terça-feira, 29 de outubro de 2024

Eneide - Uomini Umili Popoli Liberi (1972 - 1990)


Será que podemos considerar as bandas que lançam apenas um álbum, que são muitas espalhadas por esse mundo, de ruins? O que ocasiona a precocidade desses momentos? Quais são os fatores? É predominantemente incompetência das bandas de gerir a sua música e carreira? Ou apenas um azar comercial que impede de a banda seguir com a sua trajetória musical?

Cada banda traz uma realidade diferente e cabe a este reles e humilde blog trazer o máximo possível dessas histórias que definitivamente são ricas e que são verdadeiros exemplos de amor à sua música, de reverência a sua verdade sonora, mesmo que o fracasso comercial venha à tona, muitas vezes, de forma visceral.

E, para variar, vou trazer uma história de uma banda italiana que gravou apenas um álbum e ainda com um agravante: não foi lançado no ano de sua gravação e, por anos, hibernou esquecida nos porões do rock n’ roll assumindo a condição de obscuridades. Falo da banda ENEIDE.

Os primórdios da banda se deu na cidade de Pádua, no início dos anos 1970 e tinha o nome de “Sensazioni” e os integrantes dessa embrionária banda eram muito jovens, adolescentes, diria, e estavam na faixa dos 14 anos de idade! Tinha na formação o baixista e líder do projeto Romeo Pegoraro, o baterista Diego Moreno e o cantor e guitarrista Gianluigi Cavaliere.

Adriano Pegoraro, que era guitarrista, flautista e saxofonista, era amigo de Romeo e fazia parte de uma banda chamada “Dragoni” (sua música foi influência da futura Eneide), foi convencido a fazer parte do Sensazioni, dispensando o guitarrista Gabriele Trevisan e efetivando um tecladista chamado Antonio Venturini.

A banda estava formada, mas o nome mudou para “Eneide Pop 70” e começou a tocar em clubes locais, lugares pequenos, acanhados e de estrutura simples, tocando covers de bandas italianas e estrangeiras, como Led Zeppelin, Vanilla Fudge, King Crimson etc. além de tocar algum material autoral que já possuíam. Os problemas com a rotatividade de integrantes começaram a dar problemas e o teclacista Antonio Venturini foi o primeiro a sair do Eneide Pop. Ele não convenceu nos teclados. Decidiram procurar por outro músico efetivaram um tecladista mais conhecido chamado Carlo Barnini, que era da banda “Stato d’Animo”.

A partir daí parecia que a sorte começava a sorrir para os meninos do Eneide Pop, quando em 1972 um empresário de nome Luciano Tosetto, encarregado de organizar turnês de grandes bandas na Itália viu o Eneide Pop tocar em um show local e os convidou para participar de alguns festivais que estavam em voga na Itália àquela época.

Os jovens músicos do Eneide chegaram a tocar, nesses festivais, com bandas do naipe do Premiata Forneria Marconi, Banco del Mutuo Soccorso, Delirium, Formula 3 e muitas outras. Nova mudança ocorreu no nome da banda, encurtando para apenas “Eneide” e, nesse momento, ocorreu o ápice desses jovens músicos, tocando ao lado dos já figurões da música progressiva mundial, os ingleses Genesis e Atomic Rooster e dando suporte ao Van der Graaf Generator em seis datas de sua turnê pela Itália. Sem dúvida um momento importante para mostrar o seu trabalho autoral que já era a intenção principal da banda, deixando de lado os covers de bandas famosas.

O Eneide, nesta época, contava com a seguinte formação: Gianluigi Cavaliere, nos vocais e guitarra, Adriano Pegoraro, na guitarra, flauta e vocal, Carlo Barnini, teclados e vocal, Romeo Pegoraro, no baixo e vocal e o baterista Moreno Diego Polato. Com essas apresentações em festivais italianos e sendo suporte para bandas como Genesis, Atomic Rooster e Van der Graaf Generator e as suas intensas apresentações na cena undergroud de Pádova e Veneza, em 1972 Maurizio salvadori e Luciano Tosetto, da agência de show milanesa, Trident, perceberam que a banda tinha potencial e os contrataram.

Eneide

A Trident era uma produtora de shows, mas queria se aventurar como gravadora e o Eneide talvez tenha sido uma das primeiras bandas a ser contratada por jovem selo de Milão. A popularidade adquirida graças a esses shows e as intensas apresentações em clubes locais fizeram com que a Trident não apenas o contratasse, mas que gravassem um álbum.

A banda já tinha música autoral o suficiente para gravar o seu debut e estavam, evidentemente, animados com a possibilidade de trazer à vida o seu primeiro trabalho, ainda muito jovens, na faixa dos 16 e 17 anos! Muito jovens e já com um currículo invejável. Então, em 1972, entre os meses de setembro e novembro entraram em estúdio para realizar seus sonhos: gravar o seu primeiro álbum.

Tudo correu bem, todos os trâmites de gravação tiveram sua sequência realizada sem maiores problemas. Mas por uma razão misteriosa, estranha mesmo, o álbum, intitulado “Uomini Umili Popoli Liberi”, não foi lançado naquele ano. Reza a lenda que a empreitada da jovem gravadora Trident não vingou, simplesmente faliu.

Porém, à época da sua fundação, sempre foi produtora de shows, quatro bandas foram contratadas para lançar seu álbum no jovem selo da Trident. Foram eles: o primeiro do Dedalus, homônimo, o “Time of Change”, do The Trip e o debut do Semiramis “Dedicato a Frazz”. Todos foram lançados oficialmente, mas não o álbum do Eneide. Simplesmente as cópias não foram impressas, apesar de as matrizes já terem sido prontas há algum tempo, o que torna a situação ainda mais estranha.

