribuído em lugares distantes da França, como Espanha, Alemanha, Holanda, Itália e até mesmo os Estados Unidos.

A persistência e os encontros fizeram com que algo, totalmente perdido e improvável para ganhar a luz, veio a vida quarenta anos depois de sua concepção. Um belo consolo para o fundador do Satan, o guitarrista André “Macson” Beldent que, até hoje, ainda vive uma vida intensa de rock n’ roll, no auge dos seus quase 75 anos de idade, com sua banda de blues tocando todo fim de semana em bares.

Como esperar um efeito positivo, no que tange ao seu lançamento, quarenta anos depois, de uma música que pouco se encaixaria atualmente, mas que ganhou, mesmo que tardiamente a sua redenção tardia, embora a banda jamais iria tirar proveito de seu verdadeiro valor sonoro. Richard “Sam” Fontaine se afastou da música e as últimas informações que pude obter, buscando na web sobre a banda, é de que estaria muito doente. Quanto o tecladista Jérôme Lavigne, seu fim foi trágico. O mesmo se suicidaria em 1987, alguns anos após ter entregado a cópia, o K7, ao jovem Julien que possibilitou livrar o Satan do “purgatório” e do esquecimento eterno. 

Se você quiser ouvir o álbum na íntegra com mais duas faixas que não entraram no lançamento pelo selo Monster Melodies, clique aqui. Há também um show da banda, de 1974, que pode ser ouvido aqui. Há reportagens também do Satan, afinal esse é o canal do YouTube de Julien Thomas.




A banda:

André “Macson” Beldent na guitarra

Jérôme Lavigne nos teclados

Christian Savigny na bateria

Richard “Sam” Fontaine no baixo e vocal


Faixas:

1 - Le Voyage

2 - O.S.

3 - Le Robot

4 - La Nuit Des Temps

5 - L'aigle

 



"Satan" (1975 - 2016)


























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