Independentemente do que aconteceu, o que teria ocasionado com o engavetamento do trabalho inaugural do Eneide, o fato foi que esse lamentável ocorrido, foi um duro golpe para promover a banda e acabou obrigando os jovens músicos a se refugiar em outro lugar. Primeiro abriu as datas do cantor Maurizio Arcieri (na época ainda em fase melódica), tocando as suas músicas e um set com o material do Eneide e depois se tornando sua banda de apoio até que, em 1974, o Eneide se dissolveu completamente, saindo de cena de forma melancólica, abrupta e triste. Muitos também atribuem esse precoce fim, não apenas em decorrência do não lançamento de seu álbum por conta da falência da Trident, em 1975, mas a incompetência da própria banda, de gerir-se. Mas quem irá saber?

Mas aqui não é o fim, afinal, precisamos falar de “Uomini Umili Popoli Liberi” e da sua qualidade sonora que é, sim, inquestionável para àquela época mágica do rock progressivo italiano, sobretudo na primeira metade dos anos 1970. Porém cabe ressaltar que o único trabalho do Eneide não continha elementos progressivos de forma majoritária. 

As faixas, com duração, em média de 4 minutos de duração, tinham estruturas básicas, que variava de uma mistura de baladas acústicas, além de pegadas psicodélicas e de blues. Os instrumentos dominantes no álbum são os teclados e a guitarra, embora a flauta também tenha destaque, sem contar com o vocalista principal que tinha um tom áspero e grave, mas cantando com sentimento e aquele toque de dramaticidade típico dos cantores italianos.

“Uomini Umili Popoli Liberi” traz jams de rock estilo “garage” com toques bem suculentos e enérgicos, com ritmos até agressivos, bastante convencionais, flertando, como disse, com o classic rock, prog rock e hard rock. Diria que, embora seja um álbum básico, traz um leque de opções sonoras o tornando um trabalho versátil e diversificado que pode atingir a todos os ouvintes com suas predileções musicais. Mas ainda tem algo a apresentar, sobretudo nos momentos mais suaves, com o uso do violoncelo e flauta realçando esse momento. 

Mas não se enganem, prezados leitores, que há essa separação de ambientes no som do único álbum do Eneide, é possível ouvir, entre as dez faixas do trabalho, riffs pesados de guitarra, melodias de teclados e intervenções preciosas de flauta. Trata-se de um álbum muito maduro, levando em consideração que os músicos eram muito jovens à época.

A faixa inaugural é “Cantico Alle Stelle-Traccia 1” que começa um tanto quanto pastoral quando os vocais se juntam, trazendo também alguns sons do violino. Trata-se de uma abertura melódica, diria sinfônica, simples. Na segunda parte da música o hammond ganha destaque levando a música a territórios mais próximo do rock progressivo.

"Cantico Alle Stelle-Tracia I"

Segue com “Il Male” que é uma faixa decididamente mais enérgica que a anterior. A bateria e os teclados são liderados por vocais agressivos e poderosos, com alto alcance, inclusive. Essa condição entrega uma faixa mais voltada para o hard rock, quando é interrompido ou melhor, suavizado pelo uso da flauta que lembra um pouco a banda Delirium. Guitarras e sintetizadores são os destaques nessa faixa, com a bateria trazendo o ritmo, conduzindo-o.

"Il Male"

“Non Voglio Catene” é a música que mais se aproxima dos estilos progressivos que eram executados à época e a única que ultrapassa os 5 minutos de duração. A composição é excelente e traz o moog e o violão em evidência, trazendo um viés mais acústico, até que, em determinado momento, o hammond se torna mais enérgico, tornando-se mais agradável.

"Non Voglio Catene"

“Canto della Rassegnazione” é uma balada curta, com vocais mais suaves, quase frágeis, diria, com sons delicados de violinos e uma flauta que termina a faixa. É seguida pela música “Oppressione e Disperazione” que traz versões mais duras e pesadas de blues rock ditadas pelo entrelaçamento do hammond e da guitarra. A bateria é o tempero que entrega a música o peso e quando mesclada ao órgão e a guitarra essa máxima é corroborada. Excelente faixa!

"Oppressione e Disperazione"

“Ecce Omo” apresenta, no início, a bateria, forte e altiva, com sintetizadores e a guitarra no início. Os teclados dominam a faixa, logo depois a flauta entra e a mesma, juntamente com a guitarra, se entrelaçam. Um bom exemplo de hard prog! "Uomini Umili Popoli Liberi" começa com melodias vocais, mas logo vocais ásperos se juntam, com a flauta se junta com peças de hard rock promovendo um contraste entre suavidade e peso, talvez um bom exemplo de hard prog também.

"Uomini Umili Popoli Liberi"

“Viaggia Cosmico” que inicialmente nos conduz a uma audição ao estilo space rock, graças aos teclados e logo depois vem uma balada lenta, onde o vocal é apoiado por violão e um violino. Bela faixa! Na mesma sintonia vem a curta “Un Mondo Nuovo”, uma balada acústica com nuances de violino e flauta, mas que não é tão incisiva e não deixa muito impacto. O álbum fecha com "Cantico Alle Stelle -Traccia II", que é realmente uma reprise da faixa de abertura.

"Un Mondo Nuovo"

A primeira edição oficial de "Uomini Umili Popoli Liberi" finalmente foi lançada em 1990 pelo selo privado LPG em uma edição limitadíssima de apenas 500 cópias e cerca da metade foi autografada pelo guitarrista Gianluigi Cavaliere, uma verdadeira raridade aos fãs da banda e de raridades como um todo. Esse exemplar veio com capa “gatefold” contendo a letra e etiqueta cinza/marrom com escrita branca, trazendo uma imagem da banda se apresentando. Enquanto uma segunda impressão, com aproximadamente o mesmo número da primeira edição, tem capa única e etiqueta azul clara, também neste caso com alguns exemplares numerados e autografados.

E esse lançamento, quase vinte anos depois, aconteceu porque Cavaliere guardou as fitas à época do não lançamento do Eneide em 1972 e também do interesse de um amigo que, após o lançamento oficial, tiveram a oportunidade de divulgar o álbum com a ajuda do selo icônico “Black Widow”, de Gênova.

Teve um relançamento, em CD, de 2011, pelo selo “AMS”, onde há duas faixas adicionais inéditas, retiradas do projeto de 1995, intitulado “Oblomov’s Dream” quando a banda tentou se reunir. Estavam nesse projeto, além do guitarrista Gianluigi Cavaliere, Romeo Pegoraro e Diego Polato e a ideia era lançar um novo álbum, mas os compromissos profissionais não possibilitaram concluir as gravações e pararam no meio do caminho. Eles ainda possuem essas fitas, quem sabe um dia podemos presenciar um novo álbum do Eneide. A mesma gravadora relançou o álbum, em vinil, com capa “gatefold”, mas sem as duas faixas extras da edição em CD.

O guitarrista Cavaliere permaneceu no cenário musical como instrumentista e produtor e ainda toca com o baixista Romei Pegoraro em uma banda chamada Chantango, que mescla diferentes estilos de música e poesia com o tango. Romeo toca baixo como concertista profissional no “Maggio Musicale Fiorentino”. O baterista Diego Polato toca em várias bandas de rock progressivo, assim como seu filho e o guitarrista Adriano Pegogaro também continua seguindo com sua carreira de músico. O único que deixou a música foi o tecladista Carlo Barnini que atualmente é veterinário.

Cavaliere conheceu, em 1994, Peter Hammill e David Jackson, ambos da formação clássica do Van der Graaf Generator e conversaram sobre a possibilidade de Jackson tocar no que seria o segundo álbum do Eneide, o “Oblomov’s Dream”, mas não foi para frente, não fazendo mais nada, porém mantém, até hoje, contato com esses dois icônicos músicos da história do prog rock.

Fracassos, precocidade na sua história, falta de uma gestão de carreira.... Muitos podem ser os fatores para uma ruptura na longevidade ou não de uma banda, o fato é que o único trabalho do Eneide, embora não traga nada de revolucionário para a história do rock progressivo italiano deixa uma marca importante naquela época de desbravamento da música, mostrando-se essencial por se tratar de um álbum que entregou uma interessante diversidade sonora.




A banda:

Carlo Barnini nos teclados, minimoog e backing vocals

Gianluigi Cavaliere nos vocais principais, gutarra elétrica e acústica

Adriano Pegoraro na guitarra, flauta e backing vocals

Romeo Pegoraro no baixo e backing vocals

Mereno Diego Polato na bateria

 

Faixas:

1 - Cantico alle Stelle - Traccia I

2 - Il Male

3 - Non Voglio Catene

4 - Canto della Rassegnazione

5 - Oppressione e Disperazione

6 - Ecce Omo

7 - Uomini Umili Popoli Liberi

8 - Viaggia Cosmico

9 - Un Mondo Nuovo

10 - Cantico alle Stelle - Traccia II 



"Uomini Umili Popoli Liberi" (1972 - 1990)










































quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Caixão - Da Porta ao Sumiço (2020)

 

Nessa minha fantástica caminhada de desbravar as grandes bandas que trafegam nas sombras das obscuridades, me peguei em algumas boas e salutares discussões acerca das condições que a sua sonoridade se relaciona, digamos assim, com o público. Uma delas é: um projeto musical pode ser considerado uma banda?

Pode parecer uma pergunta um tanto quanto desproporcional e boba, sem contexto algum, mas quando me vi refletindo sobre, quando essa questão me veio por um bom amigo leitor, me coloquei a pensar. Será que um projeto que, em tese, tem início, desenvolvimento e fim, pode ser considerada como uma banda constituída, haja vista que, quando se tem uma banda, presume-se que os seus músicos queiram a sua longevidade.

Projetos vem e vão, bandas também vem e vão, fãs idem, cenas também, mas a música, quando é relevante para os seus ouvidos e alma, sem dúvida alguma prevalecerá, passará pelos tempos e modismos, incólume, viva e jovial. Independente de como ela, a música, é concebida, ela é música e precisa ser apreciada, “degustada” como tal.

E essa banda, ou melhor, projeto é digno de reverências, dada a sua originalidade e também a sua sonoridade que nos remete aos prolíficos anos 1970, mas sem soar datado ou algo pasteurizado com a intenção de atingir a determinados nichos ou cenas de cunho saudosistas. Falo da banda ou projeto brasileiro, oriundo do Ceará, chamado CAIXÃO.

Caixão

E que orgulho, ufanismos à parte, dizer que se trata de um trabalho brasileiro, de material original e de contundência sendo feito em um país que privilegia as músicas frívolas, sem sentido e oca em sua concepção, mas essas tocam nas rádios, nas emissoras de massa, em tudo quanto é lugar, chega a ser leviano fazer essas pífias comparações. A Caixão já começa a ser underground e pouco “ortodoxo” com o seu nome.

E foi com o seu nome que, quando o conheci, lá pelos anos caóticos da crise sanitária da COVID-19, que realmente me chamou a atenção (risos)! São as maravilhas do mundo do underground e também os meus apreços e predileções musicais. E diante de tanto lixo musical que nos chega sem sequer pedirmos, torna-se urgente filtrar, para não cair na asneira de ouvir porcarias.

O projeto começou, em 2018, com o baterista Ítalo Rodrigo, conhecido pela banda seminal de crossover Damn Youth e também no Echoes of Death. Ítalo trouxe à tona a Caixão com o intuito de ser um projeto, porque, além de ser a sua concepção, ele pincela os músicos que o acompanha na sua empreitada sonora. Ítalo é a Caixão, pelo menos por enquanto, porque tudo indica que o projeto poderá vir a ganhar contornos de banda. Pode parecer estranho essa condição, afinal, a Caixão é uma banda constituída, independentemente de sua essência.

Lançou, em abril de 2019, um single, de nome “Pássaro Holograma” e um EP, com 5 músicas, também no mesmo mês e ano, de nome “Caixão”. Em setembro do mesmo ano gravou um “Split”, ou seja, um álbum com outra banda, chamado “Candelabro”, com a banda Abismo. O ano de 2019 foi bem agitado para a Caixão! Porém somente em outubro de 2020, em pleno auge da pandemia do COVID-19, lançou seu primeiro álbum chamado “Da Porta ao Sumiço”, cujo selo é a Abraxas, conhecida por ter em seu cast bandas de stoner, doom e occult rock da atualidade. E o cenário do caos sanitário também trouxe um formato um tanto quanto atípico na concepção do álbum sob o aspecto da gravação e sem sombra de dúvida na composição das letras. E será esse álbum alvo do texto de hoje.

EP lançado em 2019

“Da Porta ao Sumiço” foi concebido pela seguinte formação: além de Ítalo Rodrigo, na guitarra, o “dono” do projeto, trouxe Mirelle Sampaio, também na guitarra, Renato Alves, no baixo, Jardel Reis na bateria, com a participação no vocal e na letra de Ângelo Sousa, na música “Vulto”. A arte da capa contou com Fernanda JFL.

O processo de criação do álbum se deu de uma forma bem usual, apesar dos tempos temerosos da pandemia, tendo as ideias vindo em momentos totalmente inusitados, tendo como ponto central as músicas surgirem a partir de um riff. O trabalho foi todo feito em casa, afinal, o caos pandêmico exigiu um distanciamento social, o que certamente deve ter impactado o talentoso Ítalo a conceber as faixas que compunham esse álbum. Usaram para fazer a captação, sendo gravado em caixinhas de guitarra, que inclusive o baixo também foi gravado na caixa de guitarra. A mixagem e masterização ficou por conta de Guilherme Mendonça, amigo de Ítalo.

“Da Porta ao Sumiço” é um álbum que remete às sonoridades setentistas, que vai do hard rock ao psych. Passa pelo progressivo também, nuances mais discretas dessa vertente, mas também com um pé em sonoridades mais contemporâneas, como o stoner rock, por exemplo. O som da Caixão não é, com isso, datado, talvez homenagens às bandas de occult rock dos anos 1970 relegadas ao ostracismo, mas que soa com muito frescor, pois evoca o contemporâneo e a capacidade de se mostrar muito diversificada e difícil de se rotular.

É, sem dúvida, um registro contemporâneo, com referências do passado. É tão diversificado e complexo o som da Caixão neste trabalho que eles conseguem ser solares e introspectivos em uma única música, repetindo-se, em outras faixas. É inegável que, ao ouvir “Da Porta ao Sumiço”, não se consiga cativar pelas melodias envolventes e cheia de personalidade, sem contar com os riffs poderosos de guitarra que traz a versão pesada às músicas, propiciando os diversos andamentos distintos nelas, causando ao ouvinte um arrebatamento sonoro.

Como o próprio nome sugere, bem como a sua sonoridade, a Caixão dignifica, por intermédio de seu debut, uma roupagem, como disse, diversificada e calcada nos anos 1970, com viés atualizado trazendo o peso do stoner rock, tudo isso envolto em uma textura bem interessante de occult rock que beira, inclusive, a uma trilha sonora de um filme de terror. Me trouxe à tona até bandas como a italiana Goblin, por exemplo, que sempre explorou o cinema fazendo trilhas para o icônico cineasta Dario Argento.

"Hora de Ir"

“Corrente” segue agora com uma veia mais hard rock com riffs mais pesados de guitarra que, em determinados momentos, fica mais cadenciado, mas nunca leve ou introspectiva. É pesada! A “cozinha” é eficiente. Bateria pesada e marcada, baixo galopante, teclados enérgicos, mas ainda assim, sombrios.

"Corrente"

“Die in the Flame they Created” traz à memória algo de Blue Oyster Cult mais dançante, aquela fase mais comercial da banda dos anos 1980, mas que não negligencia de forma alguma sua pegada occult rock. O stoner se faz presente, o peso e os riffs de guitarra entregam essa vertente na faixa. “And Now Look At the Size of the Damage” segue basicamente a mesma proposta da faixa anterior, dando um caráter mais pop e comercial ao occult rock que permeia na música.

"Die in the Flame they Created"

“Mariposa” traz de volta o peso do stoner rock, capitaneado pelos riffs pegajosos e pesados de guitarra. A seção rítmica segue o conceito da música, se mostrando engenhosa e igualmente pesada. A bateria bate forte sem piedade alguma, mas ainda assim, temos algumas mudanças rítmicas. Bela música!

"Mariposa"

Segue com “Vulto” e a proposta pesada ainda paira sob esse momento do álbum e o hard continua pleno, os riffs de guitarra continuam em destaque, a bateria é pesada, porém cheia de viradas emocionantes. Percebo uma pegada mais heavy metal nesta faixa. A energia e a fluidez nessa música são deveras perceptíveis.

"Vulto"

“Poeira na Luz do Sol” chega mais sombria, mais introspectiva, com uma pegada pesada, porém arrastada, cadenciada, um stoner mesclada a um discreto doom metal. O baixo ganha destaque nessa faixa. É vívido, tocado alto, de forma galopante. A bateria basicamente segue marcada e os riffs de guitarra torna a faixa mais pesada. “Passeio no Céu” traz, mais uma vez, uma textura mais sombria, como na faixa anterior, algo mais introspectiva e soturno. Junto a isso uma pegada mais lisérgica envolve toda a proposta da faixa. A fala ao final da música é um trecho do filme “Compasso de Espera”, de 1973, dirigido por Antunes Filho.

"Poeira na Luz do Sol"

E fecha com “Goodbye Sanity” que se mostra com uma roupagem mais comercial, mais pop e bem dançante. Um conceito em voga entre as bandas atuais de occult rock que mescla o comercial com o occult rock que não é nada original, mas que atualmente é bem difundido nas músicas das bandas que compõe a cena hoje.

"Goodbye Sanity"

 “Da Porta ao Sumiço” pode ser considerado um álbum conceitual, afinal, as músicas, antes de qualquer coisa, se conectam, sonoramente falando. E o significado do nome do álbum também “amarra” esse conceito, pois o sumiço pode ser tanto para dentro quanto para fora, a partir da porta. Significa sumir de si ou dos outros. As faixas trazem esse ambiente de dúvidas, de fraquezas, de medos.

A banda lançou, em março de 2024, o single “Luz Estranha em Quixadá” e recentemente, em julho do mesmo ano outro single de nome “Bloodstains”. Esta última serviu como prenúncio para o lançamento do seu segundo álbum chamado “Entre o Velho Tempo Futuro”, previsto para ganhar luz em setembro. Remessas, no formato vinil, serão disponibilizados a partir de outubro.

"Luz Estranha em Quixadá" (2024)

O que nos resta, enquanto apreciadores do bom e velho occult rock, é aguardar ansiosamente por este tão aguardando novo álbum para ter de volta a Caixão despontando nos palcos e destilando suas músicas carregadas em hard rock, stoner, psicodelia e progressivo. E que o projeto se torne uma banda oficial e longeva. Se a música for o peso determinante não tenha dúvida de que isso logo acontecerá.




A banda:

Ítalo Rodrigo na guitarra

Mirelle Sampaio na guitarra

Renato Alvez no baixo

Jardel Reis na bateria

 

Com

 

Ângelo Sousa no vocal e letra de “Vulto”

 

Faixas:

1 – Hora de Ir

2 – Corrente

3 – Die in the Flame they Created

4 - ...And now look at the Size of the Damage

5 – Mariposa

6 – Vulto

7 – Poeira na Luz de Sol

8 – Passeio no Céu

9 – Goodbye Sanity (Bônus)



"Da Porta ao Sumiço" (2020)


"Entre o Velho e o Tempo Futuro" (Novo álbum de 2024)




 


 


























quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Moses - Changes (1971)

 

Ecos de um longínquo passado, tão distante que parece soar primitivo em determinadas sonoridades. Datado? Talvez! Fora de moda! Moda vem e vai, modismos transparecem para mim algo tão vazio e frívolo que sequer possa interessar aos que gozam de mínima personalidade.

Mas parece a fusão do blues e o rock foi um processo de extrema revolução nos idos de 1967, 1968, com a profusão de bandas que aliou criador e criatura em um caldeirão fervilhante, intenso e de uma plenitude sonora bem interessante. O Cream, juntamente com Jimi Hendrix, trouxe a potência do rock e a melancolia sombria do blues, eletrificando, tornando pesado uma vertente que traria outras tantas e tantas bandas seminais fazendo jus aos criadores.

O que dizer de Led Zeppelin ou ainda do underground Blue Cheer ou de John Kay com seu Steppenwolf? Referências que se confundiram com o blues rock, mesclados ainda ao hard e o psych que também estavam pairando pela cena rock na transição dos anos 1960 e 1970.

As bandas seminais e famosas ganharam o mundo, levaram seu nome para o mais alto patamar e excelência do bom e velho rock n’ roll e estão no rol dos clássicos indiscutíveis. Mas e as bandas obscuras? Não podemos discuti-las? Não podemos coloca-las no mesmo patamar de importância?

Bem esse blog que você, estimado leitor, está navegando, traz as bandas obscuras, raras e undergrounds a um nível de protagonismo, mesmo no ápice de seus fracassos comerciais e, aproveitando o ensejo da cena blues rock, que muito me cativa, gostaria de trazer uma banda, surgida na fria Dinamarca, que entrega uma sonoridade quente e diversificada e se chama MOSES.

Moses

Quando busquei referências de pesquisa para construir esse texto que você, bom amigo leitor, está lendo, li alguns comentários do tipo: “Nossa, é um álbum fraco”! “Um álbum básico demais”! “Uma cópia barata do Ten Years After”! Evidente que não quero entrar no mérito das opiniões, afinal, são pessoais e precisam ser respeitadas, mas o “básico”, penso, não pode ser assimilado a algo ruim. Muito pelo contrário, é a essência do rock, a gênese de um estilo.

Quando ouvi, pela primeira vez, o primeiro álbum do Moses, “Changes”, de 1971, foi tão arrebatador que me fez, com o perdão das famigeradas comparações, lembrar as estreias de bandas do naipe de Black Sabbath e Blue Cheer, por exemplo. Uma sonoridade tão primitiva e básica, calcada no peso, em um blues rock elétrico, distorcido e agressivo. A trinca guitarra, baixo e bateria traz uma pegada, além da já comentada, pegada pesada, traz um despojado, algo tão despretensioso, que beira até a inocência de seus músicos, sem contar que o vocal lembra de um bebedor inveterado.

Se para muitos isso possa trazer a noção de amadorismo, para esse que vos escreve é o charme de todo o conteúdo, seja ele intencional ou não. “Changes” é fantástico por isso! Guitarras wah-wah cheia de distorções e lisergia, hard rock, aquele blues eletrificado, tantos atrativos mesmo para um álbum tão básico. É louco, não acha? Ainda encara o básico como ruim? Sugiro rever os conceitos...

Mas antes de destrinchar o único rebento do Moses, “Changes”, vamos tentar falar um pouco dos primórdios da banda. Já digo, amigo leitor, de antemão que, por se tratar de uma banda obscura, pouco se sabe sobre, poucas foram as referências encontradas, mas as linhas desse texto precisam se fazer existir.

O Moses foi formado em uma cidade chamada Esbjerg, na Dinamarca. E o conceito de seu estilo vem muito do passado de dois de seus integrantes, são eles: Jørgen Villadsen e Søren Højbjerg, vocais e baixo e guitarrista, respectivamente, que tocaram em uma banda de blues chamada Fresh Boiled, em 1968. Na realidade essa banda seria o esboço do Moses. Henrik Laurvig, o baterista, tocou em diferentes e várias bandas locais e juntou-se a Jørgen e Søren quando a banda mudou seu nome para Moses, no início de 1969.

A partir daí o Moses excursionou sem parar durante o ano de 1969 e por toda a sua precoce existência e, em 1970, estava em contato com uma gravadora underground chamada Spectator Records. O selo estava muito interessando em gravá-los, contratá-los, mas precisava ver os shows dos caras para ter a certeza de que eram bons o suficiente ao vivo para ter o melhor resultado em estúdio e no verão daquele mesmo ano gravaram, por incríveis dois dias, “Changes” no Spectator Record Studio, em Ålborg, na Dinamarca, porém o álbum só foi lançado em 1971.

A responsabilidade da distribuição ficou a cargo da Spectator Records e teve uma reduzida tiragem, pasmem, de apenas 500 cópias, tornando-o hoje um produto muito valorizado nos sites de vendas de vinis, como acontece frequentemente com muitos desses tesouros obscuros e perdidos dos anos 1970. E como poucos teriam acesso a esse vinil por conta do alto valor, a sorte de nós, pobres mortais, é de que temos alguns canais no YouTube, abnegados, que difundem o álbum, bem como blogs e sites que trazem, além da sonoridade, a história de bandas como o Moses.

E como a banda durou meros três anos ou um pouco mais, ou seja, uma curta existência e trajetória, a formação que gravou “Changes” trazia, como já mencionados: Søren Højbjerg na guitarra, Jørgen Villadsen no vocal, baixo e Henrik Laurvig na bateria. E como também já comentado trazia um hard rock com generosas pitadas de blues e um tempero saboroso de acid rock, com muita lisergia. O peso, aliado ao despojado de sua sonoridade era o charme e fazia da música algo bastante característico, apesar de não trazer nada de revolucionário.

O álbum é inaugurado com a faixa título “Changes” e já escancara com um proto metal configurado em riffs potentes e pegajosos de guitarra com uma levada bluesy. O som é arrastado e pesado, mas traz uma pitada sombria, soturna, diria. Solos de guitarras lisérgicas, ácidas são ouvidas, o peso é corroborado pela “cozinha”, com baixo pulsante e bateria marcada. Mas logo volta ao estágio arrastado que iniciou a faixa. O vocal é um destaque à parte, bem despretensioso. Não hesitaria em dizer que essa faixa trafega entre o stoner e o doom.

"Changes"

A sequência tem “I’m Coming Home” que abre com um baixo dançante e com algum groove. A sonoridade me remete ao psych rock com as já perceptíveis pitadas de blues rock. Solos pesados de guitarra rasgam a faixa em um estrondo hard rock tipicamente setentista e logo retoma ao baixo dançante com pegada ácida. 

"I'm Coming Home"

“Everything is Changed” já começa rasgando com riffs arrogantes e agressivos de guitarra. Aqui o hard rock se faz vivo e pleno, mas as bases trazem o psych rock, a lisergia igualmente presente em toda a estrutura sônica do álbum. Os solos de guitarra aparecem e trazem a certeza do peso dessa faixa. A sessão rítmica também seu destaque e cadencia a camada hard da faixa.

"Everything is Changed"

Segue com “Beginning” que abre com um solo curto e direto de bateria, com algumas viradas interessantes e logo irrompe em riffs e solos desconcertantes de guitarra e um baixo muito pulsante e vivo. A destreza instrumental nesta faixa é escancaradamente vibrante e excitante! Um volumoso e potente hard rock que conta ainda, já para o final da música, com um poderoso e arrasador solo de bateria.

"Beginning"

“Skæv” segue na linha hard rock e é cantada em dinamarquês. Um hard rock arrastado, mesclado ao psych rock e um proto stoner invejável. Certamente uma das mais pesadas faixas do álbum, com um trabalho excelente de guitarra. E quando se junta a forma mais agressiva ainda da bateria, a música assume uma roupagem mais de proto metal. Incrível!

"Skaev"

E fecha com “Warning” traz à tona, mais uma vez, a competência rítmica da “cozinha” da banda. Batidas fortes da bateria, o baixo pulsante, solar e dançante dá lugar a riffs pesados de guitarra. O blues rock retorna e vem pesado e intenso. Os solos de guitarra, mais uma vez, ganham destaque, e vem com a já percebida vibe psicodélica, com a lisergia como pano de fundo. E desses “fragmentos” temos uma sessão instrumental apoteótica, repleta de viradas e momentos distintos.

"Warning"

O Moses não conseguiu êxito comercial após o lançamento de “Changes”, em 1971, mas seguiu fazendo shows, se apresentando, mas não conseguiu fazer sucesso e divulgar o seu trabalho. Não teve também a estrutura ideal para tal por parte do selo que também não gozava de capital para tal investimento. Em 1972 a banda se vê obrigada a finalizar as suas atividades.

Porém seus integrantes seguiram, direta ou indiretamente, no mercado da música. Søren Højbjerg ainda está trabalhando como diretor de sua própria organização dinamarquesa de reservas e shows, SHB Agency, em Esbjerg. O baterista Henrik Laurvig continuou em diferentes bandas, a mais famosa das quais foi Mani, com quem gravou o álbum “Kontiki”, pelo selo Genlyd Records, em 1985. Junto com sua carreira musical, ele trabalhou como gerente de vendas nas gravadoras CBS Records e Warner Music, ambas da sucursal da Dinamarca. Já o baixista e vocalista Jørgen Villadsen perdeu o contato com seus antigos companheiros de banda, e atualmente não se sabe sobre seu paradeiro atual.

Um som despojado, inocente, ruim, pouco apurado em termos de melodia, fraco, divertido, atraente por ser e por ter uma sonoridade suja e teoricamente mal produzida. Tantas são as percepções, mas com uma única certeza. É pesado e, no mais puro conceito de seu som, se faz diverso e cheio de possibilidades para os mais variados “paladares” de som que flerta com o blues rock, o hard rock, com o proto stoner e doom. Mesmo básico é diverso. O conceito de tempo parece ser tão irrelevante para o Moses e seu único trabalho que a discussão de ser ou não datado, torna-se pueril. “Changes” teve um relançamento, em 2010, no formato “CD” pelo selo “Shadocks Music”.


A banda:

Jørgen Villadsen: no baixo e vocal

Henrik Laurvig: na bateria

Søren Højbjerg: na guitarra

 

Faixas:

1 - Changes    

2 - I’m Coming Home

3 - Everything Is Changed    

4 - Beginning 

5 - Skæv         

6 - Warning



"Changes" (1971)














 








quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Pandora - Measures of Time (1974)

 

Quando leio alguns textos sobre determinadas bandas ou álbuns observo, nitidamente, que as pessoas buscam algo inovador. Claro que, quando temos um primeiro contato com uma banda, buscamos algo que nos arrebate, perfeitamente natural ter, ou melhor sentir isso. Mas percebo que o nível de exigência tem sido demasiadamente alto a ponto de rejeitar e criticar determinadas bandas e trabalhos por elas produzidas.

A crítica e a rejeição também fazem parte do processo da aceitação ou não de determinados trabalhos, mas penso que buscar sempre algo inovador é demasiado exigir demais de determinadas bandas e principalmente de si mesmo quanto ao seu nível de aceitação e rejeição de determinados trabalhos.

As cenas musicais chegam a níveis de saturação, com um número enorme de bandas que surgem. Percebo isso em movimentos musicais de hoje e do passado e com o rock progressivo não foi diferente, principalmente na primeira metade dos anos 1970, quando viveu sua ebulição criativa, embora nunca tenha sido uma cena palatável e tanto aceita pela indústria fonográfica. E que fique claro que a sua ebulição criativa foi na primeira metade dos anos 1970, mas não significa que em outros tempos não tenha sido.

E, diante desse cenário, que penso ter acontecido, muitas bandas surgiram, algumas viram a luz do sucesso, enchendo arenas, estádios e participando de festivais faraônicos e muitas outras caíram no limbo do esquecimento, vagando pelas sombras obscuras do underground.

E essas últimas sofreram e sofrem com uma investida pesada de ultrajantes cópias das bandas famosas, de sucesso. Evidente que não tirarei os méritos dos medalhões do prog rock que conquistaram suas condições de pioneiras e inovadoras, mas qual o motivo de taxar as obscuras de plagiadores? Qual o motivo de pontuá-las como farsantes ou coisa que o valha?

Essa defesa veemente da minha parte, caros leitores, se dá por uma questão óbvia, afinal, esse reles e humilde blog fala de bandas obscuras, mas não se enganem que a defesa seja cega e alienada. Aqui há espaço para críticas, mas principalmente, modéstia à parte, para grandes álbuns e bandas.

E a banda de hoje eu conheci recentemente em uma dessas incursões, às vezes, confesso, aleatórias na grande rede na caça de álbuns obscuros e quando a ouvi simplesmente adorei, porque alia um progressivo sinfônico, com uma pegada mais pesada, um hard mais acessível, com uma sonoridade, diria, comercial, mas de qualidade. Falo da banda sueca PANDORA.

Pandora

Quando levantei referências para este texto que você, fiel e bom amigo leitor, li algumas críticas pesadas, desconstruindo a sonoridade da banda, dizendo que era cópia de ícones como Uriah Heep, Genesis, entre outras bandas de sucesso. Ao ouvir o único álbum lançado pela banda, há cinquenta anos, em 1974, chamado “Measures of Time”, não se percebe, de fato, nada de inovador, era o que se fazia na primeira metade dos anos 1970, na cena progressiva, mas se trata de um trabalho excepcional, muito agradável de se ouvir e é isso que importa aos ouvidos e a alma.

E falando em referências lamentavelmente pouco encontrei sobre a história do Pandora na web, sobre as suas origens, então vai as minhas famigeradas licenças poéticas acerca de sua história obscura. O nome da banda te remete a conhecida “Caixa de Pandora” com a sua história de que os deuses gregos colocaram todas as desgraças do mundo, entre as quais a guerra, a discórdia, as doenças do corpo e da alma em uma caixa. Talvez a inspiração para o nome da banda seja a música como uma manifestação irrestrita de esperança. Há muito a se falar da “Caixa de Pandora”, mas não entrarei em pormenores.

Vamos ao pouco da história do Pandora, a banda. A banda foi formada na cidade de Norrkoping, no sul da Suécia, em 1971 pelo baterista Bertil Jonsson e pelo guitarrista Urban Gotling. Após algumas mudanças na formação a banda gravou o já informado debut, na realidade único trabalho, “Measures of Time”, de 1974. Com a saída de Gotling, a formação que concebeu esse álbum tinha, além de Jonsson, na bateria, Leif Hellquist e Åke Rolf na guitarra, Peter Hjelm, no vocal principal, Janne "Flojda" Dockner no piano e sintetizador e Björn Malmqvist no baixo.

“Measures of Time”, lançado pelo selo sueco SMA, no formato vinil, traz uma música bem executada, com excelentes arranjos e melodias com uma roupagem progressiva sinfônica, com teclados agradáveis e vocais bem envolventes, com uma textura mais pesada, tendendo para o hard rock que harmoniza muito bem com os sintetizadores e a pegada sinfônica, fazendo de sua sonoridade versátil e que pode certamente agradar aos apreciadores de progressivo e hard rock, além de um viés mais comercial, porém bem executado.

Nuances psicodélicas são percebidas também que te faz remeter naquela transição dos anos 1960 para os anos 1970, que se percebe uma sonoridade que tenta deixar o experimentalismo e a pegada beat indo para algo mais complexo e bem trabalhado. Assim o é “Measures of Time”. Não para por aí: ainda se percebe um blues progressivo e calorosas pegadas de krautrock. A sonoridade do Pandora é bem globalizada e se afasta um pouco do som das bandas suecas meio exóticas e pouco ortodoxas do início dos anos 1970.

O álbum é inaugurado pela faixa título “Measures of Time” que começa meio operística, piano e baixo em total sinergia entregando um progressivo sinfônico com riffs pesados de guitarra e um vocal melódico cheio de dramaticidade. E tudo isso ganha vivacidade e emoção com solos lindos de guitarra que logo tem a companhia do piano dando uma cadenciada e “rivalizando” com a guitarra. É a faixa que define bem o trabalho do Pandora.

"Measures of Time"

Segue com “Dusty Ledger” que também ganha vida com o piano na introdução e baixo trazendo uma textura mais misteriosa o que é corroborado pelo vocal mais fechado e introspectivo. O baixo fica mais pulsante, a música ganha mais corpo, os riffs de guitarra trazem uma roupagem hard rock, bateria é marcada e bate mais forte, o vocal segue a proposta com alcances maiores, os teclados dão um tom mais sinfônico, solos de guitarra são de tirar o fôlego. Não há como negar que a faixa se revela complexa e repleta de mudanças rítmicas.

"Dusty Ledger"

“The Queen” segue com a proposta mais sinfônica com uma introdução de piano, mas dessa vez foi rápida, porque ela já começa animada, enérgica e agitada. Vocais mais nervosos, mas não menos melódico, o que sempre me agrada, riffs de guitarra dão o tom mais solar, bateria as vezes pesada ou com uma discreta pegada jazzística, o piano mais frenético entrega o peso, o baixo pulsante e dançante, solos mais acessíveis de guitarra. Sem dúvida a mais animada faixa do álbum.

"The Queen"

“Life is Good, Life is Bad” começa com uma salutar “rivalidade” entre piano e a guitarra com seus riffs, tendo uma textura rítmica mais dançante, graças, claro, ao baixo mais pulsante e bateria marcada. Vocal, como sempre, em destaque, sempre melódico e agora em um tom mais dramático. As mudanças rítmicas também é a tônica da faixa, trazendo à tona passagens mais sinfônicas. Na sequência tem “Tailor” com o piano em destaque. A roupagem mais progressiva ganha força nessa faixa e os teclados confirmam essa condição com aquela pegada típica do sinfônico, que logo irrompe nos indefectíveis solos de guitarra sempre bem executada.

E fecha com “Mind of Confusion” traz à tona novamente o hard prog, o peso dos riffs e solos da guitarra e as mudanças rítmicas são arrebatadoras e extremamente solares. E nessas mudanças rítmicas não podemos negligenciar o vocal, destacando-o conduzindo perfeitamente os “humores” da faixa. Traz alcances vocais poderosos a sussurros.

Após o lançamento de “Measures of Time” o Pandora teve alguns bons e importantes shows dando a perceber que a banda vingaria, seguiria o seu curso na história. Abriu banda para bandas mais famosas da Suécia como Kaipa e Trettioariga Kriget, entre outras, isso entre 1975 e 1977, durando até 1981, quando a banda se desfez por diferentes razões, de relacionamento a percepções musicais, sendo que alguns músicos já tinham, inclusive, saído do Pandora para outros projetos.

“Measures of Time” permaneceu como uma total raridade até que a Tachika Records o relançou em mini LP. O selo em questão é um tanto quanto nebuloso, pois seu catálogo está na loja virtual “Syn-Phonic”, mas nem eles sabem se totalmente legalizado, apontando um vínculo com outras empresas como a “Progressive Line” e a coreana “Won Sin”, mas o que vale é a qualidade do lançamento e de que o álbum ganhou alguma repercussão, embora pequena. Teve outro relançamento, agora em vinil e CD, pelo selo alemão Press Alemanha, em 2015 e desde então não se tem notícias sobre um novo relançamento deste belíssimo álbum.

Independente se é ou não inovador, o único trabalho do Pandora, “Measures of Time”, é saboroso de ouvir, é agradável e traz uma complexidade em sua sonoridade muito democrática que faz com apreciadores de progressivo e hard rock se junte e ouça esse trabalho da banda sueca. O mais importante das discussões sobre vertentes do álbum e o bom alimento a alma que a boa música pode nos proporcionar.




A banda:

Björn Malmqvist no baixo

Bertil Jonsson na bateria

Leif Hellquist na guitarra

Åke Rolf na guitarra

Peter Hjelm nos vocais

Janne "Flojda" Dockner no piano e sintetizador

  

Faixas:

1 - Measures Of Time

2 - Dusty Ledger

3 - The Queen

4 - Life Is Good, Life Is Bad

5 - Tailor

6 - Mind Of Confusion 



"Measures of Time" (1974